A mobile app CURA, que permite aos refugiados – em particular mulheres – aceder de forma anónima a uma rede de médicos voluntários, foi a grande vencedora do Hack for Good, a maratona digital de impacto social promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian. Na sua 2ª edição, a iniciativa reuniu 150 participantes que, durante um fim-de-semana intenso, desenvolveram 37 soluções para a integração de migrantes nos países de acolhimento. Ao VER, as equipas distinguidas com os três primeiros lugares explicam como as suas ideias tecnológicas permitem melhorar a vida desta população vulnerável
POR GABRIELA COSTA

Com o objectivo de melhorar a vida dos refugiados, uma equipa constituída por cinco mulheres da comunidade Portuguese Women in Tech desenvolveu uma aplicação móvel que liga migrantes e médicos voluntários, a qual permite aceder, de forma anónima, a um conjunto de dados e informação clínica, contribuindo para a integração destas populações nos países de acolhimento.

Conectando os refugiados, em particular as mulheres, com uma rede de médicos voluntários credenciados, o projecto CURA foi o grande vencedor do Hack for Good, a maratona digital de impacto social promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian, e cuja 2ª edição decorreu a 24 e 25 de Junho, em Lisboa.

A iniciativa, lançada em 2016, tem como missão criar uma ligação forte entre o sector tecnológico (e os seus profissionais) e o sector social. Através deste hackathon, a Fundação quer tornar a tecnologia um “enabler”, criador de soluções inovadoras e escaláveis para os principais problemas da sociedade, desde o abandono escolar ao desemprego, passando pelas alterações climáticas ou pela crise de refugiados, tema da edição de 2017 do Hack for Good.

Durante um fim-de-semana intenso, mais de 150 pessoas, entre programadores, engenheiros informáticos, designers, gestores, psicólogos, advogados, médicos e estudantes universitários de todo o País, com idades entre os 18 e os 55 anos, trabalharam afincadamente, nas instalações da Gulbenkian, para demonstrar que é possível colocar a tecnologia ao serviço da resolução de problemas sociais, neste caso os do crescente e vulnerável grupo dos migrantes.

Numa maratona que durou cerca de 30 horas, 37 equipas colocaram o seu conhecimento e criatividade ao serviço do desenvolvimento de soluções de conectividade e acesso à Internet e à tecnologia, soluções de educação formal e não formal online e offline e soluções para reconhecimento de diplomas e documentação, as quais permitem a integração dos migrantes nos países que os acolhem. Os participantes trabalharam ainda no desenvolvimento de inovações tecnológicas que facilitam a integração social, cultural e económica dos refugiados nas suas comunidades de acolhimento.

[quote_center]Numa maratona que durou 30 horas, 37 equipas colocaram o seu conhecimento e criatividade ao serviço do desenvolvimento de soluções tecnológicas que ajudam a integrar os refugiados[/quote_center]

Segundo a Fundação Calouste Gulbenkian, estes desafios foram desenhados a partir de um levantamento de necessidades destas populações, realizado junto de organizações que trabalham diariamente estas questões, nomeadamente o Alto Comissariado para as Migrações; a Câmara Municipal de Lisboa; o Conselho Português para os Refugiados; a Plataforma de Apoio aos Refugiados e o Serviço Jesuíta aos Refugiados; a Plataforma Global de Apoio a Estudantes Sírios (APGES); o Centro de Acolhimento de Refugiados Menores Desacompanhados; a Associação Crescer; a Cruz Vermelha Portuguesa; e a União das Misericórdias Portuguesas.

A iniciativa realizou-se em parceria com o Techfugees, movimento global que se dedica a facilitar a integração de refugiados e o trabalho das ONGs que actuam sobre esta problemática. As equipas contaram ainda com o apoio especializado de mentores de grandes empresas de tecnologia, como a Microsoft e a IBM, com as quais participaram em workshops de realidade virtual, impressão 3D e prototipagem.

Uma CURA para as mulheres refugiadas

Ao cabo de dois dias quase sem dormir, durante os quais as 37 equipas participantes no Hack for Good partilharam, na Galeria de exposições temporárias do Edifício Sede da Fundação Calouste Gulbenkian, conhecimentos e experiência para desenvolverem as suas ideias de negócio, as propostas finais foram apresentadas ao júri – constituído por Luísa Valle (Fundação Calouste Gulbenkian), Pedro Calado (Alto-comissário para as Migrações), Lara Campos Tropa (IBM) e Tiago Silva Ribeiro (NOS) – ao início da tarde de Domingo, dia 25 de Junho. Seguiu-se um pitch dos dez projectos finalistas no Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian, numa sessão pública com transmissão em streaming e, ao final da tarde, o anúncio dos vencedores e a entrega dos prémios.

Desenvolvida por uma equipa liderada por Daniela Seixas, 40 anos, médica neurorradiologista, a mobile app que conquistou o primeiro lugar da maratona tecnológica da Gulbenkian permite esclarecer questões de saúde, recorrendo a ícones e imagens que ajudam na comunicação e integrando tradução simultânea, ao mesmo tempo que preserva o anonimato dos “pacientes”.

[quote_center]O projecto CURA conseguiu angariar 82 médicos voluntários durante o Hack for Good, em menos de 30 horas[/quote_center]

Sem fins lucrativos, o projecto CURA conseguiu angariar 82 médicos voluntários durante o Hack for Good, em menos de 30 horas. A adesão registada durante o evento foi um dos factores que contribuiu para a eleição desta aplicação como a iniciativa mais promissora.

Como explica, em entrevista ao VER, Daniela Seixas, a oportunidade de participarem na 2ª edição do Hack for Good “surgiu a convite da plataforma Portuguese Women in Tech, de que fazemos parte”. A equipa ainda não se conhecia, “mas todas manifestámos vontade de participar no hackaton, quando a plataforma nos lançou o desafio”.

Depois de “um par de reuniões de preparação prévia por Skype”, durante as quais as cinco voluntárias perceberam como podiam trabalhar em conjunto, a ideia base do projecto, lançada pela médica, ficou definida: desenvolver uma app que conectasse médicos a migrantes.

Como explica, “procurámos antes do evento testar essa ideia no terreno, falando com alguns migrantes”. Consequentemente, a equipa percebeu “que havia por onde afunilar a ideia, dirigindo-a à população feminina”, uma vez que “as mulheres são elementos nucleares na família e particularmente vulneráveis. O acesso à saúde é-lhes geralmente garantido em Portugal, mas por vezes sofrem constrangimentos, como obstáculos linguísticos e/ou de natureza sócio-cultural”.

© Fundação Calouste Gulbenkian – Equipa vencedora do Hack for Good 2017, com o projecto CURA

Ao investigar mais sobre a realidade dos migrantes, com o apoio dos seus mentores na maratona tecnológica da Gulbenkian, esta equipa percebeu ainda que podia “fazer a diferença, transformando a app num instrumento de capacitação das mulheres”. A aplicação representaria agora “algo que elas têm na palma da mão, que lhes permite falar, expor um problema de saúde com a segurança do anonimato e a garantia de que do lado de lá está um profissional de saúde acreditado”. E foi assim que o CURA se tornou “num instrumento de empoderamento e de inclusão das mulheres migrantes”.

[quote_center]Percebemos que podíamos fazer a diferença, transformando a app num instrumento de capacitação das mulheres – equipa vencedora do Hack for Good, com o projecto CURA[/quote_center]

Consciente de que “muitos médicos escolhem a sua profissão porque sentem uma vontade de ajudar o próximo”, ainda que nem sempre consigam “associar as suas vidas profissionais ao voluntariado”, a equipa do projecto vencedor resolveu avançar com o lançamento de uma landing page no final da tarde de Sábado e, com surpresa, começou a verificar uma “adesão vibrante” da comunidade médica portuguesa e não só. Como comenta Daniela Seixas, “foi a primeira vez que tivemos a sensação de que estávamos diante de algo que se poderia tornar sério e com pernas para andar. A nossa prova de conceito estava a ganhar forma, logo ali, com números impressionantes”.

Na sua perspectiva (que reflecte a de toda a equipa), o mais relevante da distinção com o primeiro lugar no Hack for Good – com um prémio de 5 mil euros e o acesso a um programa de aceleração de ideias do Montepio e às plataformas da Microsoft e da IBM, para além de duas formações da Syone – “foi terem acreditado no projecto”.

Os prémios serão aplicados integralmente no desenvolvimento da plataforma CURA e as formações proporcionadas pela Syone servirão para o desenvolvimento de competências “que nos podem ajudar a contribuir com mais qualidade”, adianta ainda a especialista em neurorradiologia, segundo a qual o suporte Microsoft “é muito importante, porque a nossa app tem uma componente de tradução cognitiva que é desenvolvida sobre tecnologia Microsoft”. “Estamos empenhadas em fazer acontecer, mas bem. E para isso, todo o conhecimento e suporte que consigamos agregar será essencial para o futuro, nomeadamente, a nível da sustentabilidade do projecto”, conclui Daniela Seixas.

Quanto a perspectivas para o desenvolvimento do CURA, neste momento a equipa está a tentar encontrar apoios institucionais, com o objectivo de garantir que a app esteja disponível o mais depressa possível, com as suas funcionalidades de base de chat em tempo real com tradução integrada, possibilidade de upload de imagens ou documentos e de retenção do aconselhamento médico no equipamento do utente.

Paralelamente, está em vista alargar e organizar a comunidade de médicos e de outros profissionais de saúde voluntários e registá-los na plataforma, assegurando a salvaguarda dos seus dados. Neste contexto, “há muito trabalho pela frente e estamos essencialmente neste momento a organizar forças e a planear os próximos passos”.

Cientes de que “uma app sem fins lucrativos é mais difícil de lançar no mercado”, as cinco voluntárias mantém-se “muito determinadas e confiantes”, porque, e em última análise, “o importante é lançar a app e depois comunicar de forma eficaz com as várias comunidades envolvidas”. Para esta equipa, se o CURA tiver impacto na vida das pessoas o sucesso é garantido, “e acreditamos muito que isso é possível”. 

SPEAK à mesa partilhada

Em segundo lugar nesta maratona digital ficou o projecto SPEAK – Share your Meal, uma plataforma web que promove o encontro entre famílias migrantes e famílias de acolhimento através da partilha de refeições, criando uma rede de suporte informal.

Ao VER, Hugo Menino Aguiar explica que o projecto SPEAK tem sido apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, e tem seguido de perto o trabalho do Techfugees Portugal: “trabalhamos todos os dias com pessoas refugiadas e migrantes no nosso país e sabemos o potencial que a tecnologia tem para ajudar a resolver problemas sociais”, pelo que “não podíamos ficar de fora” do Hack for Good, afirma o co-fundador do SPEAK.

[quote_center]Sabemos o potencial que a tecnologia tem para ajudar a resolver problemas sociais – equipa do projecto SPEAK – Share your Meal[/quote_center]

O desenvolvimento desta ideia surgiu na sequência da participação na iniciativa “Família do Lado”, promovida em Portugal pelo Alto Comissariado para as Migrações, a qual permite que uma família receba em sua casa uma outra família que não conheça, constituindo-se pares de famílias – uma migrante ou refugiada e outra autóctone – para a realização de um almoço convívio, num dia específico do ano, adianta.

Percebendo o impacto que esta iniciativa tem nas famílias, “na quebra de barreiras, na criação de uma rede de suporte e na facilitação de um processo de integração”, e considerando que a mesma – sujeita a um “processo manual e complexo” – só se realiza uma vez por ano, a equipa do SPEAK chegou ao evento da Gulbenkian “com a ideia de automatizar esta iniciativa”. Mas rapidamente percebeu “que o ideal era arranjar forma de permitir que estes encontros pudessem ser realizados em qualquer dia, em qualquer lado e em qualquer momento, tanto num almoço de fim-de-semana como num almoço de Páscoa, jantar de Natal, Ano Novo Chinês ou Eid al-Fitr (celebração muçulmana que marca o fim do jejum do Ramadão).

E começou, assim, a desenhar os processos e a tentar programá-los, “transformando trabalho manual em processos automáticos e o mais ágeis possível”. O resultado é uma plataforma web onde qualquer família se pode inscrever para ser “guest” ou “host” em momentos diferentes.

© Fundação Calouste Gulbenkian – Hack for Good 2017

A plataforma sugere um matching entre as famílias, tendo em conta distância e o número máximo de pessoas que o “host” pode receber, ajudando as famílias ao longo da experiência a terem a informação que precisam para que tudo corra bem, sugerindo tópicos de conversa e dicas para criar uma boa impressão e criando um canal de comunicação entre as duas famílias, antes da experiência do encontro para que se possam conhecer e organizar todos os detalhes, revela ainda Hugo Menino Aguiar. Adicionalmente, a plataforma tem um sistema de tradução automática para a língua que o utilizador quiser, tanto na conversação como no conteúdo do site, “permitindo, por exemplo, que uma família escreva em árabe e outra consiga ler em português”, conclui.

No que respeita ao impacto para o projecto da distinção com o segundo lugar na maratona digital de impacto social – a que corresponde um prémio de 2 mil euros, a atribuição de licenças de acesso às plataformas da Microsoft e da IBM e uma formação da Syone -, o co-fundador do SPEAK considera que “é sinal que devemos lançar o produto e que se o fizermos temos organizações a apoiar para aumentar a probabilidade de sucesso”.

Por último, e quanto a perspectivas para o desenvolvimento desta ideia no futuro, Hugo Menino Aguiar ressalva que “a plataforma foi feita em 30 horas”, pelo que há ainda “muita coisa a corrigir e melhorar”. Mas defendendo que “as parcerias são chave no lançamento da plataforma”, acredita que “se na investigação que fizermos nos próximos tempos percebermos que a solução tem, de facto, potencial para contribuir para o processo da integração de famílias refugiadas e migrantes e para a criação de sociedades que aceitam, valorizam e potenciam a diversidade cultural”, estarão reunidas as condições para “arranjarmos forma de lançar o projecto”.

‘I can speech’ sem barreiras

Já a app gratuita desenvolvida pela equipa de I&D da COMPTA, denominada IconSpeech – We do the talk for you, mereceu o terceiro lugar na maratona digital. Recorrendo a iconografia testada para, através de imagens, criar uma linguagem universal que permita quebrar barreiras de comunicação entre os refugiados e as populações dos países de acolhimento, esta aplicação nasceu de um brainstorm à volta dos vários desafios lançados pelo Hack for Good. Efectuada “a devida investigação introdutória”, a equipa conseguiu esboçar ideias em quase todos os pilares propostos – identidade, educação e inclusão dos migrantes -, como explica ao VER Pedro Santos, R&D Director da COMPTA.

[quote_center]A comunicação por imagens e a tradução em tempo real sobressaíram pela sua simplicidade e exequibilidade – equipa do projecto Iconspeech[/quote_center]

Pouco confortáveis “com a possível dependência de entidades oficiais para que as ideias conseguissem ganhar tracção”, os especialistas em I&D dos vários núcleos da empresa, fisicamente localizados de Norte a Sul do País (e habituados no dia-a-dia “a criar soluções para as necessidades de um mundo que ‘gira’ cada vez mais rápido”) perceberam que a comunicação por imagens e a tradução em tempo real sobressaiam, “pela sua simplicidade e exequibilidade”. A ideia avançou mas o nome da aplicação nasceria apenas no dia seguinte ao evento, “após uma noite bem dormida”: IconSpeech (que na gíria se lê “I Can Speech”, esclarece Pedro Santos).

De referir que a COMPTA havia já participado na 1ª edição do Hack for Good, onde obteve o segundo lugar “com a ideia que hoje se tornou produto e estará disponível ao público muito em breve”. Trata-se do MyXimi – Fighting loneliness through gamification, uma aplicação que pretende lutar contra a solidão e isolamento de familiares e amigos acima dos sessenta anos, através de conceitos de gamificação. O MyXimi esteve presente no WebSummit e no programa de aceleração da Vertical, na Finlândia. Como sublinha este “repetente” na maratona tecnológica da Gulbenkian, após “esta excelente primeira experiência no Hack for Good seria impossível não participar nesta segunda edição”.

E foi assim, com muita garra, que a equipa desenvolveu esta solução tecnológica assente numa linguagem universal e que, com uma interface muito simples e imagens pré-seleccionadas, ajuda a criar e a transmitir mutuamente uma mensagem de forma intuitiva, aliando texto e voz à tradução de uma sequência de ícones numa frase, em duas línguas: a de origem e a de destino.

O projecto foi premiado com telemóveis NOS para todos os elementos da equipa, licenças de acesso às plataformas da Microsoft e da IBM e uma formação da Syone. Mas, para Pedro Santos, “o melhor prémio” foi “termos tido a oportunidade de subir ao pódio”, pois isso “significa que a nossa ideia faz sentido no contexto apresentado”. As licenças “darão obviamente uma grande ajuda, pois vão permitir-nos explorar algumas das melhores ferramentas que existem no mercado”, e essencial será também ter acesso “a mentoria e formações que, num contexto de evolução tecnológica, são preciosas”, conclui.

Esta app gratuita será inserida no Lusideias, uma plataforma da COMPTA que promove a inovação e, desta forma, permite definir os passos estratégicos para a disponibilização de uma solução deste género ao público. Depois desta vitória, será agora necessário “aprofundar algumas questões que podem fazer a diferença, nomeadamente no estudo da iconografia bem como no problema complexo de juntar conjuntos de imagens e todas estas combinações em algo que seja fácil usar, intuitivo e de rápida aprendizagem”.

Ou seja, esta é uma “ideia simplista”, mas que “comporta sérios desafios pela frente”. Face aos quais a atitude da equipa da I&D da COMPTA se resume nesta frase: “quanto maior o desafio, mas divertido vai ser ultrapassá-lo”.

As equipas dos três projectos vencedores irão agora trabalhar para transformar em ideias de negócio concretas para melhorar a vida dos refugiados as suas soluções tecnológicas. Quanto à maratona digital da Fundação Gulbenkian, para o ano há mais. O Hack for Good irá voltar a realizar-se e, como anunciou a presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Isabel Mota, no encerramento do evento, poderá ser estendido a outras cidades, nomeadamente a Coimbra e ao Porto.

Jornalista