Publicada a 4 de Outubro último, a exortação apostólica Laudate Deum consiste num apelo urgente para enfrentar a crise climática na medida em que se torna cada vaz mais visível que o tempo está a esgotar-se. Sob pena de estarmos muito perto de uma ruptura irreversível, o Papa relembra que “as negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global” e que não é possível adiar mais uma vez a ideia de “que se trata de um problema humano e social em sentido amplo e a diversos níveis”. Aquela que é considerada uma espécie de “Laudato Si’ 2.0” recorre igualmente ao esclarecimento de um conjunto alargado de dados científicos, demonstrando que religião e ciência estão definitivamente de mãos dadas nesta batalha que é de todos

POR HELENA OLIVEIRA

Divulgada pelo Vaticano a 18 de Junho de 2015, a primeira encíclica ambiental da História – “Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum”, e que precedia o Acordo de Pais em Dezembro do mesmo ano, tecia ferozes críticas ao sistema económico que exacerbava, e que continua a fazê-lo – as desigualdades e que era causador inequívoco da degradação ambiental.

Na altura, o documento papal escrito por Francisco deu origem a uma gigantesca cobertura mediática, a qual foi mais significativa do que muitos dos inúmeros alertas de cientistas de todo o mundo para a catástrofe climática, e que conferiu uma esperança renovada no sentido de convencer os decisores globais a tomarem verdadeiras medidas para estancar a crise que coloca em causa o futuro do planeta.

Com a religião e a ciência de mãos dadas, a par da união de líderes religiosos de vários credos, esperava-se que finalmente fosse dada a obrigatória atenção aos cuidados fulcrais desta nossa “casa comum”.

Contudo e como sabemos, e mesmo com o tratado internacional sobre mudanças climáticas de 2015 que se lhe seguiu, muito pouco foi atingido em termos da sua mitigação, adaptação e financiamento, com este último Verão – e Outono estival – a bater inúmeros recordes de temperatura em todo o mundo, e acompanhado por cheias, fogos e outros eventos climáticos extremos. Espera-se ainda que 2023 seja o ano mais quente desde que há registos.

E sendo visível a multiplicação das iniciativas para que esta espécie de apocalipse tenha um fim – ou, na melhor das hipóteses, uma “travagem” – a verdade é que os líderes políticos continuam a colocar o dinheiro acima dos cataclismos cada vez mais fortes e mortíferos.

Assim, e se na encíclica ecológica e social de 2015 o Papa apelava à urgência de se escutar “os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo”, a presente exortação apostólica “Laudate Deum: a todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática”, considerada como uma espécie de extensão da encíclica de há oito anos, poderá ser descrita como um “grito” de alerta do próprio Papa para a “doença silenciosa que nos afecta a todos” e, em simultâneo, para “um percurso de reconciliação com o mundo”.

De acordo com alguns observadores e mesmo quando lida em conjunto com a Laudato Si’, esta exortação é um tipo diferente de documento papal: o Papa Francisco apresenta em pormenor dados e previsões científicos para estabelecer a necessidade de acção urgente, escrevendo que “apesar de todas as tentativas de negar, ocultar, encobrir ou relativizar a questão, os sinais das alterações climáticas estão aqui e são cada vez mais evidentes”.

Lançada a 4 de Outubro último, Dia de São Francisco de Assis, e como o Papa sublinha nesta exortação, há muito que representantes de 190 países têm-se reunido anualmente para abordar a questão das alterações climáticas. E, embora se tenham registado alguns progressos, os princípios acordados ainda não foram implementados e os interesses nacionais são demasiadas vezes colocados à frente do bem comum.

E é por isso que o Papa confirma a urgência do seu chamamento para se agir, sob pena de estarmos muito perto de uma ruptura irreversível e apelando, tal como fez em 2015, a que a COP28, que terá lugar em finais de Novembro no Dubai, “leve a uma decidida aceleração da transição energética, com compromissos eficazes que possam ser monitorizados de forma permanente” e que esta possa igualmente ser “um ponto de viragem”. [Nesta exortação, o Papa faz um resumo de todas as conferências climáticas, desde 1992, no Brasil, até à COP27, que teve lugar no Egipto em 2022].

Parece igualmente inegável que o Papa Francisco deseja que a Santa Sé seja um verdadeiro actor no cenário das conferências internacionais, influenciando o mais possível resultados que sejam genuínos. E no que respeita ao facto de a próxima COP ser nos Emirados Árabes Unidos – que foram o local de uma iniciativa-chave deste pontificado – a “Declaração sobre a Fraternidade Humana ” – e onde foi assinada a declaração católica-islâmica para a paz mundial e a convivência, mais concretamente em Abu Dhabi em 2019 -, Francisco não deixa de considerar um absurdo a realização de uma conferência sobre as alterações climáticas no Dubai, um Estado petrolífero “conhecido como um grande exportador de combustíveis fósseis”, onde “as empresas de gás e petróleo estão a planear novos projectos, com o objectivo de aumentar ainda mais a sua produção”.

Em Laudate Deum, o Papa recorda ainda que sempre que ocorrem estas conferências sobre o clima, se chama a particular atenção para as acções de grupos ditos “radicalizados”, mas que na verdade são estes que “preenchem um vazio da sociedade inteira que deveria exercer uma sã pressão, pois cabe a cada família pensar que está em jogo o futuro dos seus filhos”.

Francisco escreve ainda que é tempo de se acabar de uma vez por todas com a “atitude irresponsável, que apresenta a questão apenas como ambiental, ‘verde’, romântica e muitas vezes ridicularizada por interesses económicos” e que se admita “que se trata de um problema humano e social em sentido amplo e a diversos níveis”, o que exige portanto o envolvimento e o esforço de todos.

Poderes económicos pretendem apenas o máximo dos lucros a custos mínimos

Neste documento, o Papa adverte também que a procura de soluções exclusivamente tecnológicas não é suficiente para protegermos o ambiente da sua destruição, sublinhando que, “nem todo o aumento de poder representa um progresso para a humanidade” e defendendo veementemente que é necessária uma mudança política a nível nacional e internacional.

Na verdade, o apelo explícito da Laudate Deum parece ser à acção política, o que também explica o facto de a conferência de imprensa em que a exortação foi apresentada não ter sido composta por padres ou teólogos, mas por cientistas, escritores, actores políticos, activistas, a par de um refugiado climático e de um activista ambiental, fotógrafo e realizador de cinema que serve como “embaixador da ONU para o clima”.

Assim, não é de estranhar que sejam vários os observadores que chamam a atenção para o facto de a Laudate Deum se assemelhar mais a um documento político completo do que a uma exortação apostólica, com excepção de alguns textos bíblicos no final (61-66), depois de a análise e a argumentação principais terem sido feitas. Mas será que este texto poderia ter sido publicado pelo Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC), o principal recurso das Nações Unidas sobre as alterações climáticas? Sem a acutilância de Francisco, muito provavelmente. Na verdade cerca de um terço das 44 notas de rodapé referem-se ao IPCC e a estudos relacionados, com a maior parte das restantes a serem citações de encíclicas anteriores do Santo Padre.

Como já o tinha feito na Laudato Si’ , o Papa aponta o dedo à fragilidade internacional e chama à responsabilidade os países que devem contribuir para maiores níveis de implementação de medidas já muitas vezes discutidas, mas não vinculativas, e cujo baixo nível de execução se deve ao facto de não se terem estabelecido “mecanismos adequados de controlo, revisão periódica e sanção das violações”. Francisco recorda ainda que “as negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global”. E defende que um dos grandes desafios da actualidade é o redesenhar do multilateralismo de acordo com a nova situação global.

O Santo Padre lamenta igualmente que as crises globais tenham sido desperdiçadas, quando poderiam ser ocasião para introduzir mudanças salutares, de que são exemplo a crise financeira 2007/2008 e a crise da pandemia Covid-19. De facto, escreve, “parece que as reais estratégias, posteriormente desenvolvidas no mundo, se têm orientado para maior individualismo, menor integração, maior liberdade para os que são verdadeiramente poderosos e sempre encontram maneira de escapar ilesos”, escreve.

Como já é seu apanágio, Francisco não se contém em criticar, mais uma vez, o sistema económico vigente – quem não se lembra da famosa frase “esta economia que mata”presente na Evangelii Gaudium de 24 de Novembro de 2013? – ao escrever que “a lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum e qualquer cuidado pela promoção dos descartados da sociedade”.

O Santo Padre insiste igualmente no chamado “paradigma tecnocrático”, já mencionado em Laudato Si’, o qual e a seu ver, se encontra na base do processo actual de degradação ambiental. Como escreve, trata-se de “um modo desordenado de conceber a vida e a acção do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar”, ao mesmo tempo que “consiste, substancialmente, em pensar como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia”. E, como consequência, “daqui passa-se facilmente à ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia”.

E não deixa de referir o progresso tecnológico que pode ter duas faces, rreferindo-se mais em concreto à nteligência artificial A seu ver,  “nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer…É tremendamente arriscado que resida numa pequena parte da humanidade”. O Papa reitera ainda que “o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites” , lembrando  que estamos incluídos na natureza, e “isso exclui a ideia de que o ser humano seja um estranho, um fator externo capaz apenas de danificar o ambiente”

Criticando igualmente as noções que considera erradas sobre a denominada meritocracia e o seu incremento,” que se tornou um ‘merecido’ poder humano ao qual tudo se deve submeter, um domínio daqueles que nasceram com melhores condições de progresso”, o Santo Padre acusa ainda que esta [meritocracia] “se transforma facilmente num pára-vento que consolida ainda mais os privilégios de poucos com maior poder”. Como afirma também, “nesta lógica perversa, que lhes importa os danos à casa comum, se se sentem seguros sob a suposta armadura dos recursos económicos que obtiveram com as suas capacidades e esforços?”

A COP 28 e o compromisso da fé cristã

Para a próxima conferência sobre as alterações climáticas, o Papa espera que surjam formas vinculativas de transição energética, tendo esperança que os intervenientes reunidos no Dubai “sejam estrategas capazes de pensar mais no bem comum e no futuro dos seus filhos, do que nos interesses contingentes de algum país ou empresa” e que possam, desta forma, “ mostrar a nobreza da política, e não a sua vergonha”.

De acordo com o Santo Padre, esta conferência pode ser “um ponto de viragem, comprovando que era sério e útil tudo o que se realizou desde 1992” ou, e pelo contrário, “será uma grande desilusão e colocará em risco quanto se pôde alcançar de bom até aqui”. E, não sendo a primeira vez, questiona os poderosos: “Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?”.

A última parte de Laudate Deum é dedicada às “motivações que brotam da fé” dos fiéis católicos, encorajando “os irmãos e irmãs de outras religiões a fazerem o mesmo, porque sabemos que a fé autêntica não só dá força ao coração humano, mas transforma a vida inteira, transfigura os objectivos pessoais, ilumina a relação com os outros e os laços com toda a criação”. E acrescenta: “a cosmovisão judaico-cristã defende o valor peculiar e central do ser humano no meio do maravilhoso concerto de todos os seres (…). Formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde. Isto não é um produto da nossa vontade… pois Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação “.

Mas o que é também extremamente importante, escreve Francisco, é lembrar que “não há mudanças duradouras sem mudanças culturais… e não há mudanças culturais sem mudança nas pessoas”.

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