O argumento da “fuga de cérebros” é em grande medida falacioso. Não se nega que estamos a formar especialistas que prestarão o seu contributo em sociedades alheias. Mas, quando um dia, como esperamos, o bloqueio acabar e a economia voltar a precisar de pessoas com formação de qualidade, não será a sua falta que impedirá esse progresso
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES
«Jovem, se queres ter futuro vai lá para fora». É fácil sentir a amargura, o desalento, até a revolta que implica esta frase, crescentemente repetida. Podemos usá-la como conselho amigo, lamento nacional ou arma de arremesso, mas não restam dúvidas que constitui um elemento marcante do diagnóstico sombrio da situação portuguesa.
Os traços que justificam a afirmação são evidentes. Desde 2004 saiu de Portugal um cúmulo de 500 mil pessoas. O fluxo começou por crescer, dos 6 mil que emigraram nesse ano até ao pico de 54 mil em 2013, descendo em seguida; mas em 2022 ainda perdemos mais de 30 mil. Por outro lado, o movimento é bem marcado, com cerca de três quartos dos que vão abaixo dos 40 anos e mais de metade entre os 25 e os 35 anos.
Ver os jovens partir, além de profundamente desmoralizador, cria fortes divisões familiares, que as tecnologias de comunicação só parcialmente compensam.
Qual o significado do processo? Sem dúvida que esta migração tem uma causa evidente: a falta de perspetivas económicas.
As nossas empresas há 25 anos que estão descapitalizadas e empasteladas numa dinâmica medíocre. Uma comparação simples chega para o mostrar, através do matagal retórico dominante. Nos 23 anos (92 trimestres) desde meados do ano 2000 até à atualidade, só em quatro deles a taxa de crescimento da economia de um trimestre para o seguinte foi superior a 2%, e todos na recuperação do solavanco pandémico. Nos 23 anos anteriores a meados do ano 2000 existiram 11 trimestres com crescimento acima de 2%. Não podem restar dúvidas que este século contém mais de duas décadas perdidas para o progresso.
As razões do bloqueio são muitas e variadas, mas também patentes: o país anda ocupado com outras coisas – pensões, rendas, burocracias, ativismos, promessas – sem tempo para se dedicar ao investimento, produtividade e empreendedorismo, únicas formas de aumentar a produção.
É verdade que o desemprego se tem mantido baixo, mas é inelutável a sensação de que, como a nossa economia gera poucos empregos de alta qualidade, estamos a trocar jovens portugueses habilitados por emigrantes sem formação. De facto, em 2023 Portugal mantinha-se como o país da União com maior percentagem de emprego com educação secundária baixa ou inferior (níveis 0-2) que, num valor de 34%, é mais do dobro dos 15,2% da média europeia.
Estes argumentos são conhecidos e indiscutivelmente negativos. Aquilo que raramente se diz, e que deve ser aduzido para se conseguir uma visão mais equilibrada da realidade, tem a ver com as grandes vantagens económicas da mobilidade laboral. Realmente, no meio desta dinâmica cinzenta, a emigração constitui um ganho, não um defeito.
Portugal é há séculos um país de viajantes. O surto migratório a que hoje assistimos é o terceiro grande movimento dos últimos cem anos e, por enquanto, o mais reduzido. Nas décadas de 1960 e 1970 o país atingiu recordes mundiais de movimentos demográficos, com valores inusitados, aliás nos dois sentidos. Por isso o que nos está a acontecer é algo normal na nossa natureza e, em si mesmo, altamente favorável.
Claro que todos gostaríamos que a nossa economia gerasse bons postos de trabalho que fixassem os nossos jovens. Mas dado que não o faz, por erros políticos e atavismo social, o facto de os lusitanos terem a iniciativa e a coragem de procurar alternativas noutras paragens constitui uma válvula de escape que não existe em parceiros europeus com problemas semelhantes. Assim, ganham os que vão, ganham os que os recebem e até ganhamos nós com o seu sucesso.
Além disso, o argumento da “fuga de cérebros” é em grande medida falacioso. Não se nega que estamos a formar especialistas que prestarão o seu contributo em sociedades alheias. Mas, quando um dia, como esperamos, o bloqueio acabar e a economia voltar a precisar de pessoas com formação de qualidade, não será a sua falta que impedirá esse progresso. Certamente que estes que hoje vão, ou outros, saberão aproveitar tais oportunidades. Num mundo globalizado e crescentemente educado, abundarão candidatos a uma sociedade que reencontre o dinamismo de outras eras.
Por outro lado, a migração hoje já não é o que era, sendo inegável que as condições da viagem e acolhimento melhoraram espantosamente. Na época da “mala de cartão” os parentes despediam-se para o desconhecido e um longo afastamento, aliviado apenas pelos morosos meios postais. Hoje, antes de partir, sabemos tudo sobre o destino, estamos seguros numa cidadania comunitária e os contactos eletrónicos permitem aos ausentes uma assiduidade até maior que muitos do bairro ao lado.
Ninguém pode negar a dor envolvida na separação e os graves efeitos sociais e culturais de uma população em decadência. Mas a emigração constitui em si mesmo, hoje como nos últimos séculos, um dos grandes valores da economia portuguesa.
Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas