O mais recente relatório anual sobre a aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais da UE revela que há progressos assinaláveis em várias áreas sociais, relativamente à forma como estes direitos são respeitados numa série de políticas da UE e nos Estados-Membros. Mas, e face ao conjunto de eventos que vêm colocando sérias ameaças ao cumprimento dos mesmos, sublinha também a necessidade de um apoio renovado à democracia e à sociedade civil e de uma maior protecção dos direitos sociais e combate a todos os tipos de discriminação
POR GABRIELA COSTA

“A União Europeia não é apenas um mercado ou uma moeda; é, antes de mais, uma união de valores” – Frans Timmermans, Primeiro Vice-Presidente da Comissão Europeia

2017 foi um ano de desafios no domínio dos direitos humanos, do Estado de direito e da democracia na Europa. Mas as estruturas e instrumentos que existem para garantir que os direitos consagrados pela Carta dos Direitos Fundamentais da UE são efectivamente respeitados têm funcionado bem. Esta é a principal conclusão do mais recente relatório anual sobre a aplicação desta Carta, publicado a 4 de Junho. Sublinhando que em 2018 continua a ser essencial promover os direitos fundamentais consagrados a 1 de Dezembro de 2009, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa – incluindo o apoio a uma sociedade civil livre e dinâmica -, o documento avalia os progressos alcançados a esse nível, concluindo que, apesar de tudo, se registaram resultados assinaláveis.

Como comenta Věra Jourová, Comissária Europeia da Justiça, Consumidores e Igualdade de Género, “em 2017 observámos resultados encorajadores, por exemplo no que se refere ao combate ao racismo e outros discursos ilegais de incitação ao ódio, graças ao nosso código de conduta para as plataformas de redes sociais”. Paralelamente, o Pilar Europeu dos Direitos Sociais representou “um importante passo em frente no sentido de uma maior igualdade, demonstrando que a Europa é muito mais do que um mercado. É uma União que define e protege os seus valores”. Não obstante, o ano passado ficou marcado por “importantes desafios, sob a forma de ameaças ao Estado de direito, à independência do sistema judicial e ao trabalho levado a cabo pelas organizações da sociedade civil, em certas partes da União”, como admite Věra Jourová.

Numa altura em que se celebra o 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, o momento é mais que oportuno para recordar que “os direitos fundamentais, a democracia e o Estado de direito são os três pilares que servem de alicerce à União Europeia”. E que esse alicerce está reconhecido numa Carta dos Direitos Fundamentais que “não é facultativa”, como explica o Primeiro Vice-Presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans: “o seu texto é vinculativo para as instituições da UE, bem como para os Estados-Membros, quando os mesmos aplicam o direito da UE”.


O exemplo da União

Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia passou a ser juridicamente vinculativa. As suas disposições destinam-se às instituições da UE e às autoridades nacionais que apliquem o direito da União. A Comissão adoptou em 2010 uma Estratégia para a aplicação efectiva da Carta, que coloca a União com o objectivo de ser “exemplar” em tornar os direitos fundamentais consagrados na Carta tão efectivos quanto possível: “a Carta não é um texto veiculador de valores abstractos, mas sim um instrumento que permite às pessoas gozarem dos direitos nela enunciados quando se encontram numa situação abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União. Por esta razão, a Comissão concentrará os seus esforços na [sua] aplicação efectiva”, divulga a Comissão.

No âmbito desta estratégia, a CE comprometeu-se a elaborar, numa base anual, relatórios que abranjam a totalidade das disposições da Carta. O relatório deste ano é o sétimo, e destaca os progressos em várias áreas sociais e na garantia do respeito pelos direitos fundamentais. Mas sublinha também a necessidade de um apoio renovado à democracia e à sociedade civil. 

[quote_center]2017 foi um ano de desafios no domínio dos direitos humanos, do Estado de direito e da democracia na Europa[/quote_center]

Já no relatório de 2017 (relativo a 2016) se concluíaque os recentes desenvolvimentos colocavam sérias ameaças aos direitos fundamentais. E já nessa altura a Comissão assegurava que todas as propostas legislativas da UE e todos os órgãos vinculados pela Carta continuariam a respeitá-la, sem sobrestimar “o desempenho fundamental dos supremos tribunais e dos tribunais constitucionais na defesa dos valores comuns da União”.

Desde 2010 os relatórios sobre a aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais da UE monitorizam os progressos nas áreas onde esta tem poderes para actuar, e têm vindo a registar a influência crescente desta Carta na actualidade, incluindo quando a UE propõe nova legislação. Dando oportunidade a uma troca de pontos de vista entre o Parlamento Europeu e o Conselho da UE, a preparação do relatório – baseado em acções das instituições europeias e na análise de cartas dos cidadãos, em questões e em petições do Parlamento -, visa ajudar os cidadãos europeus a saberem onde procurar apoio quando acreditam que os seus direitos foram violados por uma instituição europeia ou por uma autoridade nacional sujeita às leis da UE.

O documento enquadra-se na estratégia da Comissão para colaborar com as autoridades competentes a nível nacional, local, e da UE, a fim de informar melhor os cidadãos sobre os seus direitos fundamentais e sobre os organismos susceptíveis de os ajudarem em caso de violação desses direitos; fornecer informações práticas sobre o exercício destes direitos, através do Portal Europeu da Justiça; e instituir um diálogo com os provedores de justiça, os organismos que se ocupam das questões de igualdade e as instituições de protecção dos direitos humanos sobre o tratamento das queixas relativas à violação dos direitos fundamentais.

Perante esta actuação, a União diz-se irrepreensível em matéria de direitos fundamentais, e apela a que a Carta constitua um guia para as suas políticas e para a respectiva aplicação pelos Estados‑Membros.


Renovar a democracia com justiça social

O relatório agora divulgado destaca resultados positivos e negativos relativamente à forma como os direitos fundamentais são aplicados numa série de políticas da UE e nos Estados-Membros. A qual se percepciona a partir de um conjunto de iniciativas de defesa dos mesmos, entre as quais, em 2017, se destaca a necessidade de renovar o apoio à democracia e continuar a apoiar a sociedade civil (o que “está incluído, de forma bem visível, no quadro financeiro plurianual, tendo sido adoptado, em 30 de Maio deste ano, um novo Fundo para a Justiça, os Direitos e os Valores”).

[quote_center]O texto da Carta dos Direitos Fundamentais da EU é vinculativo para as instituições da UE e para os Estados-Membros[/quote_center]

Mas promover os direitos sociais é também uma prioridade. O relatório revela progressos “muito encorajadores” neste domínio, graças à adopção do Pilar Europeu dos Direitos Sociais e das respectivas medidas de acompanhamento. Uma delas inclui iniciativas destinadas a garantir um melhor equilíbrio entre a vida profissional e a vida familiar para as pessoas com responsabilidades a nível de prestação de cuidados. A Comissão também propôs garantir condições de trabalho mais previsíveis e transparentes, em especial para os trabalhadores em formas de emprego atípicas, tais como os contratos zero horas.

Combater a discriminação contra as mulheres é outra causa que esteve na base do documento e que regista passos como a assinatura, pela UE, da Convenção de Istambul para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e os esforços para assegurar a sua rápida ratificação pela UE. Nesta matéria, a Comissão apresentou também um plano de acção para lutar contra a disparidade salarial entre homens e mulheres.

Outra das iniciativas de defesa dos direitos fundamentais da União é proteger as crianças migrantes, e, face à situação dramática que se vive, a Comunicação sobre a protecção das crianças no contexto da migração apresentou acções urgentes a executar a nível nacional e da UE, a que se seguiram as conclusões do Conselho em Junho de 2017. Por outro lado, a Comissão criou a Rede Europeia dos Organismos de Tutela,para facilitar a cooperação entre as autoridades nacionais.

Combater a discriminação e o racismo, online ou não, é também um propósito da Comissão com resultados visíveis no relatório de 2018 sobre a aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais. A CE reforçou a sua cooperação com empresas de TI, autoridades nacionais e organizações da sociedade civil, com o objectivo de garantir que os discursos ilegais de incitação ao ódio online sejam rapidamente identificados e apagados. E assistiu os Estados-Membros nos seus esforços para intensificar a aplicação da legislação da UE em matéria de crimes de ódio, acesso à justiça, protecção e apoio às vítimas de crimes de ódio.

[quote_center]O Pilar Europeu dos Direitos Sociais demonstra que a Europa é muito mais do que um mercado[/quote_center]

Na sequência da sua Comunicação “Melhores resultados através de uma melhor aplicação”, a Comissão ajudou os Estados-Membros nos seus esforços para intensificarem a aplicação do direito da UE em benefício dos indivíduos e das empresas. No que respeita ao objectivo de melhorar o acesso à justiça e vias de recurso eficazes, no contexto do Semestre Europeu, a CE propôs também recomendações específicas por país para ajudar os Estados-Membros a melhorarem os seus sistemas judiciais.

Conclui-se com estes resultados que a Comissão Europeia tem tido um papel activo nos domínios do direito da UE para proteger os direitos fundamentais em toda a Europa, por exemplo, ao nível da protecção dos direitos das crianças, do reforço do direito à protecção dos dados pessoais, da melhoria dos direitos dos consumidores ou da garantia de condições básicas para os requerentes de asilo ou os migrantes.

Como reafirmou na edição deste ano Věra Jourová, “continuaremos a trabalhar, incessantemente, para defender os direitos fundamentais, o Estado de direito e os valores democráticos na nossa União”. Garantindo que quer as instituições da UE quer os Estados-Membros partilham a responsabilidade da Comissão de, “enquanto guardiã dos Tratados”, proteger os direitos fundamentais e o Estado de direito em toda a União. Este é um “dever especial” para o Primeiro Vice-Presidente da Comissão, Frans Timmermans, para quem “a União Europeia não é apenas um mercado ou uma moeda; é, antes de mais, uma união de valores”.


Participação democrática versus populismo

O relatório de 2018 sobre a aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais da UE centra-se no Colóquio anual de 2017 sobre os direitos fundamentais, que foi consagrado ao tema “Direitos das mulheres sob ataque”. A Comissão comprometeu-se a adoptar um conjunto de medidas de promoção e protecção dos direitos das mulheres e da igualdade de género, que vão da inclusão desta temática na agenda global, ao mais alto nível político, até ao financiamento de projectos locais. Realizado “num contexto de intolerância crescente”, face ao qual “é importante que a UE reafirme e promova veementemente a igualdade de direitos para todos”, o evento constituiu uma oportunidade para abordar a capacitação económica e política das mulheres, os seus direitos nas esferas pública e privada da vida e o combate à violência contra as mulheres sob todas as suas formas, tópico que serviu de mote ao estabelecimento de várias iniciativas específicas a desenvolver ao longo do ano.

Em 2018, o Colóquio anual sobre os direitos fundamentais será consagrado ao tema “Democracia na UE”, e terá lugar nos dias 26 e 27 de Novembro. Os participantes trabalharão em parceria tendo em vista identificar maneiras de fomentar uma participação democrática, livre e aberta num contexto que se caracteriza por baixas taxas de participação nas eleições, populismo, digitalização e ameaças à sociedade civil. O colóquio constituirá uma oportunidade para reafirmar um dos valores fundamentais da UE, na perspectiva das eleições europeias.


Jornalista