POR GABRIELA COSTA A Comunidade Vida e Paz promoveu, nos dias 15, 16 e 17 de Dezembro, a sua 29ª Festa de Natal com as Pessoas em Situação de Sem-Abrigo. O evento da organização tutelada pelo Patriarcado de Lisboa realiza-se há quase 30 anos (desde 1989), constituindo um marco do Natal na capital. Este ano decorreu na Cantina Velha da Universidade de Lisboa, na Cidade Universitária, integrando três dias de animação, refeições quentes e um conjunto de actividades e serviços de apoio a esta população vulnerável, e reunindo perto de 1500 pessoas sem-abrigo, que foram acompanhadas por quase outros tantos voluntários.
Esta festa dedicada a convidados “muito especiais” é feita de “momentos mágicos” que visam demonstrar que “a mudança é possível”, a partir de um “primeiro passo”, que está ao alcance de cada um, com o apoio da organização dedicada a pessoas sem-abrigo ou numa condição de vulnerabilidade social, através de uma acção integrada de prevenção, reabilitação e reinserção. Em 2017, o mote para o evento foi a campanha criada pela Agência Partners “Ajudar a dar a volta”, inspirada nas 4 ‘voltas’ que as Equipas de Rua da Comunidade Vida e Paz percorrem para irem ao encontro das pessoas em situação de sem-abrigo, e através da qual todos podem contribuir, com uma chamada para o número de valor acrescentado 760 50 10 20 (0,60€ + IVA).
O VER esteve presente, no sábado, dia 16, nesta Festa de Natal, e conversou com duas pessoas sem-abrigo, com um patrocinador e com a responsável de Comunicação da Comunidade Vida e Paz.
Para Rita Roquette o evento, que significa o culminar de 365 dias de trabalho da organização, “é mais uma forma de sermos ComUnidade e de reforçar os laços e a relação de proximidade entre os voluntários e as pessoas que apoiamos regularmente”. O maior objectivo é, durante os três dias da festa, “proporcionar um Natal em família e disponibilizar o acesso a inúmeros serviços a que habitualmente as pessoas não recorrem”, como a oferta de roupa e o atendimento prestado nas áreas de saúde (consultas médicas e dentárias), bem-estar (cabeleireiro) e cidadania (serviços da Loja do Cidadão e apoio jurídico).
Como sublinha a responsável, “é difícil destacar algumas áreas, porque cada uma tem a sua importância e cumpre determinado objectivo”. Mas vale a pena realçar a importância do Espaço Aberto ao Diálogo, “pelo impacto que pode ter na transformação da vida das pessoas em situação de sem-abrigo”. Trata-se de um serviço de atendimento permanente que funciona com uma equipa técnica que avalia e orienta cada caso para a resposta interna ou externa à Comunidade que melhor se adeqúe à sua problemática, proporcionando apoio às necessidades básicas de saúde, higiene pessoal, alimentação, regularização da situação legal e procura de emprego.
Instalado durante três dias na Cantina da Cidade Universitária, o Espaço Aberto ao Diálogo recebeu 91 pessoas com vontade de mudar de vida. Após uma primeira abordagem por parte dos técnicos da Comunidade, estas pessoas serão agora encaminhadas para “um diagnóstico mais aprofundado que irá permitir compreender a sua problemática e qual a resposta social mais adequada, tendo em conta o seu perfil”. A resposta poderá passar pela Comunidade Vida e Paz, pela Comunidade Terapêutica ou de Inserção, ou pela intervenção de outra instituição com quem a organização trabalhe em parceria, explica Rita Roquette.
No balanço final da edição deste ano da Festa de Natal com as Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, os números que se seguem provam a dimensão da iniciativa e a sua relevância ao nível da solidariedade com que os portugueses enfrentam uma das mais complexas problemáticas sociais do País: a 29ª edição do evento reuniu 1492 pessoas sem-abrigo convidadas (ainda assim, menos que em 2016 – 1685), que foram acompanhadas por mais de 1300 voluntários (número superior ao ano passado – 1252). Foram servidas 3150 refeições e distribuídas 4637 peças de roupa. As equipas técnicas atenderam 325 pessoas na área do cabeleireiro, 682 pessoas na área da Saúde e 307 pessoas na área da cidadania. A acção solidária estendeu-se ainda aos cidadãos de todo o país, através da campanha “Ajudar a Dar a Volta”, cujo valor angariado reverte para os custos inerentes à Festa de Natal, mas desta missão da Comunidade para ajudar a dar a volta à vida das pessoas em situação de sem-abrigo não se conhece ainda o resultado final, já que o mesmo está a ser apurado.
O evento recebeu também as visitas do Presidente da República que, no último dia da Festa, assistiu à Eucaristia presidida pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente. O Presidente da Comunidade Vida e Paz, Horácio Félix, aproveitou a ocasião para enaltecer a dedicação e o empenho do chefe de Estado com a causa das pessoas em situação de sem-abrigo, afirmando que o Presidente “tem sido a voz daqueles que não têm tido voz”.
Quanto ao valor inestimável dos voluntários em todo o trabalho de logística, transporte, acolhimento e, principalmente, de integração desta população vulnerável, e como diz, peremptória, Rita Roquette, juntamente com os profissionais da Comunidade, o seu papel é “extremamente importante” : são eles “quem faz a primeira abordagem com as pessoas em situação de sem-abrigo nas Equipas de Rua, que depois é continuada pelos colaboradores profissionais”. E são eles que “começam por estabelecer uma relação de confiança” com estas pessoas, o “que lhes permite posteriormente motivá-las à mudança”.
No que respeita ao significado que o evento tem para combater a solidão e promover a integração desta população socialmente excluída, esta festa, que “é já tradição na cidade de Lisboa”, constitui “uma forma de proporcionar o convívio entre todos, de forma a quebrar alguns preconceitos e estereótipos que se criam em torno das pessoas em situação de sem-abrigo”, permitindo “ter mais contacto com a realidade das pessoas que vivem na rua ou em situação de vulnerabilidade social”, conclui a Responsável de Comunicação de Comunidade Vida e Paz.
De momento, esta Comunidade apoia diariamente cerca de 450 pessoas em situação de sem-abrigo, através das Equipas de Rua, e tem nos Centros (terapêuticos e de inserção) cerca de 250 pessoas em programa de recuperação e inserção.
“Caí na tentação de ter privacidade e fui encontrá-la na rua”
Luís de Sousa, 55 anos, caiu no desemprego depois de trabalhar vários anos numa empresa de serviços de limpeza. A frágil situação em que ficou, associada à morte do pai (“quem mais amava na vida”) e a problemas familiares, levou-o a refugiar-se no álcool e, consequentemente, a entrar numa espiral de destruição que o fez ‘bater no fundo’: “caí na tentação de ter privacidade e fui encontrá-la na rua”, diz ao VER, na 29ª Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz.
Em Fevereiro de 2017 começou a dormir ao relento, junto do centro comercial Apolo 70, no Campo Pequeno, juntamente com outra pessoa sem-abrigo. Esta condição, felizmente e ao contrário de muitos outros casos, durou apenas alguns meses.
Em Setembro “não só o apoio, mas o carinho” da Comunidade Vida e Paz permitiu-lhe encontrar o ânimo de que precisava para dar a volta à sua vida. Uma equipa de voluntários que integra a actriz Sílvia Rizzo sinalizou o caso de Luís.
Depois de começar a ter acesso a banhos, jantares e ao aconselhamento do Espaço Aberto ao Diálogo, conseguiu um lugar para dormir num albergue da Santa Casa da Misericórdia, onde permaneceu cerca de três meses. Para Luís, a “verdadeira história começa aqui”. Pois este breve percurso com o apoio da organização permitiu-lhe chegar onde está hoje: a viver sozinho numa casa alugada no centro de Lisboa com o apoio da Santa Casa, cuja parcela da renda paga com o Rendimento Social de Inserção. “Todo o milagre que me aconteceu foi através da Comunidade Vida e Paz”, conclui.
Álcool, continua a beber mas “só de quando em vez”, em ocasiões sociais, diz ao VER, sublinhando que “desde a 2ª Feira” anterior à festa não toca numa gota daquela que foi a derradeira causa para ir parar à rua…
Hoje, o seu objectivo é retribuir o que recebeu e, para tanto, já falou com um responsável da Comunidade Vida e Paz para se tornar voluntário à noite, nas Equipas de Rua da Comunidade, o que deverá acontecer a partir do próximo ano. Como diz, emocionado, “é uma maneira de lhes agradecer”. Outra é tentar ajudar quem está sozinho na rua, como já esteve. Já tentou cativar algumas pessoas “para virem fazer parte desta casa”, incluindo o senhor com quem partilhou uma ‘cama de cartão’, no Campo Pequeno, sem sucesso. Ainda assim, há um novo utente na Comunidade Vida e Paz que ali chegou pela sua mão.
Sublinhando que a única imagem que tem no coração é “a destas pessoas, que só me fizeram bem”, Luís de Sousa desabafa que quando foi parar à rua “só tinha a roupa do corpo”, mas desde que aceitou, “de alma aberta”, o convite para integrar esta casa, a sua vida “mudou por completo. Quem me viu e quem me vê”, diz a sorrir.
Este utente da organização testemunha ainda a alegria que sentiu quando foi convidado a participar na Festa de Natal – “até chorei”, diz. Sobre o evento, refere que o mais importante é que as pessoas em situação de sem-abrigo possam estar presentes e participar em todos os jogos e momentos de animação, beneficiando do apoio que é prestado a vários níveis. Este é o seu Natal, porque no dia 24 de Dezembro, ainda não sabe “como vai ser: não sei se terei a companhia de algum familiar ou se fico sozinho e me junto à ‘sopa dos pobres’ nos Anjos, e comemoro com eles”.
“Há 20 anos que a rua era a minha casa”
“Fui parar à rua. Dormi na Gare do Oriente, em Arroios, no Martim Moniz. Há 20 anos que essa era a minha vida”. Desde cedo que Paulo Amador, 45 anos, ficou marcado por uma história de vida dramática. A sua mãe faleceu de cancro quando tinha quatro anos. Sem nunca conhecer o pai, e com um padrasto que estava sempre ausente por motivos profissionais e uma irmã mais nova ainda do que ele, foi institucionalizado na Santa Casa da Misericórdia de Almada, onde frequentou um colégio interno. E logo aí se iniciaram as suas incursões nas noites ao relento: “às vezes fugia e dormia onde calhava”, conta ao VER.
Concluiu o 5º ano de escolaridade na instituição, mas quando completou 18 anos teve de orientar a sua vida sozinho. Trabalhou durante um ano numa fábrica de carne, no Casal do Marco (Seixal), até que o termo do seu contrato de trabalho o deixou no desemprego e o fez abandonar o quarto que arrendava, em Corroios. Juntou-se a uma comunidade de etnia cigana da Arrentela, também na Margem Sul, e durante algum tempo sobreviveu graças ao que vendia em feiras e mercados. Trabalhou com cavalos mas essa foi a última profissão que teve até hoje: aos 25 anos, um AVC atirou-o para uma cama de hospital, onde permaneceu em coma durante um mês, levando mais dois a recuperar o seu estado de saúde.
Passou então, numa curta estadia, por um lar da Santa Casa da Misericórdia da Trafaria e daí seguiu rumo a Lisboa, onde alugou sucessivos quartos – com a reforma de cerca de 200€ que mantém – em casas partilhadas por várias famílias: “passei por 18 quartos em casas onde vivia tudo misturado, muitas pessoas, drogas e álcool”, desabafa. Consumiu haxixe e experimentou drogas mais pesadas, como heroína, bebeu o que teve de beber. Mas hoje só bebe “à hora das refeições”, garante.
Conheceu a Comunidade Vida e Paz há quase duas décadas, na ‘volta’ das carrinhas por Santa Apolónia, e durante todos esses anos a organização tentou tirar Paulo da rua. “Queriam que eu fosse viver para uma das três quintas que têm. Mas eu não queria estar fechado”. Em 2015, e com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, foi acolhido num centro no Alto de São João, mas roubaram-lhe a televisão e outros pertences – mote para mais um deslize até às noites passadas ao relento.
Entre Agosto do ano passado e Março deste ano a Gare do Oriente foi o seu único abrigo, até que, através da Santa Casa da Misericórdia do Cais do Sodré, soube da existência do Projecto Casas Primeiro – que disponibiliza apoio ao arrendamento e acompanhamento de pessoas sem-abrigo e com doença mental da cidade de Lisboa, através de um protocolo entre o Instituto de Segurança Social e a Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS). Graças ao mesmo conseguiu arrendar uma casa em Lisboa, por 95€, onde vive sozinho. “Este projecto permitiu-me sair da rua”, agradece, reconhecendo que o apoio à habitação, juntamente com os bens alimentares que recolhe nas Igrejas e os serviços da Comunidade Vida e Paz de que beneficia – principalmente, “os bons conselhos”, diz – são essenciais para que, ao final de quase vinte anos, esteja a conseguir abandonar a condição de pessoa sem-abrigo. Mas Paulo Amador não quer voltar a trabalhar. Prefere “não perder o valor da reforma”. Também não quer ser voluntário. Prefere continuar a vir à Festa de Natal que frequenta quase desde o seu início como utente. A vida encarregou-se de o fragilizar, o AVC deixou-lhe sequelas para sempre, e hoje apenas sabe que, com a pouca família de sangue que ainda tem não se quer “enervar” e que a sua verdadeira família “são algumas pessoas daqui” (da Comunidade): “quem está, está, quem não está, foi”, conclui com ar de indiferença para logo acrescentar: “algumas pessoas gostam de mim”.
Para si, o Natal “é um dia como os outros”, mas da Festa realizada na Cantina Velha da Cidade Universitária gosta “de tudo”. E, revelando que o seu aparente marasmo tem por detrás alguém que afinal se preocupa, Paulo explica ao VER que o mais importante, no evento, não é a Ceia, nem os jogos ou a animação, mas a oportunidade que as pessoas em situação de sem-abrigo têm de “conversar e receber apoio dos técnicos”, para que um dia reconstruam, como ele está a reconstruir, o seu projecto de vida.
Empresas e organizações com espírito solidário
Para além do trabalho imprescindível dos 1300 voluntários que, durante três dias, asseguraram todos os serviços prestados às muitas pessoas sem-abrigo da cidade de Lisboa, na Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz, o evento não seria possível sem a colaboração do meio empresarial, que contribuiu com inúmeros donativos em espécie, do bacalhau, aos ovos e batatas, para a Ceia, às massas e outros produtos alimentares e de higiene, para preparar as várias refeições e o acolhimento dos convidados, passando por donativos monetários e prestação de diversos serviços gratuitos.
Entre as mais de 100 empresas que este ano colaboraram na iniciativa esteve o Conselho Norueguês das Pescas em Portugal. Associando-se ao evento nos últimos três anos, com dádivas de bacalhau, a Norge doou, nesta edição, 200 quilos do obrigatório peixe para a ceia natalícia, disponibilizando ainda dois elementos da organização, que se ofereceram para fazer voluntariado. Em declarações ao VER, Johnny Thomassen, director do Conselho Norueguês das Pescas (e voluntário na Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz) sublinhou que os objectivos da empresa, com esta participação, são “associar-se ao espírito natalício da época, em que os valores da inclusão assumem particular relevância”, e “transformar esta celebração solidária num momento de festa e partilha em que todos podem saborear o bacalhau originário do mar da Noruega, um ingrediente que não pode faltar na Ceia de Natal dos portugueses”.
Para além da mais de uma centena de empresas que se juntaram à maior Festa de Natal com as pessoas sem-abrigo da capital, estiveram presentes entidades como a Reitoria da Universidade de Lisboa, os Serviços de Acção Social da Universidade de Lisboa, a Câmara Municipal de Lisboa, a Junta de Freguesia de Alvalade, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o Exército Português, a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a Rodoviária de Lisboa, a Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa, o Centro Hospitalar Lisboa – Norte, o Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, os Médicos do Mundo, o Instituto de Registo e Notariado, a Agência para a Modernização Administrativa, a Segurança Social, a Associação Pro Bono, o ACIDI (Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural), o Centro de Apoio Médico, Psicológico e Social da Liga dos Combatentes de Lisboa e o Projecto Orientar.
Jornalista