POR GABRIELA COSTA
“É preciso equilibrar a segurança nacional com a segurança das pessoas” – William Lacy Swing, director-geral da Organização Internacional para as Migrações
No âmbito do projecto Coerência.pt , implementado pela FEC, IMVF e CIDSE com o apoio do Instituto Camões, com o objectivo de alicerçar as políticas de desenvolvimento na sociedade, a investigadora e consultora independente Patrícia Magalhães Ferreira, que colabora no projecto, desenvolveu o estudo “Migrações e Desenvolvimento”.
Denunciando a instrumentalização e securitização que minam a agenda mundial a este nível, este extenso trabalho de investigação – o primeiro de cinco estudos dedicados à coerência das políticas para o desenvolvimento, estando em fase de publicação um sobre alterações climáticas e previstos outros sobre segurança, comércio e finanças e soberania alimentar – resulta num suporte à tomada de decisão por parte dos decisores políticos e organizações do sector, incluindo ainda recomendações práticas para o público em geral. Porque todos podemos contribuir para o respeito pelos direitos humanos, que “deveria estar na base da resposta existente aos fluxos de migrantes e refugiados, mas não está”, como defende, numa grande entrevista ao VER, a autora do estudo.
Quais são as principais conclusões do estudo “Migrações e Desenvolvimento”, que analisa a coerência de políticas na relação entre estes dois sectores?
O estudo demonstrou que, no geral, os migrantes contribuem de forma muito positiva para o desenvolvimento dos países de origem e de destino; mas para potenciar esse impacto benéfico, são necessárias políticas integradas e coerentes, o que nem sempre acontece. A ligação entre migrações e desenvolvimento é um aspecto frequentemente negligenciado, esquecido ou até desconhecido, ao qual normalmente se confere menos importância, em comparação com outros elementos considerados mais urgentes na gestão das migrações.
Um exemplo muito evidente do contributo dos migrantes para os seus países de origem são as remessas enviadas, existindo estudos que comprovam o seu impacto na diminuição da pobreza nesses países. No entanto, é preciso facilitar estes fluxos e diminuir os custos de envio das mesmas, que ainda são muito elevados na maioria dos países do mundo. Para além das remessas, o impacto da diáspora dos países em desenvolvimento e dos migrantes que regressam é também importante ao nível da transferência de competências e tecnologias, da partilha de conhecimentos, do aumento do capital humano, do investimento e comércio. O problema é que as autoridades desses países têm grande dificuldade em implementar políticas concretas para promover esses contributos; e nesse âmbito pode ser útil olhar para exemplos positivos de medidas implementadas em países como a China e a Índia.
No caso dos chamados países de destino ou de acolhimento, a criação de mais canais de migração regular e a facilitação da migração circular, o combate à precariedade no trabalho e às violações dos direitos do trabalho, a portabilidade de direitos sociais adquiridos ligados ao seu percurso laboral, bem como a diminuição dos custos de transacção das remessas, são exemplos de medidas coerentes que potenciam o contributo dos migrantes para o desenvolvimento.
Face à crise internacional de refugiados, de que modo caracteriza hoje o fenómeno das migrações no contexto do desenvolvimento na Europa?
Para falarmos das abordagens da União Europeia e de Portugal, é preciso distinguir, desde logo, entre migrantes e refugiados, porque os enquadramentos legais são também diferentes. Nos últimos anos, há uma confusão evidente entre estes dois conceitos, até pelo facto de os actuais fluxos de migrantes e refugiados para a Europa serem mistos, tornando difícil a distinção imediata entre ambos. No entanto, quer num caso quer noutro, o respeito pelos direitos humanos deveria estar na base da resposta existente, e não está.
As políticas migratórias da União Europeia – particularmente nos últimos dois a três anos, em resposta ao aumento do fluxo de migrantes e refugiados – denotam várias incoerências. Desde logo, a incoerência com os seus valores fundamentais, fragilizando a postura moralizadora muitas vezes assumida pela UE no plano externo, enquanto baluarte da defesa da democracia e dos direitos humanos. Um exemplo evidente é o facto de a União Europeia insistir na urgência de aumentar e acelerar o retorno e repatriamento de migrantes, sem ter em conta as condições que as pessoas enfrentarão nesses países. O acordo assinado com a Turquia (ignorando as acções repressivas do regime, e sem qualquer garantia do que acontece a esses migrantes) ou a cooperação com a Líbia (apoiando a guarda costeira e outras autoridades líbias para contenção da saída de migrantes, quando há registos comprovados de práticas de tortura, violações e escravatura) são exemplos de como os direitos humanos têm sido secundarizados. E isto apesar de a política europeia determinar formalmente que estes devem ser salvaguardados, independentemente do estatuto migratório, e que migrantes e refugiados só podem ser repatriados se a sua segurança e bem-estar estiverem garantidos.
Depois, verifica-se também a predominância de uma abordagem securitária, que tende a limitar ao máximo as vias legais de imigração e a implementar políticas restritivas. Isto tem tido como resultado um redireccionamento dos migrantes e dos refugiados para outras rotas migratórias e a opção por vias mais perigosas e ilegais, empurrando as pessoas para esquemas ilegais de tráfico e alimentando redes criminosas.
Tem existido uma abordagem reactiva que é ditada por pressões políticas imediatas e tenta resolver alguns dos problemas mais urgentes, o que se reflecte também nas questões de asilo, pois tem-se tornado cada vez mais difícil para as pessoas que fogem de zonas em conflito conseguirem assegurar protecção internacional no espaço europeu. A União Europeia poderia aproveitar a reforma em curso do Sistema Europeu Comum de Asilo para o alinhar com os compromissos assumidos na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, assegurando vias legais e seguras de chegada e permanência na Europa e revendo as regras de Dublin, mas não é isso que está a ser feito.
Por fim, verifica-se também que essa abordagem securitária é transposta para a política externa da União Europeia, muitas vezes com uma instrumentalização da ajuda ao desenvolvimento. Nomeadamente, a concessão de ajuda ao desenvolvimento a determinados países tem sido condicionada à assinatura e/ou implementação de acordos de readmissão ou retorno de migrantes. Além disso, muitos acordos de cooperação focam-se cada vez menos no desenvolvimento e mais no reforço das capacidades desses países para impedirem os fluxos migratórios. Esta evolução ameaça também o principal objectivo da política de cooperação para o desenvolvimento da UE, a qual deveria estar centrada na redução da pobreza e promoção do desenvolvimento, como aliás tem alertado o Parlamento Europeu em diversas ocasiões.
E em Portugal?
No caso de Portugal, é preciso salientar que continua a ser maioritariamente um país de emigração, e que precisa de criar oportunidades que o tornem atractivo à imigração, bem como melhorar as condições de integração daqueles que aqui pretendam trabalhar e fixar-se. É considerado internacionalmente um exemplo no acolhimento de refugiados e na integração de imigrantes, o que deriva, em boa parte, de um enquadramento normativo e institucional adequado. Contudo, as políticas de migração e asilo envolvem uma grande diversidade de intervenientes, que beneficiariam de uma melhor articulação e coordenação. Em termos de direitos dos imigrantes, existem áreas a melhorar, nomeadamente na sua participação política, no acesso à nacionalidade e na não-discriminação. Seria também útil promover estudos e avaliações independentes e fundamentadas, que forneçam evidências concretas sobre o contributo dos migrantes para o desenvolvimento do país, na medida em que esta é uma questão pouco analisada. Por fim, no plano externo, a integração das migrações na política portuguesa de cooperação para o desenvolvimento deveria ser mais promovida, no âmbito dos programas e projectos de cooperação com países parceiros.
Que tipo de mitos associados à relação entre migrações e desenvolvimento é urgente desconstruir, para valorizar de forma inclusiva a realidade dos migrantes enquanto uma oportunidade, e não um risco?
Vários dos mitos existentes sobre a relação entre migrações e desenvolvimento são facilmente desmontados pelos factos, mas parecem reproduzir-se e perpetuar-se na cabeça das pessoas como se fossem verdades absolutas, sendo também aproveitados por discursos populistas e xenófobos.
Por exemplo, não é invulgar ouvirmos que os migrantes são um fardo económico para os países onde se instalam, devido à pressão que exercem sobre os sistemas de protecção social e os serviços sociais. Ora todos os dados apontam em sentido contrário, ou seja, que os imigrantes tendem a contribuir mais em termos de impostos e contribuições sociais nos países onde residem, do que recebem em benefícios.
Outro exemplo é o facto de muitas pessoas acharem que os migrantes tiram emprego aos cidadãos nacionais. Muitos estudos efectuados, nomeadamente em países como os Estados Unidos, a Suíça ou o Reino Unido, concluem que os imigrantes não têm praticamente nenhum impacto nem nos salários nem na disponibilidade de emprego para os cidadãos nacionais. Pelo contrário, na maioria dos mercados de trabalho europeus, a contribuição dos imigrantes (com vários níveis de qualificações e competências) é essencial para aumentar a força de trabalho e preencher lacunas em sectores relevantes para as economias, em países com populações em rápido envelhecimento.
Um outro mito importante tem a ver com a dimensão deste fenómeno. Por um lado, a maioria dos migrantes não se desloca dos países mais pobres para os países mais ricos. A maioria dos migrantes internacionais nascidos em países em desenvolvimento reside noutros países pobres, uma vez que as pessoas têm tendência a deslocarem-se para países próximos ou vizinhos do seu, e/ou para países onde existam laços históricos e culturais. Também no caso dos refugiados, 86% reside nos países em desenvolvimento. Se olharmos para a recente “crise migratória” na Europa, verificamos que a vaga de migrantes e refugiados nos últimos três anos representa apenas cerca de 1% da população europeia (se fizermos uma estimativa de 5 milhões, num total de 500 milhões de habitantes). A retórica de que a actual vaga de migrantes e refugiados põe em causa a sobrevivência económica e política da União Europeia não faz, portanto, qualquer sentido do ponto de vista da quantidade de migrantes, mas sim pelo facto de esta questão ter trazido a lume as divisões existentes no seio da União Europeia e a falta de solidariedade entre Estados-Membros (quer na recolocação de refugiados, quer no apoio à Itália e à Grécia, que sofrem particularmente a pressão migratória).
Defende que “é necessário que as políticas públicas sobre migrações, alterações climáticas, comércio, segurança ou soberania alimentar contribuam para uma transformação efectiva”. Mas, e apesar das metas traçadas a nível global através de compromissos como a Agenda 2030, na prática o mundo pouco têm avançado nestas matérias. Que passos fundamentais são necessários para uma mudança a este nível?
De facto, o texto da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável é a expressão formal e concreta da coerência, ou seja é uma agenda abrangente e de aplicação em todos os países, que inclui objectivos tão variados como a educação, a saúde, a igualdade de género, o combate às desigualdades, a luta contra as alterações climáticas, ou a paz e a justiça. Reconhece, portanto, um papel fundamental de todas as políticas públicas para atingir esses objectivos de desenvolvimento.
No entanto, o facto de esta Agenda ser tão abrangente e ambiciosa torna-a extremamente complexa e difícil de implementar. Desde logo, porque implica o envolvimento de todos os intervenientes – do sector público ao sector privado e à sociedade civil, das organizações multilaterais aos governos nacionais e actores locais, dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento -, os quais estão muitas vezes habituados a trabalhar de forma fragmentada e dispersa, ou virados para si próprios, consumidos pelos problemas e burocracias internas. Por exemplo, é necessária uma alteração na forma de trabalhar das organizações internacionais e regionais, para fomentar mais interligações e parcerias. Sem trabalho em rede, sem parcerias efectivas entre múltiplos intervenientes e sem trabalho conjunto, não será certamente possível atingirmos os objectivos de desenvolvimento. O caso das migrações é um exemplo evidente, pois seria importante adoptar um Pacto Global para os migrantes e refugiados – previsto para este ano – que seja efectivamente um acordo mundial com tracção política e assente em compromissos concretos, com partilha de responsabilidades entre os diversos intervenientes.
Por outro lado, as questões do desenvolvimento são ainda vistas como pertencendo a um grupo restrito de actores, ou seja, aqueles que trabalham na cooperação para o desenvolvimento, que se dedicam a ações humanitárias ou que trabalham nos países mais pobres. Mesmo na União Europeia, é fácil ver essa divisão, quer na organização interna da União (com as questões do desenvolvimento relegadas para segundo plano, com pouca relevância política e com poucas possibilidades de influenciarem as outras políticas, como a política de segurança ou de migrações), quer no relacionamento externo (por exemplo, limitando as relações com África a uma discussão sobre os financiamentos para o desenvolvimento, sem debater ou assumir posições comuns sobre os problemas globais que realmente afectam os dois continentes). Mas o que a Agenda 2030 vem reconhecer é que o desenvolvimento é uma questão de todos, estejamos em que continente ou país estivermos, e que abrange várias dimensões interligadas: económica, social e ambiental. Não será possível cumprir os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável se não tivermos essa visão mais abrangente e interdependente, e se não formos capazes de implementar, na prática, acções mais coerentes com aquilo que desejamos para o futuro.
Outro problema concreto é o facto de a Agenda 2030 não ser vinculativa nem prever quaisquer mecanismos de incumprimento. Nesse sentido, pode transformar-se apenas numa aspiração que esbarra com os interesses instalados ou com a inacção dos que têm mais poder para alterar as coisas. Assim, corremos o risco de estarmos novamente em 2030 a repetir e reafirmar os objectivos, tal como acontece com a meta estabelecida para os países desenvolvidos de afectarem 0,7% do seu Rendimento Nacional Bruto à ajuda ao desenvolvimento, a qual vem já dos anos 1970 e continua a ser cumprida apenas por um punhado de países europeus. Não quer isto dizer que a Agenda 2030 não tem utilidade, mas apenas que deve ser aproveitada, o mais possível, para pressionar os decisores sobre o cumprimento dos compromissos assumidos, para fazer avançar as políticas, para tomar medidas a favor dos mais pobres e vulneráveis, e para implementar acções mais coerentes. A sociedade civil tem aqui um papel fundamental.
Em que medida este estudo constitui um instrumento para o suporte à tomada de decisão por parte dos vários stakeholders nas áreas do desenvolvimento e das migrações?
As migrações são hoje uma preocupação relevante para a maioria dos cidadãos europeus, que está sob os holofotes mediáticos e políticos, pelo que o estudo é uma oportunidade para veicular mensagens positivas sobre esta temática e contrabalançar os discursos populistas com factos concretos, chegando assim a mais pessoas e tendo um maior impacto nas percepções dos cidadãos. As instituições europeias, os responsáveis políticos, os líderes das organizações da sociedade civil e os órgãos de comunicação social têm papéis relevantes a desempenhar, sendo muito importante que estes intervenientes tenham informação concreta, baseada em investigações independentes, para desenvolverem o seu trabalho de forma mais coerente.
A sensibilização dos decisores é especialmente importante, porque muitas vezes, por desconhecimento ou inacção, não têm em consideração os impactos que as várias políticas e medidas têm na pobreza e na desigualdade social, quer ao nível interno, quer noutros países, particularmente nos mais pobres. Frequentemente, olha-se apenas para o critério orçamental (se existem recursos financeiros para implementar determinada medida) e, por vezes, também para o critério ambiental (se a medida não é nociva para o ambiente), mas descuram-se os impactos sociais. O projecto Coerencia.pt defende uma maior atenção a estas matérias, para que as várias políticas sectoriais tenham essa “lente” do desenvolvimento e possam contribuir para maior justiça social e prosperidade.
Jornalista