POR HELENA OLIVEIRA
Corria o ano 2000 e dois professores de Direito, norte-americanos, Henry Hansmann da Universidade de Yale e Reinier Kraakman, de Harvard, clamavam que o mais contestado debate na lei corporativa tinha finalmente, sido resolvido. Ao longo de décadas, questionou-se se o propósito principal de uma empresa seria o de maximizar o lucro para os accionistas ou perseguir fins sociais alargados. E, na viragem do século, os sistemas legais mundiais convergiam na eleição do modelo do valor para o accionista como o que mais sentido fazia. Todavia, o timing para esta declaração proferida pelos dois professores em causa acabaria por ser o pior. Pouco tempo depois da publicação do seu paper The End of History for Corporate Law, gigantes empresariais que, orgulhosamente, praticavam a maximização do lucro para o accionista como o único modelo a seguir, viram-se enredados em escândalos monumentais que iriam abanar não só o mundo empresarial, como a sua própria “história”. A Enron, a WorldCom e a Arthur Andersen, entre outras, entrariam em colapso e, seis anos mais tarde, a ruína do Lehman Brothers despoletaria a crise financeira global. A história continua fresca na memória de muitos e a questão de possíveis diferentes interpretações do lucro não só continuou na ribalta, como tem sido discutida, em particular nos últimos anos, com uma força redobrada.
Num livro recente, intitulado “How Good We Can Be: Ending the Mercenary Society and Building a Great Country”, escrito por Will Hutton, um jornalista britânico, é proposta uma “Lei Corporativa para o século XXI”, a qual afirma que às empresas deveria ser exigido declararem, no acto da sua constituição, a intenção clara de “fornecerem bens e serviços em particular que possam satisfazer uma necessidade social ou económica”. Hutton é também autor do livro The State We’re In, publicado em Janeiro de 1995, no qual o conceito de “capitalismo orientado para os stakeholders”, agora tão “estafado”, oferecia uma alternativa ao mercado orientado pelo lucro e pelo curto prazo. As decisões das empresas, argumentava Hutton numa altura em que ainda pouco se falava de responsabilidade social ou de novos valores associados ao lucro, deveriam ter em conta não só os interesses dos accionistas, mas também dos empregados, fornecedores e consumidores, e também o das próprias nações e o do planeta.
A questão do valor (ou lucro) versus valores tem feito correr muita tinta. Mas não basta apregoar que uma empresa que se preze tem a obrigação de gerar, para além do lucro financeiro, lucro social ou ambiental, para que o mundo dos negócios passe a reger-se por novas regras. Adicionalmente, existe ainda uma forte corrente que coloca em causa esta nova “obrigatoriedade”, e que nos conduz a um outro conjunto de questões. Como se escreve, em tom quase jocoso, num artigo recente da revista Economist, quem ou que entidade poderá decidir – ou monitorizar – que empresas estão, realmente, a operar com vista a servir o bem comum? Virá o dia em que existirão comités composto por “bonzinhos” que terão como missão interrogar os jovens programadores de apps sobre os benefícios sociais das suas invenções? E será que as empresas que não conseguirem passar no “teste do interesse público” serão barradas na sua entrada no mercado?
A questão das novas dimensões do lucro estará em debate no 6º Congresso da ACEGE, já este sábado. E, tendo em conta o tema que foi escolhido para o mesmo, a gestão e a liderança à luz do amor ao próximo, faz sentido retomar a ideia “original” contida no livro do presidente da Associação, António Pinto Leite – O Amor como Critério de Gestão” e a sua proposta para uma alteração profunda do conceito de “lucro”.
A modificação genética do conceito de lucro
Como escreve o presidente da ACEGE, “se a vocação das empresas é gerar lucro, e assim deve ser, e se o lucro corresponde ao retorno financeiro dos capitais investidos, como compatibilizar o amor como critério de gestão e a generosidade que lhe está implícita, com a maximização desse retorno?”. O autor questiona ainda: “como defender um critério de gestão que não perturbasse geneticamente os fundamentais da economia?”. Ao considerar que este critério de gestão torna as empresas mais produtivas, o próprio transforma-se num factor de maximização de lucro. Ou, como defende António Pinto Leite, o que se dá não constitui generosidade, mas sim investimento”. E, indo mais longe e considerando que o lucro não tem, necessariamente, de se traduzir numa dimensão de origem meramente financeira, mas também moral (logo, imaterial), o autor propõe a modificação genética do conceito de lucro – com uma “co-pertença” em simultâneo das esferas material e imaterial – o qual “compensa adequadamente aquele que investe o seu capital numa empresa, no quadro da definição de interesses e motivações que o próprio investidor tem e estabelece”.
Esta interpretação pessoal e, a priori, original de António Pinto Leite está em linha com as várias “correntes” de uma gestão que não se limita a gerar valor – ou lucro – apenas para os accionistas (v. mini-glossário em Caixa) e que, em especial nos últimos anos, tem vindo a alterar a própria estratégia das empresas, na medida em que leva em linha de conta o investimento em factores “externos” – tendo em conta os interesses de todos os stakeholders e não apenas dos shareholders – os quais, se bem executados, não só contribuem para os “fins sociais alargados”, como têm um reflexo mensurável no lucro – material – das organizações que o praticam.
Todavia e na generalidade, esta quase obsessão por negar a máxima pedida emprestada a Milton Friedman – a famosa frase “the business of business is business”, acaba por “desaguar” em mares nem sempre pacíficos. Se há quase duas décadas que a Responsabilidade Social Corporativa se tornou num “nice to have” e depois num “must have” para qualquer empresa que quisesse ficar bem na fotografia, hoje em dia a receita habitualmente seguida por estas – que inclui, no mínimo, o diálogo com os stakeholders, os relatórios sociais e ambientais (actualmente denominados relatórios de sustentabilidade) e as políticas corporativas em torno das questões éticas, a verdade é que esta abordagem é também considerada como muito limitada e demasiado desconectada em termos de estratégia corporativa.
A era do novo contrato social?
E é talvez por isso que, no jargão da gestão, se comece a falar de um “contrato social” implícito que todas as empresas, em especial as de grande dimensão – e também os investidores – deverão “assinar” e colocar em prática. Este mesmo contrato, tal como os demais, implica um conjunto de obrigações, oportunidades e vantagens mútuas para ambas as partes [empresas e sociedade]. Como afirma Ian Davis, um dos responsáveis, a nível mundial da McKinsey & Co, e um dos mais acérrimos proponentes deste “contrato”, é tempo de não se perder tempo a escolher entre duas posições ideológicas contrastantes – a do bem social como periférica aos desafios da gestão empresarial (maximização do lucro para os accionistas) e a defendida pelos “puristas” da responsabilidade social corporativa que, em teoria, diabolizam o lucro como se realmente não fosse o próprio a permitir contributos inegáveis para o progresso da sociedade, desde a inovação e o desenvolvimento, à criação de emprego, aos investimentos em larga escala, ao desenvolvimento do capital humano, entre outros. Todos estes “valores imateriais” são e serão essenciais para o bem-estar económico e social a nível global, mas todos eles também só são possíveis graças ao lucro – material.
E é por isso que Ian Davis argumenta que ambos os “modelos de pensamento corporativo”, seja a RSC ou o “business of business is business”, acabam por ser limitados, exigindo-se uma nova abordagem no que respeita ao que realmente é “lucrativo” para as empresas e a sociedade.
O “contrato social” proposto pelo director da McKinsey permite uma visão abrangente das novas dimensões do lucro, sendo obrigatório que as empresas introduzam, nas suas políticas, processos explícitos que assegurem que as questões sociais e as forças sociais emergentes sejam discutidas e integradas nos mais elevados níveis do planeamento estratégico, o que significa que os conselhos de administração devem ser educados e envolvidos para esta missão comum pelos gestores executivos.
Como afirma Ian Davis, “há mais de 200 anos que o contrato social de Rousseau [um dos principais filósofos do iluminismo, precursor do romantismo e autor do famoso Do Contrato Social, publicado em 1762] ajudou a plantar a ideia, entre os líderes políticos, de que estes teriam de servir o bem público (…). Os CEOs da actualidade deverão ter também a oportunidade de reafirmar e reforçar os seus próprios contratos sociais de forma a ajudar a assegurar, para o longo prazo, os milhares de milhões investidos pelos seus investidores. Com o lucro e as suas novas dimensões a fazerem mais sentido do que as discussões estéreis sobre que tipo de “lucro” deverá ser maximizado.
Mini-glossário de “novos” modelos de gestão e de lucro
Descubra as diferenças…
Economia da comunhão
Conceito lançado por Chiara Lubic, do movimento Focolares, em Maio de 1991, no Brasil, no qual as empresas decidem colocar, para uso comunitário, os seus lucros com o objectivo de ajudar as pessoas mais vulneráveis, criando postos de trabalho que possam satisfazer as suas necessidades básicas através de projectos de desenvolvimento. Visa difundir a cultura do “dar” e da reciprocidade, mantendo a empresa eficiente e competitiva, ao mesmo tempo que pratica a gratuidade.
Criação de Valor Partilhado
Estratégia de gestão focada nas empresas que criam valor de negócio mensurável através da identificação e abordagem de problemas sociais que se intersectem com o seu próprio negócio. O conceito de valor partilhado, introduzido por Michael Porter e Mark Kramer em 2011, é definido por políticas e práticas empresariais que melhoram a competitividade de uma empresa e, por consequência, os seus lucros, ao mesmo tempo que conseguem promover as condições sociais e económicas das comunidades nas quais a empresa opera e vende os seus produtos e/ou serviços.
Benefit Corporation ou B-Corp
Nos Estados Unidos, uma B-Corp é uma entidade corporativa com fins lucrativos, legislada como tal em 28 estados, que inclui o impacto positivo na sociedade e no ambiente como complemento ao lucro enquanto objectivos legalmente definidos. As B-Corps diferem das empresas tradicionais no que respeita ao propósito, à responsabilização, à transparência, mas não em termos de regime fiscal. O seu propósito inclui e geração de benefícios públicos gerais, os quais são definidos como impacto positivo material na sociedade e no ambiente.
Negócios sociais
O conceito original foi introduzido por Muhammad Yunus que o definia como uma empresa sem perdas nem dividendos, para atingir determinado “bem” social. Difere do modelo seguido pelas organizações sem fins lucrativos na medida em que o negócio deverá gerar lucro, ainda que modesto, utilizado de seguida para expandir o objectivo original da empresa, através da melhoria do produto ou serviço. O conceito tem sofrido várias evoluções…
…Empresas sociais
O conceito de negócio ou empresa social tem como ponto de partida uma causa, assente numa visão social, sendo o seu objectivo principal conjugar o impacto social e a rentabilidade financeira. Tal como as empresas tradicionais, o seu financiamento é garantido através da venda de bens e serviços, como forma de gerar lucro e assegurar a sua sustentabilidade.
Empresas com propósito
São organizações que crescem em torno de um propósito profundo, abordando e integrando estrategicamente os imperativos de negócio e as temáticas sociais, unindo e motivando os stakeholders principais, sejam eles consumidores cépticos ou colaboradores reticentes.
Investimento com impacto
São os investimentos feitos em empresas, organizações e fundos com o objectivo de gerar um benefício social ou impacto ambiental mensuráveis em conjunto com retorno financeiro. Os investidores com impacto distinguem-se dos demais pela sua intenção de abordarem desafios sociais e ambientais através do investimento do seu capital, mas diferem do conceito de “investimento socialmente responsável” na medida em que este inclui igualmente critérios negativos – evitando sectores específicos como o das armas, o do tabaco, o dos combustíveis fósseis, etc. – como parte das suas decisões de investimento.
Editora Executiva