No meio de tanto dinheiro e tantos projetos (22,2 mil milhões de euros, para concretizar 44 reformas e 117 investimentos) existe muita coisa boa. Mas, tal como o PRR não acelerou o nosso desenvolvimento nos últimos dois anos, dificilmente fará realmente diferença no futuro nacional
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES

A pandemia COVID 19 gerou gravíssimos problemas, da saúde à educação, da desigualdade à produção. Não foi para isso que a UE, em junho de 2020, concebeu o fundo Next Generation EU. A retórica falava das dificuldades das populações, mas o que realmente preocupava as autoridades era a perda de confiança dessas populações na sua liderança. No meio da catástrofe era preciso fazer algo que valorizasse as instituições. O fundo gigantesco foi a genial solução. Nesse sentido, o PRR já funcionou perfeitamente. A UE ganhou protagonismo e tem estado no centro das atenções. Há quatro anos que os governos têm uma resposta para todas as perguntas: o PRR.

Que o tal fundo pouco tem a ver com a pandemia é fácil de provar. Primeiro, a emergência foi em 2020 e 2021, mas o dinheiro só chega de 2022 a 2026. Para resolver a contradição usou-se um truque: a finalidade afinal não era a pandemia, mas a “reconstrução e resiliência”. Não se tratava a crise, mas a posterior recuperação. Só que essa não precisa do financiamento, pois foi quase automática: a recessão nasceu dos confinamentos, que bloquearam mercados, perturbaram fornecimentos e aumentaram preços; quando a emergência acabou, as coisas normalizaram. Existem óbvias dificuldades de transição, mas também para essas o fundo é inútil, como o PRR também foi alheio à subsequente inflação. Os verdadeiros problemas da crise de 2020 passaram ao lado do programa.

Para resolver esta segunda contradição usou-se um segundo truque. Afinal, apesar do nome, o fundo não se dirigia à reconstrução e resiliência, mas à digitalização e descarbonização. Isso é quase irónico, porque estas duas finalidades, mesmo se muito meritórias, são, não apenas alheias à pandemia, mas até favorecidas por ela. Com as pessoas fechadas em casa, sem emissões e usando métodos remotos, a catástrofe COVID-19 foi quem mais contribuiu para as transições climática e digital. Assim, afinal, o PRR não combateu os males da pandemia; promoverá as suas (poucas) vantagens.

Estas considerações, provando que o programa não liga ao interesse do povo, mas à imagem dos líderes, não chegam para mostrar que o PRR será um fiasco. A razão disto tem a ver com dois outros aspetos.

Em primeiro lugar, a dimensão. Um fundo gigantesco, dando quatro anos para gastar milhões, torna inevitável desperdício, precipitação, abuso. Se a Europa queria realmente resolver os problemas, devia dar menos, com mais tempo e mais cuidado.

O segundo problema é o elitismo. Séculos de história e bibliotecas de investigações mostram que o desenvolvimento de uma nação provém do esforço concertado de milhões de cidadãos, cada um a resolver os seus problemas. A governação mantém ordem, aplica justiça, coordena iniciativas, mas nunca dinamiza o progresso. Ao lado desta certeza existe a tese oposta que atribui o elemento decisivo às elites, chefes, heróis. Quem sabe são os especialistas, a quem a populaça deve seguir.

Desde o início que o projeto europeu mistura ambas as ideias. Por um lado, o princípio orientador é abertura, liberdade, interação, maximizando oportunidades de iniciativa. Por outro, a própria conceção nasce de um pequeno escol, que a impõe à multidão para o bem desta. O PRR é apenas a mais recente manifestação disto. Os milhões gerados pela intuição política de um punhado tanto podem promover o desenvolvimento nacional como a superestrutura das elites. Dirigem-se a inovações, investimentos e produtividade, ou a mecanismos de controle, regulação funcionalista e fomento corporativo? A resposta depende da implementação concreta.

Em Portugal, o sebastianismo atávico sempre impediu as teses descentralizadas e empreendedoras de vingar nestas latitudes. Agora chegou-se ao paroxismo: foi escolhido um único cérebro para planear e dirigir todo o projeto. Depois do Marquês de Pombal, Mouzinho da Silveira, Afonso Costa e Salazar, o Portugal de 2026 foi concebido sob o despotismo iluminado de Costa Silva, o autor do programa original e ministro que o orientou nos primeiros anos.

O enviesamento estatista vê-se bem nos detalhes. A esmagadora maioria das verbas dirige-se a construção e burocracia. Alguns detalhes são estarrecedores. Um dos piores efeitos da pandemia, e depois da inflação, foi sobre os mais pobres, agravando muito o problema da desigualdade estrutural do país. Mas o pilar “C3. Respostas Sociais” ocupa menos de 5% do total e, mesmo isso, é quase só construção e burocracia. O dinheiro não vai para os necessitados, mas para instalações e serviços. Quanto à questão concreta do desenvolvimento, “C5. Capitalização e Inovação Empresarial” só ocupa 22% das verbas, e quase metade disso é para financiar um novo banco público, porque ter dois é sempre bom.

Claro que, no meio de tanto dinheiro e tantos projetos (22,2 mil milhões de euros, para concretizar 44 reformas e 117 investimentos) existe muita coisa boa. Mas, tal como o PRR não acelerou o nosso desenvolvimento nos últimos dois anos, dificilmente fará realmente diferença no futuro nacional.

Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas

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