Adoptados em 1948 no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, os 30 artigos que compõem esta declaração histórica continuam a servir como a orientação por excelência para se cumprirem valores intemporais. Por todos e para todos. E, ao longo destes últimos 75 anos, muito se alcançou nesta matéria. Porém, muito ficou também por cumprir. Numa altura em que assistimos ao escalar de conflitos, ao aumento das desigualdades, da fome e da pobreza – e só para nomear alguns desafios da era presente – não é errado questionar para que servem, afinal, estes direitos universais, os quais parecem, em múltiplos contextos, não serem mais do que meras aspirações. Mas, e como declara Volker Türk, Alto-comissário das Nações Unidas para este domínio, “o que precisamos, em suma, é da Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Não desistindo de tornar reais os seus ideais
POR HELENA OLIVEIRA

Será [e manter-se-á] a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) adequada ao seu propósito? E qual é esse propósito? Porque é que os Estados e os povos criaram instituições, tratados e leis internacionais no final da Segunda Guerra Mundial? E décadas mais tarde, num mundo que está a mudar a uma velocidade vertiginosa, será que essas instituições, tratados e leis continuam a ser relevantes? Ou deveriam ser ajustados aos novos tempos?

Estas e outras questões, proferidas por Volker Türk, Alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, fazem todo o sentido na comemoração dos 75 anos desta Declaração Universal [10 de Dezembro último], adoptada pela Organização das Nações Unidas em 1948, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial.

Com origens logo no final do maior e mais destrutivo confronto da história da humanidade, o documento viria a estabelecer as bases para pôr fim ao terror, à morte, ao genocídio, à destruição e pobreza que afectou milhões de pessoas, sendo que outras tantas foram forçadas a deixar as suas casas e a estabelecerem-se em lugares completamente desconhecidos, sendo obrigadas a começarem a sua vida do zero. Apesar de não existir consenso no que respeita ao número de mortes ao longo deste sangrento conflito, as estimativas apontam para entre 70 a 85 milhões de pessoas – e não sendo possível esquecer o extermínio de seis milhões de judeus – muitas das quais morreram devido ao genocídio deliberado, massacres, bombardeamentos em massa, doenças e fome.

Não sendo de todo comparável o número de mortes decorrente deste sangrento confronto com o número de pessoas que todos os anos, e em pleno século XXI, perdem as suas vidas devido a conflitos e às consequências várias deles decorrentes, a verdade é que dados do UCDP (Uppsala Conflict Data Program – um projecto sueco que pesquisa, organiza e publica dados verificados sobre conflitos e é usado como referência por órgãos da ONU, pelo Banco Mundial e outras entidades internacionais) – estimam que o número de mortes relacionadas com conflitos aumentou 97% só em 2022. Adicionalmente, o ano passado foi considerado o mais mortal desde o genocídio no Ruanda em 1994 que, em 100 dias deu origem a 800 mil mortes.

De acordo com informações do Journal of Peace Research, publicado em Oslo, na Noruega, em 2022 foram contabilizadas 239 mil mortes devido a conflitos bélicos, estimando-se um crescimento de 400% desde o início da década de 2000.

Este aumento brusco em 2022 deveu-se principalmente a duas guerras particularmente violentas: a da invasão da Ucrânia pela Rússia e a guerra na Etiópia contra a TPLF (Frente de Libertação do Povo Tigray), com mais de 81.500 e 101.000 vítimas fatais respectivamente, até ao final do ano transacto. A guerra civil no Iémen, que segundo a ONU já causou mais de 300 mil mortes desde seu início em 2014, continua também sem horizonte visível para o seu fim. Segundo a ONU, metade das mortes naquele país – o que é comum nos demais conflitos – foram causadas directamente pelo conflito armado, enquanto a outra metade ocorreu em consequência da fome e de doenças causadas pela crise humanitária em larga escala. Myanmar, Sudão, Síria e Iémen destacam-se igualmente nesta lista.

E, não existindo ainda números para 2023, é natural que com a continuação da guerra na Ucrânia e com o conflito israelo-palestiniano novos recordes sejam atingidos.

Assim e 75 anos passados sobre a sua formalização, com mais de 190 países signatários (todos os que integram as Nações Unidas) e face aos inúmeros desafios e violações dos direitos humanos a que assistimos todos os dias, será que esta Declaração Universal continua a ser adequada para os antigos problemas – que continuam a não ser cumpridos – e para os novos que enfrentamos?

Tendo em conta as tensões geopolíticas e os conflitos que afectam o mundo de hoje, pode ser difícil acreditar que há 75 anos, a 10 de Dezembro de 1948, países de todo o mundo se reuniram e chegaram a um acordo quase unânime sobre uma extensa lista de direitos fundamentais de que todos os seres humanos do planeta deveriam usufruir.

Para recordar, a abertura da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) afirma que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, ao que se seguem 29 artigos que descrevem os direitos e as liberdades individuais, os quais visam uma protecção universal para garantir um mundo pacífico, livre e justo para todos: o direito de viver livre de qualquer forma de discriminação, detenção arbitrária e tortura; os direitos à educação e a uma alimentação adequada, aos cuidados de saúde, à habitação, à protecção social e a condições de trabalho justas; a liberdade de expressão, de opinião e o direito à privacidade; a liberdade de religião ou de crença e direito ao asilo (entre outros).

É verdade que este documento histórico, o mais traduzido da história, tem orientado um enorme progresso em todas as regiões do mundo. Por causa dele, foram desmanteladas muitas estruturas que perpetuavam uma grave discriminação racial e de género, tendo-se registado progressos outrora inimagináveis nos domínios da educação e da saúde. Por outro lado, tornou-se mais evidente a necessidade de os governos e as instituições ouvirem, informarem e envolverem plenamente as pessoas na tomada de decisões, tendo sido muitos os países que ganharam ou recuperaram a sua independência. Outros avanços em áreas variadas comprovam que, em 75 anos, muito foi alcançado e cumprido.

Mas a verdade é que se reflectirmos sobre cada um destes direitos acima descritos e pensarmos no mundo que nos rodeia, nem sequer um único pode ser considerado como integralmente alcançado. Tal não significa, obviamente, que os direitos humanos que constam nesta Declaração Universal não sejam, todos eles, da mais elementar justiça, mas a questão mantém-se: para que servem quando todos eles são, de uma maneira ou outra, continuamente violados?

O ideal dos direitos humanos: “um dos movimentos mais positivos da história da humanidade e, de um modo geral, um dos mais bem-sucedidos”

Quem o afirma é Volker Türk, Alto-comissário para os Direitos Humanos, o qual considera que é a este ideal que devemos regressar neste momento de turbulência, incerteza e ameaça.

Como também escreve, estamos a ser confrontados com “o maior número de conflitos violentos desde 1945, estimando-se que um quarto da humanidade viva em locais afectados” sem esquecer as hostilidades horrendas mais recentes entre Israel e Gaza, que todos os dias nos fazem questionar por que motivo o ódio é tão mais fácil de ser exercido do que a paz.

É certo que Türk tem razão quando afirma que vivemos uma época mais do que propícia para regressarmos a este ideal, nomeadamente porque são demasiados os direitos humanos que, ou não são cumpridos. ou que já sofreram progressos seguidos de retrocessos e começando logo pelo 1º – “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. O que é frustrante e preocupante. Vejamos mais alguns exemplos.

Como elenca também o Alto-comissário, o racismo e a discriminação – em especial contra as mulheres e as raparigas – estão a aumentar de forma preocupante, com tentativas determinadas de anular os verdadeiros progressos realizados nas últimas décadas. A título de exemplo e de acordo com a Oxfam, cerca de dois terços dos 781 milhões de adultos analfabetos do mundo são mulheres, uma proporção que se mantém inalterada há duas décadas e são ainda 153 países que têm leis que discriminam as mulheres a nível económico, incluindo 18 países onde os maridos podem legalmente impedir as suas mulheres de trabalhar.

A promessa de se acabar com a pobreza extrema até 2030, em parte devido à subida em espiral dos preços dos alimentos e dos combustíveis como consequência da guerra da Rússia contra a Ucrânia, está a dar passos atrás. De acordo com as Nações Unidas, erradicar a pobreza extrema para todas as pessoas em todo o mundo até 2030 é um objectivo fundamental da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Apesar de alguns progressos nesta área e tendo o aparecimento da COVID-19 marcado um ponto de viragem, invertendo os ganhos até aí alcançados, o número de pessoas que vivem em situação de pobreza extrema aumentou, pela primeira vez numa geração, em quase 90 milhões em relação às previsões anteriores. Mesmo antes da pandemia, a dinâmica da redução da pobreza estava a abrandar. No final de 2022, as previsões sugeriam que 8,4% da população mundial, ou seja, cerca de 670 milhões de pessoas, poderia ainda estar a viver em situação de pobreza extrema. Este retrocesso anulou efectivamente cerca de três anos de progressos na redução da pobreza.

Assim, e se os padrões actuais se mantiverem, estima-se que 7% da população mundial – cerca de 575 milhões de pessoas – poderá ainda encontrar-se presa na pobreza extrema em 2030, com uma concentração significativa na África Subsariana.

Se o tema for, por exemplo, os direitos para refugiados e migrantes, muito há igualmente para lamentar. De acordo com o Global Refugee Forum, a decorrer até dia 15, sexta-feira, 114 milhões representam o número de refugiados e de pessoas deslocadas que as perseguições, as violações dos direitos humanos, a violência, os conflitos armados e as graves perturbações da ordem pública obrigaram a abandonar as suas casas.

Como declarou Filippo Grandi, Alto-comissário da ONU para os Refugiados, na abertura desta cimeira, “114 milhões de sonhos desfeitos, vidas destruídas, esperanças interrompidas. É um número que reflecte uma crise – na verdade, muitas crises – da humanidade”.

Adicionalmente, um desafio mais recente está relacionado com as plataformas digitais, as quais tornaram-se canais de desinformação e de discursos de ódio contra mulheres e raparigas, pessoas de ascendência africana, judeus, muçulmanos, refugiados e migrantes e muitas pessoas de outros grupos minoritários. Os avanços digitais não são ainda regulamentados em matéria de inteligência artificial, o armamento autónomo e as técnicas de vigilância tornam-nos vulneráveis a novas e profundas ameaças aos direitos humanos, com a privacidade a parecer já uma utopia.

Como refere ainda Volker Türk, e “num número cada vez maior de países, as restrições severas ao espaço cívico minam as instituições de justiça, os meios de comunicação social independentes e, de um modo mais geral, o espaço para as liberdades fundamentais de todos”, acrescentando que todas estas tendências alimentam a ameaça existencial e generalizada da “tripla crise planetária”, que é, sem dúvida, a principal ameaça aos direitos humanos da nossa geração”, colocando em causa o futuro do futuro, com cada vez menos janelas de oportunidades em muitos domínios, como por exemplo no que respeita às consequências aterradoras provocadas pelas alterações climáticas que afectarão particularmente as gerações futuras.

No que a esta matéria diz respeito, e apesar de as negociações terem sido muito duras na COP28, ao ponto de a Cimeira do Clima ter sido prorrogada por falta de consenso, os seus muitos representantes reconheceram, “pela primeira vez”, a necessidade de “abandonar os combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, de forma justa, ordenada e equitativa, acelerando a acção nesta década crítica, de modo a atingir o zero líquido até

Apesar de histórica, resta saber se vai ser cumprida, em que moldes e se ainda vamos a tempo de salvar a humanidade.

Fortalecer os valores intemporais dos direitos humanos

Entre Maio e Julho de 2023, a Open Society Foundations encomendou uma sondagem a mais de 36.000 inquiridos de 30 países para avaliar as atitudes, preocupações e esperanças das pessoas em Estados com uma população total de mais de 5,5 mil milhões de habitantes – o que o torna um dos maiores estudos de opinião pública global sobre direitos humanos e democracia.

O relatório, intitulado Open Society Barometer: Can Democracy Deliver?, conclui que o conceito de democracia continua a ser muito popular em todas as regiões do mundo, com 86% dos inquiridos a afirmarem que prefeririam viver num Estado democrático. Foi confirmada igualmente uma descrença generalizada de que os Estados autoritários possam cumprir as suas prioridades mais eficazmente do que as democracias.

O estudo revelou igualmente que 72% dos inquiridos consideravam que os direitos humanos tinham sido (e são) uma “força para o bem”, com um número semelhante a afirmar que estes princípios reflectiam os seus próprios valores.

Mas, e de forma bastante preocupante, o inquérito também revelou uma desilusão generalizada, particularmente entre os jovens, no que respeita à capacidade da política democrática resolver problemas. Mais uma vez, existe uma manifesta ansiedade por parte dos jovens relativamente ao seu futuro (que já está a acontecer).

Como seria de esperar e com a aproximação do 75º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Alto-comissário das Nações Unidas para este domínio deslocou-se a vários países para proferir discursos o mais positivos possível no que respeita aos 30 artigos quase unanimemente assinados em 1948.

Num desses eventos que teve lugar em Oslo, na Noruega, Volker Türk defendeu que “um maior respeito pelos direitos humanos – por todos os direitos humanos – é a única base para um desenvolvimento mais sustentável e para a paz”, considerando esta verdade como simples, mas com um poder enorme. E acrescentou: “as sociedades ancoradas nos direitos humanos estão mais bem equipadas para resistir aos choques – sejam eles provocados por catástrofes naturais, conflitos, uma pandemia ou uma recessão global e são também as únicas em cujas leis e instituições se pode confiar para resolver litígios e promover a estabilidade social e económica”.

Porque não é fácil assumir que uma grande parte dos direitos humanos consagrados continuam a não se aplicar ou a sofrer retrocessos em muitos contextos, porque talvez seja necessária uma “adenda” face à realidade presente e porque talvez ajudasse que os líderes tivessem uma formação intensiva relativamente ao que realmente significam, o Alto-comissário transmitiu, em todos os eventos em que esteve presente e discursou, uma declaração assente na esperança e na boa vontade. Para que continuem, ou voltem a ter sentido, Volker Türk declarou como imprescindíveis as seguintes condições:

  • “Ultrapassar as divisões geopolíticas e encontrar uma abordagem que seja ideologicamente neutra, mas que envolva os valores profundos e partilhados da humanidade;
  • As soluções para a miríade de desafios devem ser coerentes entre si. Os esforços para promover o desenvolvimento sustentável devem também mitigar as alterações climáticas e combater a discriminação sistemática;
  • Estas soluções têm de envolver os nossos reflexos mais profundos: a solidariedade e a empatia, pois actualmente, as pessoas com menos recursos são as mais afectadas. Em termos de uma transição justa, por exemplo, isto exige que as vozes e os interesses dos indivíduos e comunidades afectados, incluindo os povos indígenas, estejam no centro da definição de políticas e acções para acabar com a dependência dos combustíveis fósseis. E, no caso dos refugiados – que se encontram entre os mais vulneráveis de todos – todos os Estados deveriam estar a cumprir as suas responsabilidades em matéria de concessão de asilo, reconhecendo que os países e as comunidades com menos recursos são os que acolhem a grande maioria das pessoas deslocadas devido a perseguições e conflitos; e, por último,
  • Ter noção de que as soluções efectivas necessitarão também do contributo total de todos os membros de todas as sociedades. A participação livre e significativa de todos é essencial para que se produzam mudanças concretas. Precisamos de aproveitar a criatividade, as competências e a visão crítica de todos, especialmente daqueles que foram marginalizados. Os governos devem redobrar os esforços para reduzir as tensões e as divisões na sociedade que correm o risco de excluir tantas pessoas da vida pública. Isto inclui medidas concertadas para combater o aumento do ódio racial e religioso. E em todos os aspectos da tomada de decisões, é vital construir pontes entre as pessoas – especialmente as mais afectadas – e as instituições do Governo e das empresas”.

Como conclui, “o que precisamos, em suma, é da Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

Imagem: © www.ohchr.org

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