O ‘novo hit’ que agita a Europa chama-se Lei do Restauro da Natureza e é uma história de ambição, conflito e compromisso, tal como a evolução de um álbum inovador. É uma história fascinante, uma espécie de ‘OK Computer’ da política ambiental – é transformadora, controversa e, em última análise, icónica!
POR NUNO GASPAR DE OLIVEIRA

Corria o ano de 1997 quando no dia 15 de maio fui usufruir do meu presente de aniversário, ganho apenas 3 dias antes. Era um bilhete para os Radiohead, estavam de volta a Lisboa para tocar no antiguinho ‘Paradise Garage’ (na altura ainda cabiam lá, mas já com overbooking). Na altura não sabíamos o line up, pois era o primeiro concerto da nova tour. Toda a gente conhecia bem o álbum anterior, ‘The Bends’, mas estávamos muito curiosos para conhecer as novidades, antecipadas pelo fabuloso ‘Lucky’, um tema novo lançado apenas umas semanas antes pelo saudoso António Sérgio na igualmente saudosa XFM. E assim foi, na noite de 15 de maio de 1997, os Radiohead subiam ao palco, com uma familiaridade e simpatia que se terá desvanecido com os anos. Thom Yorke sorria para o público e perguntava: ‘olá, importam-se que vos apresentemos em primeira mão o nosso novo álbum? Chama-se ‘OK Computer’ e vamos experimentar como soa ao vivo’. O resto é história.

As boas histórias são assim, podem parecer surpresas para nós, mas levam muito trabalho a serem preparadas, não tenham quaisquer dúvidas. Não foi só chegar ali e tocar um dos melhores álbuns da história da música moderna, mesmo que pelo meio, pelo menos por duas vezes que me lembre, tenham parado para corrigir detalhes de como estavam a tocar. Certamente houve muito trabalho de preparação, de ensaios, frustrações, correções, alterações, inovações e turbulência entre canções. Mas quando foi para acontecer, aconteceu! E todos sentimos que para o grupo de Oxford havia ali uma inevitabilidade, correspondente a uma necessidade de reinvenção do rock alternativo após a emergência de OK Computer. É assim, há momentos que definem o rumo da história onde passa a haver um ‘antes’ e um ‘depois’. Mas não é só na música que isto acontece.

Recentemente aconteceu algo que pode mudar a música, mas noutro nível. O ‘novo hit’ que agita a Europa chama-se Lei do Restauro da Natureza e é uma história de ambição, conflito e compromisso, tal como a evolução de um álbum inovador. É uma história fascinante, uma espécie de ‘OK Computer’ da política ambiental – é transformadora, controversa e, em última análise, icónica!

Em dezembro de 2019, a Comissão Europeia, sob o comando de uma muito determinada Ursula von der Leyen e com enorme trabalho de produção do portuguesíssimo Humberto Rosa, foi revelado o ‘Green Deal’, o Pacto Ecológico Europeu. Esta visão ambiciosa tinha como objetivo tornar a Europa o primeiro continente com impacto neutro no clima até 2050, sendo a Lei do Restauro da Natureza uma peça-chave de uma obra maior. Tal como a harmonia dissonante de ‘Paranoid Android’, a lei nasceu de um desejo de abordar a triste realidade da degradação dos ecossistemas e da perda de biodiversidade. Os tempos eram de mudança, pois “Ambition makes you look pretty ugly”, estava na altura de um extreme makeover.

Entretanto chega 2020 e a Comissão Europeia propôs a Lei do Restauro da Natureza em 2020. Era uma ideia muito desafiante que tinha como objetivo restaurar pelo menos 20% das áreas terrestres e marítimas da UE até 2030, e alargar este objetivo a todos os ecossistemas degradados até 2050. Este foi o momento ‘Karma Police’ – era ambicioso e necessário, mas também havia algumas tensões. Alguns chegaram a pensar que ‘This is what you get, When you mess with us’, mas os ambientalistas viam-no como um caminho para a salvação, enquanto as indústrias, em particular a agricultura e a silvicultura, viam-no como uma ameaça à sua existência, mais numa lógica de ‘I’ve given all I can, but we’re still on the payroll’.

O percurso da lei ao longo do processo legislativo da UE foi de ‘Climbing up the walls’. Alguns países com grandes sectores agrícolas estavam um pouco preocupados com o impacto económico, numa atitude de ‘But if you get too far inside, You’ll only see my reflection’. Entretanto, os países com fortes movimentos progressistas estavam verdadeiramente empenhados em fazer pressão para que as medidas fossem ainda mais rigorosas. O esforço era grande, mas alguns dos argumentos dos contestatários eram mesmo de amarinhar às paredes!

As negociações foram um verdadeiro trabalho de equipa, com muito espaço de manobra e de conciliação de um lado, e algum bullying com agenda do outro. Foi extremamente complicado encontrar uma solução que funcionasse para todos, sentia-se que podíamos estar em rota de colisão , mas valia-nos o trabalho antecipatório de criar um bom ‘Airbag’. A boa notícia é que os objetivos vinculativos foram mantidos, mas com mais apoio financeiro e técnico para os Estados-Membros do lado ‘positivo da força’, caso para afirmar “In an interstellar burst / I’m back to save the universe”. Manteve-se a necessária flexibilidade para atender aos contextos nacionais, o que significa que pode ser adotada uma abordagem faseada da implementação, o ponto chave do concílio.

A lei do Restauro da Natureza tem tido uma viagem demasiado atribulada com pontos altos e baixos e, na sua forma final, estabeleceu alguns objetivos juridicamente vinculativos absolutamente inovadores e disruptivos para o restauro de ecossistemas degradados. No topo da agenda temos as zonas húmidas, as florestas, os prados, os habitats marinhos e as zonas urbanas a receberem mais foco e um novo racional ecológico-económico. De fora, de modo algo incompreensível, mas que se percebe dado o contexto de manipulação ideológica tão à la mode por estes dias em demasiados países europeus. Todavia, é importante lembrar que os Estados-Membros são obrigados a desenvolver Planos Nacionais do Restauro e a apresentar relatórios regularmente, com a Comissão Europeia a supervisionar o seu cumprimento.

Apesar dos solavancos, a Lei surge com ‘No Surprises’, apesar de vários alarmes de quem afirmava “You look so tired, unhappy/ Bring down the government/ They don’t, they don’t speak for us”. Enfim, ao que parece, nem todos somos assim tão fans de democracia. Como afirmado desde a sua fase embrionária, a recuperação dos ecossistemas não se limita à biodiversidade. Trata-se também de combater as alterações climáticas, gerir os recursos hídricos e melhorar o bem-estar humano. A recuperação de habitats naturais é uma ferramenta de progresso económico e com consequências reais na redução dos riscos de inundação, melhoria a qualidade do ar e da água e até a ajuda a capturar mais carbono durante mais tempo. Coisas reais de para uma nova economia real medir, realmente.

Mas numa sociedade tão polarizada não basta pensarmos que acabou tudo com uma ‘Exit Music (For a Film)’, não podemos ignorar os pontos fracos da lei. É muito importante encontrar uma forma de equilibrar os objetivos ambientais e económicos, especialmente quando há tantos sectores diferentes com as suas próprias preocupações económicas. É muito importante garantir que isto seja posto em prática, caso para afirmar “Breathe, keep breathing/ Don’t lose your nerve/ Breathe, keep breathing/ I can’t do this alone”. Para isso, temos de garantir que dispomos dos recursos, dos conhecimentos especializados e da vontade política para o fazer.

Então, qual é o caminho que temos pela frente? O que é que nos espera? Apesar de tudo, o futuro parece promissor, a Lei do Restauro da Natureza está preparada para trazer algumas mudanças estruturais e sistémicas. Se a aplicarmos corretamente, poderemos assistir a verdadeiras transformações que resultem em ecossistemas mais saudáveis, uma vida silvestre mais diversificada e uma maior resiliência às alterações climáticas, algo fundamental para as comunidades locais, onde vamos encontrar muitos dos agricultores e empresas que contra esta se insurgem, mas que serão dos que mais podem beneficiar de uma transição ecológica e económica executada de modo sustentável. Precisamos que os oponentes deixem de agir como ‘Subterranean Homesick Alien’s e que alinhem connosco, mas para isso temos que ser mais persistentes e não ficar só a murmurar “I’d tell all my friends but they’d never believe me/ They’d think that I’d finally lost it completely”. Afinal estamos todos juntos na mesma nave.

No fim do dia, a lei tem tudo a ver com o trabalho em conjunto dos Estados-Membros, o sector privado e a sociedade civil a unirem forças, tal como faixas de música interligadas. Este espírito é muito importante para todos nós, pois estamos a trabalhar em conjunto para superar os complexos desafios da transição ecológica. O impacto da Lei do Restauro da Natureza será profundo, de adaptação e mudança de estado ao estilo ‘Fitter Happier’ de modo capta a essência de um futuro melhor e mais eficiente onde é preciso encontra um equilíbrio entre nos tornarmos ”An empowered and informed member of society” e “Pragmatism, not idealism”.  Mas temos de ter cuidado com os momentos de ‘desilusão’ – aqueles contratempos e desafios que ameaçam minar o progresso. Garantir o cumprimento dos ambiciosos objetivos da lei será um teste à nossa determinação coletiva.

À medida que nos esforçamos por construir um mundo mais harmonioso, temos de nos lembrar que todos os esforços contam, fazendo eco do sentimento de ‘Electioneering’, em que cada voto e ação têm significado entre os movimentos de “When I go forwards/ You go backwards/ And somewhere we will meet”. No final, a Lei do Restauro da Natureza é a nossa oportunidade de sermos um pouco mais felizes e ‘Lucky’ a viver num ecossistema que precisa de encontrar o seu balanço com a sociedade, e versa-vice, pois o momento dos heróis define-se quando “We are standing on the edge”. Há um trabalho incansável pela frente onde não podemos ser apenas “The Tourist” a aproveitar a viagem, temos que ser e fazer parte desta, mesmo que haja quem nos grite “Hey man, slow down, slow down”. Até podemos abrandar o ritmo, mas fiquem sabendo, ninguém nos para, a mudança chegou mesmo, OK?.

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente artigo sobre o RESTAURO da natureza, é por aím compreender quem está na agricultura intensiva que vive desse esforço, mas deixar criar espaços à sua volta de RESTAURO e no seu espaço intensivo, renovar com uma boa imagem nas áreas de trabalho e trazer de alguma forma a natureza à “agricultura intensiva”,
    António Damásio

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