A coisa mais importante desta insólita Páscoa de 2020 é que ela existe. Jesus ressuscita de novo ao terceiro dia em 2020, como no memorial de todos os anos. Este é o facto que nunca podemos perder de vista. Dele depende a nossa felicidade, no meio da cruel circunstância causada pelo vírus
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES

A ressurreição de Cristo, o fenómeno mais decisivo da História humana, que gerou a nossa redenção, é um mistério que não depende da nossa comemoração, da nossa vontade, do nosso esforço. Fomos salvos séculos antes de sequer existirmos. Como podemos estar nervosos só por não ser possível participar plenamente nas celebrações pascais?

Sem esquecer isto, é evidente que a nossa dor nesta Páscoa de 2020 é inevitável, dilacerante, avassaladora. Este ano, pela primeira vez desde tempos imemoriais, não há Procissão dos Ramos, não há Via Sacra pública, Visita às Sete Igrejas, Celebração da Ceia, jantar familiar de Quinta Feira Santa, Procissões dos Passos e do Ecce Homo, Celebração da Paixão, Procissão do Enterro, Vigília Pascal, almoço festivo de Páscoa, Missa do Dia, Compasso e tantas outras tradições preciosas. Fechados, cada um em sua casa, a única coisa que podemos é seguir à distância, por transmissão, algumas destas cerimónias.

Nada disto, porém, é o mais grave. De longe, o pior desta Páscoa é a fome. Participar nas celebrações à distância é como um faminto ver um filme de um banquete. Isso só aumenta a nossa tremenda ânsia de Eucaristia, aquela horrível fome que sofremos desde meados da Quaresma e se prolonga por dentro do Tempo Pascal. A torturante miséria que nos afasta da verdadeira união, da união plena em carne e osso, corpo e sangue, pão e vinho, alma e divindade com o nosso Salvador. Exceptuando alguns locais privilegiados, como Sarepta de Sidónia (1Rs 17, 7-9; Lc 4, 25-26), há grande fome em toda a terra.

Esta fome de 2020 é muito maior que apenas a Páscoa, mas é uma fome ainda mais negra durante a Páscoa, impedindo o povo de Deus de cumprir até o irrevogável mandamento da Santa Igreja: «Receber o sacramento da Eucaristia ao menos pela Páscoa da ressurreição». A confissão e comunhão pascais, centro absoluto do Ano Litúrgico, não vão existir neste ano de 2020. Este é um ano sem centro, sem eixo, sem núcleo, sem fulcro, sem equilíbrio.

A coisa fica ainda mais patética quando se toma consciência que a Eucaristia é o único bem de primeira necessidade que nesta quarentena as autoridades não conseguem assegurar ao povo. Esta realidade, numa sociedade com tantos meios, capacidades e possibilidades, constitui propriamente um mistério, um mistério espantoso, incompreensível, desafiador. A fome de 2020 é um mistério tremendo, que escapa à nossa compreensão e interpela a nossa fé.

Podemos dizer que partilhamos a perplexidade dos jovens amigos de Daniel na fornalha ardente de Nabucodonosor: «Não temos chefe, nem guia nem profeta, nem holocausto nem sacrifício, nem oblação nem incenso, nem lugar onde apresentar-Vos as primícias para alcançar misericórdia.» (Dn 3, 38).

Que fazer acerca disto? Há muitas formas de reagir, porque a fome costuma gerar muitas atitudes, mas só uma conduz à salvação. E essa é agarrarmo-nos firmemente a essa fome de Eucaristia. Devemos aceitar a fome, abraçar a fome, integrar a fome, saborear a fome, fazer da fome de Eucaristia o centro deste período, o centro desta Páscoa. Devemos até pedir ao Senhor fervorosamente que nos dê mais fome. Devemos pedir ao Senhor que, na ausência do Seu Corpo e Sangue, nos dê mais fome deles.

Porque essa fome chama-se «Comunhão Espiritual». Essa é a única resposta que nos conduz à salvação. Esta é a resposta dos jovens israelitas à perplexidade do mistério: «De coração arrependido e espírito humilhado sejamos por Vós recebidos como se viéssemos com um holocausto de touros e carneiros e milhares de gordos cordeiros. Seja hoje este nosso sacrifício agradável na vossa presença, porque jamais serão confundidos aqueles que em Vós esperam.» (Dn 3, 39-40).

Por que razão sofremos isto? Isso não nos compete saber. É grave presunção arbitrar a resposta. Não sabemos porquê, mas talvez consigamos vislumbrar para quê. Do fundo dessa fome, podemos começar a encontrar o verdadeiro propósito dessa fome. Porque uma coisa destas, uma coisa tão espantosa, inesperada, tão surpreendente e inexplicável como a grande fome de 2020, não pode acontecer por más razões.

Ela é indiscutivelmente uma coisa má em si, mas as suas razões têm de ser boas. Como diz S. Agostinho: «O Deus sumamente bom, de nenhum modo permitiria existir algum mal nas suas obras, se não fosse tão omnipotente e bom para até do mal tirar o bem» (Ench. 11, 3). Do pior acto da História, a morte de Cristo, Deus tirou a nossa salvação. Assim, não é possível que este horror da fome de 2020 não tenha um bom resultado no plano de Deus.

Esse bom resultado é, evidentemente, a finalidade da Páscoa, a nossa santificação, a penitência dos nossos pecados. Nesta Páscoa de 2020, a Igreja vai viver uma carência, uma privação, uma solidão só comparável com a que o Senhor sofreu na Sua agonia.

Jesus, recoberto com todo o mal do mundo, sente-se longe de Seu Pai, do Abba que sempre o acompanhou. Carregado com os nossos pecados, durante a Paixão, Jesus viveu o mais profundo afastamento de Deus: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste» (Mt 27, 46; Sl 21 (22) 1). A agonia no horto é o símbolo dessa tremenda solidão, que O faz suar sangue. Também nós, afastados da Eucaristia, estamos sujeitos a um afastamento que, graças à Eucaristia, normalmente nunca sentimos.

Também podemos pensar na terrível solidão que a Senhora sofreu durante a Paixão de Seu Filho. Ansiando por estar com Jesus, como sempre esteve, Maria é impedida pela muralha de iniquidade que O circunda. Nossa Senhora, nesses dias da Páscoa, está exactamente como nós nas missas pela televisão, vendo Jesus à distância, mas incapaz de lhe tocar, de se unir a Ele. Devemos unir-nos a Ela esperando que, como Ela mesmo nos assegurou, Deus «aos famintos encheu de bens» (Lc 1, 53).

Por alguma razão incompreensível, mas certamente necessária, este nosso tempo foi escolhido para suportar a secura, a fraqueza, a inanidade de Jesus no Jardim das Oliveiras e de Maria na casa de Jerusalém, no Pretório de Pilatos, nas ruas da cidade, na desolação do Calvário. Muito mais do que as antigas gerações, e certamente as próximas, vamos penetrar este aspecto solitário e esfaimado do vastíssimo mistério da Páscoa. O Senhor quis que este ano O acompanhássemos no isolamento, no vazio, no encarceramento; quis que partilhássemos com Sua Mãe a terrível distância daqueles dias da Paixão.

Esta explicação é, também ela um mistério. Em que medida seremos nós capazes de, através da terrível fome de 2020, penetrar mais profundamente a Paixão que nos salva? Cada um seguirá este caminho de identificação. Em qualquer caso, uma coisa é certa: as Páscoas, e até as simples missas, dos próximos tempos serão vividas por nós com muito mais intensidade, cada vez que nos lembrarmos da grande e terrível fome de 2020.

Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas

1 COMENTÁRIO

  1. Obrigado por me ter advertido para a realidade.
    Com a sua ajuda, mesmo sem ver, vejo como o Senhor tira do mal bem.
    Omnia in bunun.
    Temos Pai e temos Mãe
    Santa Oascoa

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