A China inaugurou o primeiro hospital totalmente virtual, onde médicos, enfermeiros — e até os pacientes — são algoritmos de inteligência artificial. Criado para simular cenários clínicos e acelerar o desenvolvimento da IA médica, o feito é tecnicamente impressionante. Mas o “Agent Hospital” levanta uma questão essencial: e se, ao se automatizar os cuidados de saúde, estivermos a apagar o que há de mais humano na medicina?
POR HELENA OLIVEIRA
A China inaugurou recentemente o primeiro hospital totalmente virtual do mundo. Chamado Agent Hospital e desenvolvido pela prestigiada Universidade Tsinghua, esta estrutura não tem edifício físico, nem profissionais de carne e osso. O hospital é composto apenas por agentes de inteligência artificial — médicos, enfermeiros e pacientes — capazes de simular diagnósticos, realizar tratamentos e analisar casos clínicos em tempo recorde em 21 departamentos diferentes.
Tudo acontece num ambiente digital que pode diagnosticar e tratar mais de 10 000 “doentes” em apenas alguns dias – uma tarefa que levaria dois anos a ser consumada por médicos humanos – e com uma taxa de precisão 93,06% de acordo com o MedQA, um conjunto de dados criado para testar a capacidade de sistemas de inteligência artificial para responder a perguntas médicas complexas, semelhantes às que se encontram em exames de admissão às escolas de medicina.
Para além de transformar a forma como os médicos diagnosticam e tratam os doentes, trazendo imensos benefícios tanto para os profissionais de saúde, como para o público em geral, este conceito inovador permite também que pacientes virtuais sejam tratados por futuros médicos reais, proporcionando aos estudantes de medicina melhores oportunidades de formação. A simulação feita em “pacientes de IA” permite também que os estudantes de medicina possam propor planos de tratamento com confiança, sem receio de causar danos a pacientes reais devido a erros na tomada de decisões.
Num mundo envelhecido, desigual e sobrecarregado, a IA surge assim na medicina como uma aliada quase inevitável, funcionando como um multiplicador de capacidade e oferecendo um novo horizonte de precisão.
À primeira vista, trata-se de um feito extraordinário, um marco histórico na evolução da medicina digital. A promessa é clara: mais eficiência, mais acessibilidade e maior rapidez na resposta clínica, sobretudo em contextos com falta de recursos humanos ou geográficos. Mas esta inovação levanta também um dilema profundo: podemos automatizar os cuidados de saúde sem desumanizar a medicina?
A promessa: precisão, velocidade e acesso global
O progresso da inteligência artificial no campo da medicina tem sido exponencial. Desde sistemas que analisam exames com elevada precisão até algoritmos capazes de prever o risco de determinadas doenças com base em dados genéticos e comportamentais, a IA está a transformar radicalmente a prática clínica.
A IA já contribui para acelerar a investigação científica, prever surtos epidemiológicos, reduzir erros médicos e criar terapias inovadoras para doenças raras. E, em breve, poderá assumir triagens automatizadas, acompanhamento remoto de doentes crónicos e até consultas preliminares, sobretudo em regiões com escassez de médicos.
Ferramentas como o ChatGPT, o Med-PaLM da Google ou o Watson da IBM já são usados em ambientes médicos para apoio à decisão, triagem e aconselhamento. Adicionalmente, algoritmos de imagem auxiliam radiologistas a detectar lesões invisíveis ao olho humano. Em oncologia, a IA já é também utilizada para delinear planos personalizados de quimioterapia. Na área da saúde mental, estão a surgir, não sem polémica associada, plataformas de apoio emocional com resposta empática programada. A IA consegue ainda cruzar milhões de dados clínicos para apoiar a investigação de novos fármacos e acelerar os ensaios clínicos.
De acordo com o Market Research Future, o mercado global de Inteligência Artificial na área da saúde está a registar um crescimento substancial, particularmente no segmento das aplicações, estimando-se que atinja o valor de 120 mil milhões de dólares até 2035. Tendo em conta este panorama, os segmentos individuais demonstram diferentes graus de crescimento e importância, com a imagiologia médica, a análise preditiva, a cirurgia robótica, os ensaios clínicos e os assistentes virtuais de saúde a liderarem a diferenciação. Este impacto na economia deve-se, em particular, a ganhos na redução de erros, numa melhor alocação de recursos e em novos diagnósticos precoces.
Além da precisão, há um ganho de escala: os sistemas baseados em IA podem estar activos 24 horas por dia, atender em múltiplas línguas e responder rapidamente em áreas onde anteriormente não existia qualquer cobertura. Países com escassez de profissionais de saúde poderão beneficiar de plataformas que oferecem triagem e monitorização à distância. A personalização do tratamento, o acompanhamento remoto de doenças crónicas e o apoio a idosos isolados são áreas onde a IA poderá ser igualmente determinante.
O risco: tratar o doente sem cuidar da pessoa
Mas o que acontece quando o “médico” é um algoritmo e o “hospital” é um servidor? A verdade é que a inteligência artificial pode simular um diálogo, mas não compreende o sofrimento. Pode prever padrões clínicos, mas não sente compaixão. Pode dar conselhos, mas não estabelece o vínculo tão necessário com os pacientes.
Ou seja, hã perguntas que a inteligência artificial não consegue responder. A medicina não é apenas ciência — é também escuta, empatia e presença. É o olhar que acolhe, o silêncio que compreende, a mão que tranquiliza, a dúvida que se respeita, a dor que se escuta.
Assim, será que um sistema autónomo consegue perceber o que não está nos dados? A fragilidade, o medo, a resistência invisível, a solidão não verbalizada? Pode um algoritmo dizer “vai ficar tudo bem” — e fazê-lo com verdade?
A medicina sempre foi um dos últimos redutos da relação pessoal. A confiança entre médico e doente, construída na vulnerabilidade, é insubstituível. Reduzir o sofrimento a um problema técnico e o doente a uma base de dados é despojar a medicina da sua alma.
Na sua imensa complexidade, reduzir a prática médica à lógica dos dados traz o risco de despersonalizar o doente. A pessoa deixa de ser um sujeito a cuidar e passa a ser um conjunto de métricas a gerir. A eficiência pode transformar-se em frieza e o progresso tecnológico em retrocesso humano.
Além disso, a IA carrega os enviesamentos dos dados com que foi treinada, existindo já estudos que demonstraram que algoritmos médicos tendem a errar mais com populações sub-representadas (como minorias étnicas ou mulheres), reproduzindo desigualdades estruturais. Os riscos éticos incluem também a perda de autonomia profissional, a opacidade dos sistemas e a substituição do julgamento clínico por decisões automatizadas sem supervisão humana adequada.
A urgência: formação humanista, ética médica e discernimento público
A pergunta crucial não é se a inteligência artificial deve fazer parte da medicina — ela já o faz -, mas sim como queremos integrá-la num sistema tão complexo. A tecnologia pode ser uma aliada poderosa, mas não deve ser um fim em si mesma. O que está em causa não é apenas a eficácia do sistema de saúde, mas a sua alma. A tecnologia deve ser aliada, não substituta. Ferramenta, não fim. Acelerador de processos, não redutor da relação.
O desenvolvimento da IA exige ética, regulação e discernimento. É urgente formar médicos e profissionais de saúde para lidar com estas tecnologias — mas também para preservar a dimensão relacional do cuidado. Precisamos de uma medicina mais eficiente, sim — mas também mais ética, mais próxima, mais justa.
O desenvolvimento e a implementação da IA exigem políticas públicas claras, legislação robusta e formação contínua. Médicos, enfermeiros e técnicos de saúde precisam de saber usar a tecnologia, mas também de compreender os seus limites e implicações humanas. O currículo das faculdades de medicina deverá incluir ética digital, análise crítica de algoritmos, e treino relacional; deve incluir competências tecnológicas, mas também comunicação empática, escuta activa, bioética e espiritualidade. E o juramento de Hipócrates tem de dialogar com a ética da programação.
Além disso, a sociedade como um todo deve participar neste debate. O que esperamos dos cuidados de saúde? Queremos apenas respostas rápidas, ou também uma escuta verdadeira? Valorizamos a velocidade do algoritmo ou o calor da presença humana?
Num mundo cada vez mais digital, o risco não é termos menos tecnologia. O risco é termos menos humanidade. E esta realidade tem de estar presente em qualquer que seja o progresso tecnológico.
O futuro da medicina não pode substituir o gesto humano
O Agent Hospital é, por enquanto, um ambiente virtual. Mas é também um sinal de que os limites dos cuidados médicos estão a ser redesenhados. E cabe-nos decidir se queremos saúde como um serviço automatizado ou como um acto de relação.
Porque há perguntas que nenhum algoritmo sabe responder. Podemos programar um robô para medir sinais vitais, mas não para perceber quando um paciente está a desistir da vida. Há dores que não se tratam com dados. Há presenças que não se substituem. Cuidar não é apenas tratar — é estar com.
Por isso, o desafio não é travar a tecnologia. É humanizá-la. É garantir que, por trás de cada plataforma digital, há uma cultura de cuidado, uma ética de responsabilidade e um olhar que reconhece a dignidade única de cada ser humano. O hospital do futuro não pode ser apenas um centro de dados. Tem de ser um espaço de presença. Onde a tecnologia serve a vida — mas nunca a substitui.
Porque a medicina — a verdadeira medicina — começa sempre com um gesto humano. E isso, por mais avançada que seja, nenhuma máquina pode replicar.
Algumas fontes consultadas:
AIR Creates a Virtual Hospital, Enabling AI Doctors to Self-Evolve
Agent Hospital: A Simulacrum of Hospital with Evolvable Medical Agents
Revolutionising Healthcare with AI: Agent Hospital by Tsinghua University
‘World’s first’ AI hospital with virtual doctors opens in China
Imagem: © Mohamed Nohassi/Unsplash
Editora Executiva