Parece o início de uma anedota. Mas não é. É o resumo cruel da nossa relação com o planeta, e com a verdade. E, como todas as boas histórias, começa com uma saída de cena
POR NUNO GASPAR DE OLIVEIRA
No passado dia 22 de julho de 2025, Ozzy Osbourne, filho rebelde de Birmingham, pioneiro do heavy metal e improvável estrela de reality show, morreu. Mas antes de partir, deixou-nos uma última lição. Já envelhecido, com Parkinson e mais parafuso do que vértebra na coluna, sentou-se num trono no centro do estádio Villa Park, ao lado dos seus companheiros dos Black Sabbath, naquele que foi o seu derradeiro concerto. Não foi apenas um ato simbólico: o evento angariou mais de 140 milhões de libras para a investigação de doenças neurodegenerativas. Não houve pirotecnia. Houve presença. Não houve autopromoção. Houve entrega.
Mas a integridade de Ozzy já se revelara muito antes. Durante décadas, foi a encarnação do excesso: álcool, drogas, colapsos públicos. Mas contra todas as previsões, incluindo as suas, sobreviveu. E não apenas sobreviveu: reconstruiu-se. Fê-lo graças a uma teimosia quase punk, sim, mas sobretudo graças a quem ficou quando o mundo virou costas: os seus companheiros de banda, Tony Iommi, Geezer Butler, Bill Ward, e, acima de tudo, Sharon. Sharon Osbourne, a mulher que foi agente, esposa, mãe, escudo, cabo de ligação à realidade e âncora emocional num mar de delírios. Se Ozzy era o caos criativo, Sharon foi a estratégia inabalável. A sua vida foi, em boa medida, um dueto, ora em harmonia, ora em dissonância, mas sempre leal.
Foi também com essa lealdade em mente que, quando The Osbournes começou a corroer a saúde mental da família, foi ele quem puxou o travão. Saiu de cena. Desligou as câmaras. E, num gesto discreto mas poderoso, deixou o trono da fama mediática a uma jovem família californiana com ambições de estrelato. Nasciam assim os Kardashians. A era da celebridade pela celebridade. Do conteúdo sem conteúdo. Do “aparecer” como substituto do “ser”.
Hoje, essa lógica “Kardashian” molda também o discurso ambiental, da biodiversidade à descarbonização.
- Portugal está em litígio com Bruxelas por incumprir a Rede Natura 2000. A Comissão Europeia apresentou procedimento de infração em 2024 por não ter classificado nem adotado planos de gestão para os habitats protegidos durante mais de uma década (https://portugal.representation.ec.europa.eu/news/incumprimento-da-legislacao-europeia-comissao-adota-pacote-de-infracoes-com-varios-casos-relativos-2024-02-07_pt )
- O país já foi condenado pelo Tribunal de Justiça da UE por incumprimento da Diretiva Habitats em 2016, com coima inicial de 3 milhões de euros, valor que duplicou até 2018 (https://expresso.pt/sociedade/2024-10-23-nao-pagamos-nada-portugal-arrisca-multa-de-8-milhoes-por-tres-decadas-sem-cumprir-diretiva-habitats-ed7a19f0). Caso a situação não seja regularizada, arrisca-se a novas multas, agora na ordem de 8 milhões.
- A debilidade na execução destes instrumentos não compromete só os objetivos de conservação: custa-nos financeiramente, ao atrasar apoios ao ecoturismo, à agricultura sustentável e a empregos verdes (https://www.ambienteonline.pt/opiniao/natura-2000-no-vermelho-portugal-perde-oportunidades-de-conservacao-e-desenvolvimento).
- Quanto aos projetos de reflorestação europeus financiados no pós-COVID, cerca de 38 % falharam em assegurar diversidade ecológica e manutenção adequada (https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC8183400/).
- A juntar a tudo isto, no caso das políticas climáticas, a União Europeia apregoa metas de neutralidade carbónica até 2050, mas continua a subsidiar combustíveis fósseis em mais de 50 mil milhões de euros por ano, mesmo tendo prometido eliminá-los até 2025 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX%3A52022DC0642).
- Esses subsídios duplicaram em 2022 e mantêm-se acima dos 110 mil milhões de euros (https://caneurope.org/content/uploads/2024/06/EU-Fossil-fuel-subsidies_2024.pdf).
Enquanto isso, no universo verde Instagramável, há quem encha o feed com roupas sustentáveis, produtos ‘cruelty free’ e slogans de empatia, mas sem nunca tocar na raiz do problema: a perda irreversível da natureza e o colapso climático como dois lados da mesma moeda. Tudo é consumo consciente… desde que não interfira com o algoritmo nem incomode o patrocinador. Estamos rodeados de Kardashians da conservação: atentos à imagem, vorazes por engagement… mas incapazes de garantir a proteção real dos habitats que deviam defender, ou pelo menos conhecer…
Do outro lado do balcão, temos os Negacionistas. Falam alto, gritam em CAPS LOCK, riem-se de quem defende causas e apoiam ‘factos alternativos’, que é o nome chique para estórias-da-carochinha. Com um copo de cerveja na mão, dizem que o clima sempre mudou, que os cientistas exageram, que os incêndios são culpa dos eucaliptos, dos incendiários, dos emigrantes, dos ambientalistas, das feministas ou dos ‘wokes’, conforme a maré política. Que a ruinosa transição energética assente no fantasma do carbono e conservacionismo de bichinhos é uma conspiração de Bruxelas, do Fórum Económico Mundial, do Bill Gates ou da Greta. Não propõem nada. Mas criam ruído suficiente para travar tudo.
E é aqui que voltamos ao Ozzy. No meio do barulho, ele era o homem que fazia barulho certo. Um barulho consciente, fiel à família, à música, à verdade, e, no fim, à ciência. Um homem que conhecia o abismo por dentro, mas escolheu não se tornar parte dele. Num mundo onde é cada vez mais raro encontrar quem troque o palco pelos princípios, o seu gesto final tornou-se metáfora: por vezes, o maior ato de liderança é saber sair de cena. Oferecer a fama para proteger o essencial. Enfrentar a decadência sem filtros, e ainda assim fazer disso um ato político.
A emergência climática e ecológica não precisa de mais estrelas, precisa de pessoas dispostas a desafinar, a sacrificar imagem em nome da substância. Precisamos de Ozzys: criativos, disruptivos, resilientes. Com visão estratégica e coragem ética. E, talvez mais do que nunca, com a capacidade de reconhecer quem nos acompanha, quem nos desafia, quem nos segura, mesmo quando o mundo ruge.
Mas, no bar onde se decide o futuro, continuam a brilhar os Kardashian, com os Negacionistas a sabotar o som.
Fica a pergunta: seremos capazes de ocupar o lugar vago com algo mais do que encenação? Ou vamos continuar a beber, a rir, a partilhar stories… até que a música acabe?
PS: Para entrarmos em beleza no que resta do verão, deixo-vos este hino do nosso imortal Ozzy Osbourne: vemo-nos deste ou do outro lado, até breve
https://open.spotify.com/intl-pt/track/1Hs2MG2LBJaSPk7X0fzmfk?si=2e2dd0e3994c4d61
Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence