O mercado mais do que apetecível para os parceiros comerciais da FIFA e patrocinadores dos campeonatos mundiais de futebol não deixou de ter um sabor amargo logo que ao Qatar foi adjudicada a preparação da prova-rainha do futebol em 2022. E com a multiplicação de acusações graves e de ordem variada ao longo dos últimos 12 anos, foram muitas as marcas que tiveram de pesar na balança os prós e os contras de uma associação a um evento tão negativamente considerado, escrutinado e alvo de uma pressão pública sem precedentes. Assim, e se algumas das marcas que potencialmente iriam a jogo optaram por não o fazer, muitas outras não resistiram ao promissor festim dos lucros, ignorando riscos reputacionais que deste possam advir. Todavia, e numa tentativa de suavizarem estes mesmos riscos, são várias as que defendem que a sua participação poderá ajudar na mudança das leis laborais no Qatar, bem como no não-cumprimento de vários direitos humanos básicos, sem se livrarem contudo de acusações de que este é um simples truque de marketing que está a ser usado para limitar a sua exposição às polémicas e à pressão pública que continuam a marcar este Mundial
POR HELENA OLIVEIRA

Doze anos depois de muitas manifestações de incredulidade, polémicas, escândalos vários de fraude, corrupção, extorsão, lavagem de dinheiro, violação de direitos humanos, entre outros episódios, e eis que, no próximo Domingo, dia 20, serão milhares de milhões os olhos que se colarão aos ecrãs televisivos para assistir ao início do Campeonato Mundial de Futebol a ter lugar num pequeno emirado situado no Médio Oriente, com apenas 1,6 milhões de habitantes e temperaturas tão tórridas quanto as controvérsias que gerou. O Qatar é igualmente considerado como um dos cinco países mais rico do mundo em termos de PIB per capita, com uma super-economia bem oleada a petróleo e com uma monarquia absolutista e constitucional, liderada pelo Sheikh Hamad ibn Khalifa Al Thani. 

De acordo com alguns números, divulgados esta semana pelo The Guardian, o montante que o Qatar terá gasto para preparar o Campeonato do Mundo, em comparação com cerca de 11 mil milhões de dólares gastos pela Rússia em 2018, ascendeu aos 200 mil milhões de dólares versus 0 – ZERO – pedidos de cláusulas ou de condições de direitos humanos relativos às protecções laborais solicitadas pela FIFA às autoridades do país aquando da adjudicação desta prova em 2010. E porque os números funcionam quase tão bem quanto as imagens, e porque em muitos casos a imagem vale (e vende) ouro, outros temas moralmente questionáveis acompanham igualmente a prova-rainha do futebol que terá início no próximo Domingo: qual é (foi) a posição dos patrocinadores e parceiros comerciais neste torneio, em particular por parte daqueles que tentam incluir nos seus valores de marca o respeito pelos direitos humanos e outros valores éticos?

À medida que foram sendo divulgadas as muitas notícias não só sobre as questões fraudulentas que envolveram a “decisão” de o Mundial se realizar num país sem qualquer cultura futebolística e sem respeito por muitos dos mais básicos direitos humanos mas, e sobretudo sobre as condições, em muitos casos sub-humanas, dos trabalhadores migrantes que da lama ergueram estádios sumptuosos, auto-estradas, hotéis, hospitais e afins para receber o Mundial em 2022, a questão da reputação esteve em cima da mesa das resoluções de investimento por parte das marcas que se associaram a esta prova.

E, na verdade, patrocinadores e parceiros comerciais tiveram de tomar uma decisão, colocando na balança duas motivações claras: a primeira é óbvia, a de quererem estabelecer contacto com o maior número possível de espectadores e telespectadores e daí retirar os seus chorudos lucros e a segunda, ética, na medida em que ao associarem-se à FIFA e ao Qatar, a sua percepção de marca poderia sofrer danos e trazer mais perdas do que ganhos. E o resultado acabou por ser um misto entre lucros e custos reputacionais, com os primeiros a ganharem em muitos casos e os segundos a serem “aliviados” por algumas acções que, para alguns, são meritórias, enquanto para (muitos) outros funcionam apenas como uma espécie de “sportwashing”.

Apesar de possíveis pesos na consciência (ou não), patrocinadores e parceiros comerciais investiram grandes somas de dinheiro associadas ao evento desportivo em causa, o qual e segundo estimativas da FIFA, será visto por cerca de 5 mil milhões de pessoas, apesar de serem muitas as iniciativas, um pouco por todo o mundo, que visam boicotar o próprio visionamento dos jogos. Apesar do Mundial da discórdia e da vergonha estar novamente “em alta” no que respeita a notícias e a protestos, dados da GlobalData estimam que os acordos de patrocínio irão gerar 1,1 mil milhões de dólares para a FIFA este ano – uma queda de 16% desde o Campeonato Mundial de 2014 -valor que evidencia o facto de as marcas acreditarem que as recompensas de uma associação a um evento com contornos tão negativos superam os riscos que da mesma possam advir.

Em Maio de este ano, o The New York Times revelou que muitas empresas e associações nacionais de futebol de alguns países participantes estavam a tomar medidas para manter as suas marcas fora do país anfitrião do Campeonato do Mundo de este ano, apesar de já terem pago milhões de dólares para se associarem ao mesmo. O jornal sublinhou assim que algumas empresas optaram por se manter afastadas do mais popular evento desportivo do mundo, de que é exemplo o Grupo ING, um importante grupo internacional de serviços financeiros e bancários que patrocina as equipas dos Países Baixos e da Bélgica, que decidiu não beneficiar do Campeonato do Mundo. 

Vários outros parceiros comerciais de equipas holandesas e belgas também emitiram declarações explicando os seus planos de ignorar o que normalmente seria uma astronómica e lucrativa plataforma de marketing. A GLS, uma gigantesca empresa de logística e patrocinadora da equipa belga, anunciou que apesar do seu apoio aos Red Devils [a selecção belga] desde 2011, não participaria em quaisquer campanhas publicitárias no Qatar, argumentando que optavam por não pactuar com a utilização comercial do Campeonato Mundial de Futebol de 2022 no contexto da violação dos direitos humanos.

E existem outros exemplos. Por exemplo, a Dinamarca e pouco depois de ter garantido a sua qualificação, anunciou que dois dos seus patrocinadores tinham concordado em renunciar ao espaço que tinham pago pelo equipamento de treino da equipa para que este pudesse ser substituído por mensagens de direitos humanos durante o Campeonato do Mundo. Adicionalmente, a Federação Dinamarquesa afirmou igualmente que nenhum dos patrocinadores da equipa se juntaria a quaisquer actividades comerciais no Qatar “de modo que a presença no Campeonato do Mundo fosse apenas uma questão de participação desportiva e não de promoção do evento em causa”. Na verdade, e no que respeita a questões de consciência corporativa, a Bélgica, a Holanda e a Dinamarca – e também a Alemanha – destacaram-se como os países que mais se insurgiram face à violação dos direitos dos trabalhadores. E, apesar de o tema não ter a ver directamente com a questão dos patrocínios, o treinador holandês, Louis van Gaal, anunciou há uns dias que a equipa que lidera irá encontrar-se com um grupo de cerca de 20 migrantes no dia 17 de Novembro para falar sobre as suas condições de trabalho. Já a Dinamarca, cuja selecção manifestou a vontade de treinar com camisolas que ostentassem a mensagem “direitos humanos para todos” durante o Mundial já viu o seu pedido recusado pela FIFA. Resta saber se lhe será dada permissão para se apresentar com um equipamento diferente do seu habitual – de cor preta -, para homenagear os que morreram ou ficaram feridos durante a epopeia de construção do dito evento.

Marketing de causas ou um truque dos patrocinadores?

Na generalidade, o que várias das marcas patrocinadoras estão a fazer é tentar suavizar as pesadas e recheadas bolas de ouro que pretendem ganhar com os seus patrocínios, através de mensagens inscritas nos seus anúncios que alertem, por exemplo, para a questão dos direitos humanos dos trabalhadores, agora e no futuro, assegurando que se preocupam e que têm em mente os valores que as conduzem. Ou seja e apesar de alguns tipos de acções, não se verificou, como muitos desejavam, um muito improvável boicote “em massa”, tendo as marcas optado por outras formas de fazer soar os alarmes e não deixar esquecida a questão da violação dos direitos dos trabalhadores que construíram este Mundial. 

Em Setembro último, 10 organizações de defesa dos direitos humanos, como a Human Rights Watch, a Amnistia Internacional e a FairSquare, entre outras, apelaram a 14 parceiros comerciais da FIFA e aos patrocinadores para pressionarem a Federação Internacional de Futebol e o governo do Qatar a pagar indemnizações e/ou a fornecer outros tipos de apoio aos trabalhadores migrantes que sofreram danos físicos e psicológicos, que ficaram sem ordenados ou endividados devido à cobrança de taxas ilegais de recrutamento (sobre as quais o VER escreveu) ao longo da preparação do evento. O mesmo pedido de indemnização serviria igualmente para ajudar as famílias dos trabalhadores que morreram ao longo da última década – e cujo número nunca se irá saber ao certo – e ocorreu na altura em que foram revelados os dados de uma nova pesquisa de opinião global encomendada pela Amnistia Internacional, a qual demonstrou que dois terços (66%) dos entrevistados e 72% dos que provavelmente assistirão a pelo menos a um jogo do Mundial concordam que os parceiros comerciais e patrocinadores deveriam pedir publicamente à FIFA que proceda a estas indemnizações. O inquérito, realizado em 15 países pelo YouGov, entrevistou quase 17,500 adultos. 

No seguimento deste apelo, alguns dos maiores patrocinadores do Mundial no Qatar emitiram comunicados nos quais afirmam aliar-se à “causa da compensação”, de que são exemplo a AB InBev/Budweiser, patrocinadora oficial de cerveja no campeonato, a Adidas, a Coca-Cola e a McDonald’s

De acordo com a Human Rights Waych, 10 outros patrocinadores não responderam ao apelo em causa, apesar de todos eles afirmarem ter, na missão e propósito das empresas que representam, políticas de respeito pelos direitos humanos, para além de cumprirem os critérios ESG, ou seja, os padrões ambientais, sociais e de governança nas suas operações e relações comerciais. E é preciso não esquecer que os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos definem as responsabilidades de todas as empresas de no sentido de os respeitarem e aproveitarem inclusivamente a sua influência com parceiros de negócios para prevenir ou mitigar impactos adversos sobre os mesmos. Todavia, e na passada quarta-feira, 16 de Novembro, o Qatar anunciou que não pretende, e de acordo com informação veiculada pelo seu ministro do Trabalho, Ali Ben Samikh Al-Marri, acorrer aos apelos das várias ONG para a criação deste fundo de compensação, acrescentando que estas mesmas organizações estão a ser motivadas pelo “racismo”e com o intuito apenas de descredibilizar o país anfitrião. Como afirmou, “[as ONG] não querem permitir que um país pequeno, árabe e muçulmano acolha um Campeonato do Mundo”.

Querer ser vistos sem dar demasiado nas vistas

Todavia, as marcas têm noção da pressão pública que está a ser exercida relativa a este campeonato e sabem que podem ser acusadas de “sportwashing”, com custos difíceis de adivinhar. Assim, a resposta de algumas das grandes empresas patrocinadoras tem passado pela subtilidade, tentando por exemplo não referir directamente o Qatar nas suas mensagens publicitárias sobre o Mundial e de que é bom exemplo o anúncio da Adidas que pode ver aqui. Adicionalmente, a Adidas, que tem sido parceira da FIFA desde 1970 e irá fornecer a bola do jogo para o torneio, afirma que tem “defendido fortemente o acesso sem restrições para todos os visitantes, independentemente da nacionalidade, religião, orientação sexual ou origem étnica”, outra das grandes controvérsias do evento particularmente relacionada com a proibição e punição da homossexualidade no país. Um porta-voz da marca de roupa desportiva acrescenta ainda que “esperamos que o Campeonato do Mundo seja totalmente acessível a todos os visitantes. Se houver alguma infracção, iremos prosseguir com o assunto”.

Seja ou não verdade, a manifestação deste tipo de “cuidados” por parte das grandes marcas é visto por muitos como um simples truque de comunicação que está a ser usado para limitar a sua exposição às polémicas e à pressão pública, como acusa, na Raconteur, Ricardo Fort, fundador da Sport By Fort Consulting, uma empresa de consultoria que ajuda investidores, patrocinadores, titulares de direitos e atletas a construir as parcerias desportivas “adequadas”. Fort é um especialista em “sponsorship marketing” e exerceu funções de responsável pelos patrocínios globais na Visa e na Coca-Cola Company, afirmando que “sabe do que fala”.

Independentemente de Fort ter ou não ter razão, a verdade é que cada marca “defende-se” como pode, argumentando por exemplo que ao estarem envolvidos no torneio poderão influenciar positivamente a mudança no Qatar. Por exemplo, um porta-voz da Coca-Cola – um dos parceiros comerciais mais antigos da FIFA – afirma que “o desporto tem o potencial único de unir o mundo e ser uma força para o bem”, embora admita que “há ainda mais reformas a fazer”. 

Por outro lado, tanto a Coca-Cola como a Adidas têm vindo a apontar o seu envolvimento com várias organizações de direitos humanos como um “exemplo de progresso tangível”. E a boa notícia é que estes envolvimentos que constam do seu currículo resultaram na integração dos princípios dos direitos humanos nos contratos da FIFA com os anfitriões, ao mesmo tempo que o trabalho em conjunto de ambas as empresas com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) levou a uma (mini) reforma dos direitos dos trabalhadores no Qatar, incluindo um aumento do salário mínimo e mecanismos legais para proteger os direitos dos trabalhadores. Pena é que muitos observadores afirmem que mesmo com esta denominada “reforma”, os trabalhadores tenham continuado a ser sujeitos a práticas abusivas, já para não falar do seu futuro hipotecado. 

Contudo e tal como alerta Ricardo Fort, o problema também não é só do Qatar, relembrando o facto de muitas competições do Campeonato do Mundo terem tido algum nível de controvérsia à sua volta – quer se trate, por exemplo, de questões sobre a segurança dos trabalhadores da construção civil no Campeonato do Mundo do Brasil ou do torneio de 2018 na Rússia, que ele afirma ter sido “um pesadelo para todos”. 

Mas e como sublinha, “enquanto patrocinador, é preciso desenvolver capacidades, processos e estruturas para lidar com estas questões”, acrescentando que  “a gestão de crises é realmente importante e é preciso estar ciente de todas as implicações possíveis de se estar envolvido num evento como este”. “O Qatar pode trazer alguns problemas adicionais, mas certamente não é o único”, remata. 

Veja, de seguida, alguns anúncios dos maiores parceiros comerciais e patrocinadores do Campeonato Mundial de Futebol no Qatar. Em comum, alguns partilham a ideia de “que vale a pena acreditar”. O que é um bom verbo para um futuro melhor. Se acreditássemos.

KIAcom uma bonita mensagem

PEPSI  – que inclui os jogadores Lionel Messi, Ronaldinho, Paul Pogba e o tiktoker brasileiro apaixonado por futebol Luva de Pedreiro 

Qatar Airwayscom uma imagem de adeptos portugueses, entre outros de várias nacionalidades

Coca-Cola – (tem um número significativo de anúncios, sendo este a interpretação da música It’s a kind of magic pela actriz e cantora mexicana Danna Paola, Felukah, uma rapper egípcia, e Tamtam, uma conhecida cantora da Arábia Saudita)

VIVOenquanto Smartphone Oficial e  único Patrocinador Oficial da indústria de smartphones do Campeonato do Mundo de Futebol no Qatar

Budweiser – no assinalar dos 100 dias que faltavam para o Mundial e com os futebolistas Lionel Messi, Neymar Jr & Raheem Sterling

Nota: Não deixe de ler os números vergonhosos que ilustram este Mundial publicados pelo The Guardian esta semana no artigo Stadiums of shame: the numbers World Cup hosts Qatar don’t want to be seen

Editora Executiva