POR RICARDO CALLEJA
© IESE Business School
No âmbito de uma participação recente num evento organizado pela UGT (o sindicato de trabalhadores socialistas espanhol) para o qual fui convidado em Barcelona e cujo tema de debate se prendia com o futuro do trabalho na Indústria 4.0, o meu ponto de partida foi: face a toda esta mudança, e respondendo à questão do que é essencial e do que deve ou não mudar, esta é de importância gigantesca. Assim, e no nosso caso: o que é o trabalho, e será que o mesmo é intrinsecamente bom? Ou, colocando a questão de uma outra forma: se pudéssemos prover um determinado rendimento que cobrisse as necessidades pessoais e familiares e uma quantidade decente de laser para estratos sociais alargados de “desempregados tecnológicos”, será que isso seria desejável?
Esta pergunta é crucial e uma resposta clara foi dada por Yuval Harari – um guru para os visionários de Silicon Valley, incluindo Mark Zuckerberg, e autor do muito aclamado livro “Homo Deus”. Numa peça recente publicada pelo The Guardian, Harari [em conjunto com muitos outros especialistas de várias áreas que têm insistido neste mesmo alerta] assegura que (muitos) serão os trabalhos que, certamente, virão a ser destruídos [devido à automação e à Inteligência Artificial]. Todavia, e a seu ver, esta notícia, ou inevitabilidade, não é assim tão terrível na medida em que os humanos sempre encontraram formas alternativas de criar sentido para as suas vidas através do que denomina como formas de “realidade virtual”, ou seja, narrativas e jogos artificialmente construídos similares à importância que a religião tem nas nossas vidas. Assim, uma combinação de um rendimento básico universal e formas verdadeiramente realistas de realidade virtual poderiam satisfazer essa sede de significado.
Também recentemente, o co-fundador e CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, proferiu uma palestra astuta – onde, adivinhem? – em Harvard, a universidade da qual nunca se chegou a graduar. E abordou, e muito bem, a necessidade de propósito e os desafios de construir esse mesmo propósito num mundo onde os diferentes tipos de trabalho estão a ser transformados (para não dizer, “varridos”), onde os laços comunitários estão a ser enfraquecidos e onde a desigualdade continua a aumentar. Num tom idealista, Zuckerberg desafiou a geração de millennials, na qual ele próprio se inclui, para a criação de um novo contrato social. Apelou a uma sociedade na qual qualquer pessoa possa ter a oportunidade de criar propósito e persegui-lo, mediante a garantia de uma “almofada” oferecida por um rendimento básico universal. Claro que convém não esquecer que uma iniciativa de empreendedorismo representa, por excelência, uma actividade de criação de propósito, com o seu dinamismo de tentativa e erro.
Mas e de regresso à minha plateia de trabalhadores da indústria de certa forma menos sofisticados. Em resposta às minhas questões filosóficas, alguém interveio: “Abandonar o trabalho? Isso representaria o fim do propósito na nossa civilização judaico-cristã! A Bíblia diz: ‘comerás o teu pão com o suor do teu rosto’”. Fiquei surpreendido – e agradecido – por esta profunda observação ir exactamente ao encontro do meu ponto de vista. Tive, contudo, de completar a referência, recordando-lhe que o Livro de Génesis afirma: “O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar”. E foi só quando o que teologia denomina como “pecado original” surgiu que o fardo do suor e da labuta foi colocado nos nossos ombros. E esta poderá ser uma explicação simbólica da ambivalente natureza do trabalho, capaz de fazer com que nós e as nossas comunidades floresçam, mas tendo também a capacidade de nos alienar.
“Sem trabalho para todos, não existirá dignidade para todos”
Surpreendentemente, e uns dias depois deste episódio, foi o Papa Francisco que alertou para este mesmo debate, abordando as mesmas questões, quase palavra por palavra, enquanto respondia às perguntas de muitos trabalhadores durante um encontro em Génova. As perguntas colocadas sublinham muitas das angústias económicas dos nossos tempos: incertezas face ao futuro, desemprego, salários baixos, horas de trabalho intermináveis, desequilíbrio entre família e trabalho, etc.. E as respostas de Francisco, proferidas com profunda convicção, são originárias da sua experiência e, sim, da Bíblia.
Também o Papa alertou para a urgência de um novo contrato social, numa linguagem muito similar à de Zuckerberg e de muitos outros. E certamente elogiaria o apelo de Zuckerberg para a criação de propósito e significado – Francisco optaria por dizer, estou certo, em busca do propósito. E, contudo, foi bastante específico no que respeita a um ponto no qual tem insistido várias vezes:
Homens e mulheres são alimentados através do trabalho; e é pelo trabalho que são “ungidos com dignidade”. Por esta razão, o pacto social na sua completude é construído em torno do trabalho. E este é o âmago do problema, porque quando não se trabalha, ou se trabalha mal, ou se trabalha pouco ou se trabalha de mais, é a democracia que entra em crise, e todo o pacto social.
Todavia, não cometamos o erro de pensar que o Papa não está sensibilizado para o que a tecnologia poderá trazer em termos de condições laborais e, muito menos, que não esteja preocupado com a questão. Contudo, Francisco extraiu também conclusões desta premissa que questiona a abordagem do rendimento básico universal – típica dos visionários da tecnologia:
É assim necessário olhar sem medo, mas com responsabilidade, para as transformações tecnológicas da economia e da vida, e não nos resignarmos a uma ideologia que está a ganhar terreno um pouco por todo o lado, que imagina um mundo onde apenas metade ou dois terços dos trabalhadores terão trabalho e os demais serão suportados por benefícios sociais. Tem de ficar claro que o verdadeiro objectivo a alcançar não é o de um “rendimento para todos”, mas antes o de “trabalho para todos”. Porque sem trabalho, sem trabalho para todos, não existirá dignidade para todos.
A questão crucial é, e mais uma vez, pensar na natureza do trabalho, na sua verdadeira essência. E como afirma Francisco:
O trabalho de hoje e o de amanhã será diferente, talvez muito diferente e basta pensarmos na revolução industrial e nas mudanças que a mesma provocou. Neste caso existirá também uma revolução – e o contexto laboral será diferente, mas terá de haver trabalho e não pensões ou subsídios: trabalho.
A verdade é que parece existir algo específico no trabalho enquanto fonte de significado e dignidade, o que é diferente de uma forma meramente instrumental de se ganhar a vida ou, no extremo oposto, enquanto forma de expressar a nossa individualidade.
Nas suas respostas, Francisco parece apontar para um trio de elementos, os quais estão usualmente separados em outros contextos: o trabalho é um serviço prestado aos outros, aos indivíduos e às comunidades; exige esforço e sacrifício; e tem de incluir uma dose de criatividade e liberdade humanas.
O Papa não esteve presente no evento da UGT, mas penso que a audiência de trabalhadores, e apenas por discutir a questão abertamente, chegou a uma conclusão muito similar.
Traduzido, com permissão, de Meaningful Work and the Universal Basic Income. From Zuckerberg to Pope Francis. © IESE Business School
Doutorado em Filosofia Legal e Política, pela Universidade Complutense de Madrid, onde se licenciou em Direito. É igualmente professor no IESE e académico convidado na Busch School of Business (Universidade Católica da América, Washington D.C.) e no Mendonza College of Business (Universidade de Notre Dame, Indiana)