A história remonta à década de 1970, quando a ONU propôs a adopção de um código de conduta para as empresas transnacionais, caída entretanto no esquecimento devido à forte oposição do sector privado e dos países industrializados. Quase meio século depois, as pressões não mudaram, mas finalmente foi aprovada uma resolução, que será vinculativa, na luta contra as violações dos direitos humanos e protecção ambiental
POR GABRIELA COSTA

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O Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou, no dia 26 de Junho, uma resolução que dá início a um processo de elaboração de um instrumento internacional juridicamente vinculativo para as empresas, no que respeita a direitos humanos. Mediante a forte oposição da União Europeia e dos EUA, a resolução A/HRC/26/L.1, que convoca a criação de um grupo de trabalho intergovernamental aberto, o qual terá por mandato elaborar esse instrumento vinculativo, para regular na legislação internacional dos direitos humanos as actividades das empresas transnacionais (ETN) e outras empresas de negócios, ‘passou’ na 26ª sessão do Conselho, realizada em Genebra, com os votos favoráveis de 20 Estados-membros.

Os países da EU e os EUA estão entre os países do Norte que maiores pressões fizeram contra esta resolução, a par da Inglaterra e do Japão, num total de 14 votos contra. A proposta, apresentada em Setembro 2013 por um grupo de países liderado pelo Equador e pela África do Sul, e apresentada agora ao Conselho de Direitos Humanos por estes dois países, registou a abstenção de 13 Estados.

O projecto avança graças ao esforço conjunto das delegações líderes e de diversos países africanos, tal como da China, índia e Rússia, que também apoiaram a resolução. Os resultados globais revelam com nitidez as divisões mundiais entre os países comprometidos com a defesa do interesse das multinacionais e os países que defendem os direitos das vítimas de violações.

Recomendações passam a obrigações
O grande avanço da resolução da ONU está no facto de este instrumento internacional obrigar, graças à sua natureza vinculativa, as multinacionais a cumprir uma série de normas que, até então, não passavam de recomendações.

Trata-se de um passo em frente contra a política praticada pela ONU para o estabelecimento de normas meramente voluntárias, através de pactos globais ou princípios orientadores sobre negócios e direitos humanos como os estabelecidos em 2011, que não definiam a obrigatoriedade, por parte das corporações transnacionais, de cumprimento dos direitos humanos.

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Conhecidos casos de violações dos direitos humanos, até hoje impunes, podem a partir de agora vir a ter um desfecho diferente. A Chevron no Equador, a Coca-Cola na Colômbia, a Pacific Rim em El Salvador, a Hidralia no Guatemala, a Shell na Nigéria, a Mekorot na Palestina, a Lonmin em África do Sul, e a Glencore no Peru, Colômbia, Filipinas e República Democrática do Congo, foram, entre outras, algumas das empresas escutadas a 23 de Junho, durante a audiência do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) sobre os crimes das ETN. Face à sistematização de dezenas de casos semelhantes, nas audiências do tribunal, os jurados do TPP pediram ao Conselho de Direitos Humanos da ONU a elaboração urgente de normas vinculativas para o controlo das empresas transnacionais, bem como de instrumentos jurídicos regionais e nacionais para garantir o direito ao acesso à justiça pelas vítimas dos abusos das ETN.

A nova resolução vem estabelecer um roteiro claro para iniciar um processo intergovernamental aberto a negociações, para a construção das normas vinculativas, que devem contar com a participação das organizações da sociedade civil, até 2015, antes da 30ª sessão do Conselho de Direitos Humanos. O plano de trabalho da ONU prevê que o grupo responsável por trazer as novas regras relate os progressos feitos nessa ocasião.

Apesar de estar ainda no início de um longo e complexo processo, que exigirá certamente muito esforço por parte de toda a sociedade civil internacional, com organizações e movimentos a pressionarem os governos e a abrirem a discussão do tema aos cidadãos, esta decisão marca um momento histórico na luta contra as violações sistemáticas cometidas pelas grandes empresas contra os direitos das pessoas e o meio ambiente.

Aliança contra os abusos
Na sequência da aprovação da resolução, o Embaixador do Equador agradeceu às mais de 600 organizações da sociedade civil “que formaram uma coligação para exigir soluções para as vítimas e para apoiar o nosso esforço”, acrescentando que “sem o seu trabalho, nada disso teria sido possível.”

Os resultados globais revelam com nitidez as divisões mundiais entre os países comprometidos com a defesa do interesse das multinacionais e os países que defendem os direitos das vítimas de violações

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E, de facto, a resolução aprovada recentemente no organismo intergovernamental das Nações Unidas responsável pela promoção e protecção dos direitos humanos em todo o mundo, e que reúne hoje 47 Estados-membros, com assentos distribuídos entre grupos regionais de África, Ásia, Europa Ocidental, Europa Oriental e América Latina e Caribe, nasce de uma chamada global, por parte de mais de meia centena de organizações da sociedade civil e movimentos sociais, por um instrumento internacional vinculativo sobre empresas e direitos humanos. Organizações que estiveram em Genebra, e que lutam há décadas por mecanismos internacionais que permitam responsabilizar as corporações transnacionais, onde quer que elas estejam, quando cometem crimes ambientais e violações dos direitos humanos.

O Movimento Aliança para um Tratado, grupo de redes e organizações a nível mundial que trabalham em conjunto para apoiar o desenvolvimento de regulamentação internacional sobre os abusos de direitos humanos cometidos pelas empresas, reuniu a assinatura de 610 organizações sociais, e de 400 pessoas de 95 países, numa declaração que pedia um instrumento internacional juridicamente vinculativo. Segundo comunicado divulgado pela OIKOS – Cooperação e Desenvolvimento, as Subcomissões dos Direitos Humanos do Parlamento Europeu e do Vaticano fizeram declarações de apoio à criação de um tal instrumento.

A organização adianta que “alguns Estados que se opunham à resolução fizeram algumas tentativas para se chegar a um compromisso, mas não estavam dispostos a fornecer um caminho concreto para a elaboração de um código de conduta para evitar abusos dos direitos humanos por empresas transnacionais e outros tipos de empresas, e permitir reparação às vítimas”. Neste contexto, e pressupondo que todas as empresas devem respeitar todos os direitos humanos, “como foi reafirmado nos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos”, é de louvar que aquelas que são quase sempre as que apresentam lucros mais elevados passem a ser responsabilizadas no âmbito das normas internacionais dos direitos humanos.

Para que tal acontecesse, a Aliança para um Tratado lançou uma série de apelos para adesão ao movimento, solicitando a organizações e pessoas que: escrevessem aos seus Governos pedindo apoio para a iniciativa do Tratado no Conselho dos Direitos Humanos; que divulgassem aos media locais as razões pelas quais é preciso ter um Tratado sobre direitos humanos e empresas, incluindo no seu país; que partilhassem a página do movimento na internet nas redes sociais e no Twitter através da ashtag #BindingStandards, e utilizassem os materiais de promoção disponíveis em treatymovement.com nas actividades de mobilização no seu País; que desenvolvessem as suas iniciativas de promoção com outros parceiros nacionais, como grupos de sociedade civil e activistas, com vista a torná-las colectivas; e que se juntassem ao Movimento em Genebra, em Junho, participando das actividades de mobilização e promoção que tiveram lugar à margem da 26ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Prestação de contas garante protecção das vítimas
Para os membros do Movimento “Aliança para um Tratado”, o estabelecimento de um instrumento vinculativo é complementar à implementação dos Princípios Orientadores sobre esta matéria, os quais são manifestamente insuficientes para evitar violações deste foro e garantir o acesso das vítimas à justiça. Consequentemente, este instrumento que vem garantir a prestação de contas das empresas transnacionais responsáveis por violações dos direitos humanos é essencial para colmatar “as graves lacunas existentes no que diz respeito à protecção das vítimas”, defende esta rede.

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Já na década de 1970, a Organização das Nações Unidas havia proposto a adopção de um código de conduta para as corporações transnacionais, mas a projecto nunca chegou a avançar, devido à forte oposição do poderoso sector privado e dos países industrializados. Hoje, assistimos à mesma reacção política ocorrida há 40 anos, com uma forte oposição dos interesses económicos e dos países industrializados – membros da UE e EUA, em concreto.

Certo é que, ao longo das últimas décadas, a luta para criar um sistema internacional que assegure a prestação de contas por parte das empresas transnacionais que pisam o risco dos direitos humanos e cometem violações e crimes regista importantes etapas.

E se, em 2011, os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU deixaram claro, para os Estados e para as empresas, que estas últimas têm a responsabilidade de respeitar os direitos humanos, constituindo o início de um importante processo, em 2014, a resolução da ONU que torna vinculativas as normas internacionais sobre esta matéria vem, finalmente, tornar inevitável a prestação de contas sobre as acções das multinacionais, em situações de abusos de direitos humanos.

De resto, é fácil de entender que uma maior protecção dos Estados e das populações contra os abusos dos direitos humanos cometidos pelas empresas cria oportunidades para o desenvolvimento sustentável, que vão para além da protecção dos direitos básicos dos cidadãos.

Diversas pesquisas revelam que a decisão das empresas de investir se baseia num conjunto de factores, como o respeito pelo Estado de direito, a disponibilidade local de trabalhadores qualificados, o nível de estabilidade política ou o nível de segurança pessoal e a qualidade das infra-estruturas dos transportes. Considerações que demonstram como as principais preocupações dos investidores não são os baixos níveis de protecção ambiental e de direitos humanos.

E é por isso que, enquanto os EUA e a UE afirmam repetidamente que não vão participar no grupo de trabalho intergovernamental criado por esta resolução, o Movimento Aliança para um Tratado já fez saber que estará envolvido neste processo que “será fundamental para assegurar uma protecção eficaz dos direitos humanos no contexto de actividades empresariais.

Desmantelar o poder
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Centenas de organizações da sociedade civil de diferentes partes do mundo estiveram presentes em Genebra, para celebrar a aprovação da resolução A/HRC/26/L.1, reunidos pela Semana de mobilização da Campanha Stop Corporate Impunity.

A Semana, que integrou inúmeras actividades e acções de rua, foi organizada de forma paralela às sessões do Conselho de Direitos Humanos da ONU, com o intuito de fazer lobbying na aprovação da resolução e amplificar as vozes das vítimas dos abusos e violações de direitos humanos e ambientais das TNC.

Jornalista