POR GABRIELA COSTA
“Os direitos da infância não se limitam às fronteiras dos países” – “A Child is a Child” (UNICEF)
Quando os conflitos armados ou os desastres, o abandono, o abuso e a marginalização “compelem as crianças a emigrar, os seus direitos emigram com elas”. Mas a verdade é que é urgente reunir “lideranças capazes de chegar a um acordo mundial” sobre como proteger e garantir os direitos de cada uma das crianças em trânsito, independentemente de quem seja ou onde se encontre.
Porque, segundo o mais recente relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), são, infelizmente, cada vez mais: o número global de crianças refugiadas e migrantes que se deslocam sozinhas atingiu um recorde, aumentando quase cinco vezes desde 2010.
Antes da Reunião do G7 agendada para 26 e 27 de Maio, e que reunirá no sul de Itália alguns dos principais líderes mundiais em torno de uma agenda que inclui a crise de refugiados, a UNICEF pede a estes decisores que adoptem uma agenda de acção com seis pontos (ver Caixa) para manter as crianças refugiadas e migrantes seguras. E, através da publicação “A Child is a Child: Protecting children on the move from violence, abuse and exploitation”, alerta que em 2015 e 2016 há registo de pelo menos 300 mil crianças desacompanhadas e separadas das suas famílias, em cerca de 80 países, contra 66 mil em 2010 e 2011.
O relatório apresenta uma visão global sobre a dura realidade destas crianças, as motivações por trás de suas viagens e os riscos que enfrentam ao longo do caminho. E revela que um número crescente e preocupante está a seguir por rotas altamente perigosas – muitas vezes à mercê de contrabandistas e traficantes – para chegar ao seu destino, denunciando a clara necessidade “de um sistema de protecção global para mantê-las a salvo da exploração, abusos e morte”.
A nova escravidão moderna
Milhões de crianças e jovens estão, neste momento, em ‘trânsito forçado’. Cruzam as fronteiras internacionais fugindo da violência e dos conflitos armados, dos desastres e da pobreza. Centenas de milhares deslocam-se sozinhas. Privadas de alimentos ou cuidados de saúde, desprotegidas e sujeitas às graves lacunas das legislações, das políticas e dos serviços disponíveis para crianças na sua situação, facilmente se tornam em presas fáceis de tráfico, vulneráveis a abusos e a exploração.
[quote_center]Cinco vezes mais crianças refugiadas e migrantes viajam sozinhas desde 2010[/quote_center]
Para o vice-director executivo da UNICEF, “uma criança que se desloca sozinha já é demais”. E, actualmente, “há um número impressionante de crianças a fazer exactamente isso”, lamenta Justin Forsyth, acusando os adultos de estarem a falhar na sua protecção: “contrabandistas e traficantes cruéis estão a explorar a sua vulnerabilidade para ganho pessoal, ajudando as crianças na travessia de fronteiras apenas para vendê-las à escravidão e à prostituição forçada. É inconcebível que não estejamos a defender adequadamente as crianças desses predadores.”
Os obstáculos à emigração legal impedem as pessoas de se deslocarem em segurança. Mas não as impedem de se deslocarem. Pelo contrário, empurra-as para a emigração clandestina, avisa a UNICEF. O tráfico prospera com o desespero de quem precisa partir do seu país. De dinheiro em troca de documentos falsos e viagens ilegais, a redes criminosas organizadas que subjugam estas crianças a exploração e tráfico, a nova “espécie de escravidão moderna” à custa da exploração de seres humanos ocupa já 20% da actividade dos traficantes, segundo a Europol.
Já de acordo com um inquérito da Organização Internacional para as Migrações, 75% dos 1600 jovens entre os 14 e os 17 anos que chegaram a Itália pela rota do mar Mediterrâneo central dizem ter sido encarcerados contra a sua vontade ou forçados a trabalhar sem receber dinheiro em algum ponto da viagem. Quanto mais os migrantes estão desesperados e sem saídas, e quanto maior a debilidade das instituições do Estado e o crime organizado, mais prosperam os traficantes, conclui o relatório “Uma criança é uma criança: Protegendo as crianças em movimento da violência, do abuso e da exploração”.
[quote_center]Em 2016 há registo de 300 mil crianças desacompanhadas e separadas das suas famílias, em cerca de 80 países[/quote_center]
À medida que chegam em grande número, e se instalam, sem quaisquer condições, nos abrigos e campos de refugiados, estas crianças continuam a ser exploradas, muitas vezes obrigadas a trabalhar em troca de água e comida. Receiam as autoridades e têm medo de ser detidas e deportadas, o que as impede de procurar ajuda e protecção. Só em Itália, 92% de todas as crianças que chegaram por mar, em 2016, estavam desacompanhadas e separadas de suas famílias.
O relatório reúne vários números preocupantes, dando conta que um total de 200 mil crianças desacompanhadas pediu asilo em 80 países, em 2015-2016. Só na Europa foram 170 mil. De acordo com os dados divulgados na passada semana, as crianças representam aproximadamente 28% das vítimas de tráfico, globalmente.
A África ao sul do Saara e a região da América Central e do Caribe é onde se encontra a maior proporção de crianças entre as vítimas de tráfico detectadas, 64% e 62%, respectivamente – ou seja, há mais vítimas menores de idade do que adultas. No Corno de áfrica, 90 mil crianças não acompanhadas e separadas deslocavam-se internamente ou através das fronteiras, em 2015.
Mas foi na fronteira entre os Estados Unidos e o México, em 2015 e 2016, que 100 mil crianças desacompanhadas ou separadas das suas famílias foram presas.
[quote_center]21 mil pessoas perderam a vida nas principais rotas migratórias desde 2014, a grande maioria no Mar Mediterrâneo[/quote_center]
As duras políticas de controlo fronteiriço deixam os meninos e meninas na incerteza e intensificam o risco de que sejam vítimas de exploração. O encerramento de algumas fronteiras e as violentas medidas para impedir o avanço dos migrantes na Europa e no mundo está a deixar crianças retidas em países onde não querem permanecer ou onde não são bem-vindas.
Estão encurraladas e por vezes, para sobreviverem, ‘caem’ no comércio sexual ou cometem delitos menores para conseguirem pagar aos traficantes a continuação da sua viagem. Muitas vezes, a viagem corre mal. O resultado são 21 mil pessoas que perderam a sua vida nas principais rotas migratórias desde 2014, a grande maioria das quais no Mar Mediterrâneo, mas também no norte de África, na fronteira dos EUA com o México, no Corno de África e no Sudeste Asiático, entre outras regiões.
A fraude dos direitos na infância
Em algumas destas regiões, as crianças representam quase dois terços das vítimas de tráfico detectadas, como referido. As raparigas são as crianças mais afectadas, representando 20% do total de vítimas registado em 2014, muito acima dos 8% de rapazes.
Certo também é que as principais formas de exploração variam, em função do género. As mulheres são quase sempre exploradas para o tráfico sexual (72% dos casos, entre as vítimas de tráfico detectadas). Apenas 20% são exploradas através de trabalho forçado, e 8% para outros actos de exploração. Já os homens são aliciados para escravatura laboral, em 86% dos casos (apenas 7% para exploração sexual e 7/% para outros actos).
Estes dois tráficos são os mais comuns, e praticam-se em mais de cem países e territórios, nos quais, entre 2012 e 2014, há registo de mais de 60 mil vítimas dos mais de 500 grupos organizados de tráfico de pessoas existentes em todo o mundo, de acordo com os dados do gabinete das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNODC, na sigla em inglês). Incontáveis outras vítimas permanecem sem ser identificadas.
[quote_center]A inexistência de rotas legais e seguras para os refugiados alimenta o mercado de tráfico humano[/quote_center]
O relatório da UNICEF, “A Child is a Child” revela ainda o medo destas crianças: 75% das que, com idades entre os 14 e os 17 anos, chegaram a Itália pela rota do mar Mediterrâneo central, responderam ‘sim’ a, pelo menos, um dos cinco indicadores associados ao tráfico ilegal e a outras práticas com fins de exploração, como ser forçado a trabalhar ou ser detido contra vontade própria.
A Convenção dos Direitos Humanos da Criança protege todos os meninos e meninas, em todas as partes do mundo. Sem olhar à sua condição jurídica, à sua nacionalidade ou à falta desta. Todos, sem excepção, têm direito a, entre outros, serviços de saúde e educação e a permanecer com as suas famílias. Mas as crianças refugiadas estão privadas destes direitos, que são violados pela sua condição de migrantes, conclui a UNICEF. O “sistema actual está a defraudar as crianças refugiadas e migrantes”, declara a organização que promove os direitos e o bem-estar na infância, denunciando que os Estados têm a responsabilidade de defender os direitos e proteger estas crianças, “dentro das suas fronteiras, sem excepção alguma”.
A Declaração de Nova Iorque para os Refugiados e Migrantes, adoptada em Setembro de 2016, reconhece as necessidades prementes e as carências das crianças migrantes, especialmente as mais vulneráveis, que estão desacompanhadas ou separadas das suas famílias.
[quote_center]O tráfico prospera com o desespero de quem precisa partir do seu país[/quote_center]
Mas para que os países as possam, efectivamente, acolher e garantir os seus direitos básicos, é preciso “partilhar, e não desviar” a responsabilidade de proteger as crianças em trânsito”, alerta o relatório.
A poucos dias da Cimeira do G7 que reunirá em Taormina, comuna italiana da região da Sicília, Donald Trump (Estados Unidos), Angela Merkel (Alemanha), Theresa May (Reino Unido), Paolo Gentiloni (Itália), Emmanuel Macron (França), Justin Trudeau (Canadá), Shinzo Abe (Japão), Jean-Claude Juncker e Donald Tusk (União Europeia), a UNICEF apela aos governos para que adoptem a sua agenda de acção com seis pontos, com vista a proteger as crianças refugiadas e migrantes e garantir o seu bem-estar.
Tendo bem presente, porque a outra coisa a realidade não permite, que estas crianças “precisam de um compromisso real dos governos de todo o mundo para garantir a sua segurança ao longo das suas deslocações”, como sublinha no relatório “A Child is a Child”, o seu vice-presidente. Está então nas mãos dos sete mais poderosos do mundo, reunidos já esta Sexta-feira e Sábado, “conduzir esse esforço, sendo os primeiros a comprometer-se” com a agenda de acção da UNICEF.
Uma agenda para as crianças mais traumatizadas do mundo
O relatório da UNICEF dedicado às crianças deslocadas em todo o mundo demonstra como a inexistência de rotas legais e seguras para os migrantes e refugiados alimenta um mercado de tráfico humano em forte ascensão, colocando centenas de milhares de crianças em risco de violência e exploração. Desenvolvido com base nas propostas políticas mais recentes do Fundo da ONU para a infância, o documento tece recomendações para que os governos melhorem a sua protecção sobre as crianças vulneráveis, a partir do princípio elementar de que estas requerem uma atenção primordial, que garanta que se mantêm a salvo de abusos e da própria morte.
Para tanto, a UNICEF está a propor aos líderes mundiais que adoptem uma agenda de acção com seis pontos, à qual está associada uma campanha que apela aos cidadãos que partilhem um manifesto e pressionem os governos a estabelecer um acordo global para proteger e garantir os direitos da crianças enquanto são forçadas a deslocar-se dos seus países, independentemente de quem são ou onde se encontram. Porque cada criança é uma criança e, como declarou recentemente, e a respeito das novas regras dos EUA sobre os refugiados, o director executivo da UNICEF, Anthony Lake, todas eles são vítimas “que fogem da violência e do terror” e que “precisam de nosso apoio agora mais do que nunca”.
A pensar nas crianças mais vulneráveis e traumatizadas do mundo, a agenda de acção da UNICEF traça um plano global em seis pontos-chave que visam garantir que, em primeiro lugar, e em qualquer circunstância, cada criança tem direito a viver a sua infância em paz e segurança, e que, antes de ser um refugiado, ela é uma criança:
- Proteger as crianças refugiadas e migrantes, particularmente as crianças desacompanhadas, da exploração e da violência;
- Acabar com a detenção de crianças que procuram o estatuto de refugiado ou que estão a migrar, através da introdução de alternativas práticas;
- Manter as famílias unidas para protegerem as suas crianças e atribuir-lhes um estatuto legal;
- Manter as crianças refugiadas e migrantes na escola e dar-lhes acesso à saúde e a cuidados básicos;
- Pressionar para que sejam tomadas medidas contra as causas subjacentes aos movimentos em grande escala de refugiados e migrantes;
- Promover medidas de combate à xenofobia, à discriminação e à marginalização nos países de trânsito e de destino.
Jornalista