«As constituições dos países latinos, por defeito, estão enxameadas de artigos que pretendem englobar a totalidade da vida em sociedade, apresentando por isso um carácter efémero. Um código nestes moldes carece de actualizações quase constantes. Veja-se o caso da Constituição da República Portuguesa, que tem 46 anos e sofre continuamente alterações. Na ACEGE optámos por um modelo mais americano, se quiser; devido à sua ordenação em princípios, tinha apenas onze artigos na sua versão original. Mas mantém a actualidade, contrariamente à nossa constituição»
POR PEDRO COTRIM
Boa tarde, doutor Roquette. Obrigado por este acolhimento. Muitas perguntas gostaria de lhe colocar, mas talvez comece esta nossa conversa pelo tema da ética, que lhe é tão caro. Como se trata igualmente de um dos fulcros da ACEGE, quer falar-nos no Código de Ética da associação, visto o senhor ter sido um dos proponentes?
Boa tarde e o gosto é meu. Liderei um grupo de trabalho, constituído dentro da UNIAPAC, que se propôs a elaborar um código de ética. Entendemos que não deveria ser feito um código no sentido mais tradicional, mas sim tratar de um conjunto de princípios norteadores. Verificámos que as constituições dos países latinos, por defeito, estão enxameadas de artigos que pretendem englobar a totalidade da vida em sociedade, apresentando por isso um carácter efémero. Um código nestes moldes carece de actualizações quase constantes. Veja-se o caso da Constituição da República Portuguesa, que tem 46 anos e sofre continuamente alterações. Na ACEGE optámos por um modelo mais americano, se quiser; devido à sua ordenação em princípios, tinha apenas onze artigos na sua versão original. Mas mantém a actualidade, contrariamente à nossa constituição.
Uma grande diferença…
Efectivamente. A título de exemplo, ainda lhe digo que constituição brasileira decretava inclusivamente o valor da inflação, imagine! Que valor terá um tal artigo uns anos depois? Mas repare que o nosso governo agora é de maioria absoluta e que, ainda assim, não se vislumbra qualquer tentativa de reformar a constituição. Por ser um elemento pesado, torna-se estático, não se compadecendo com a rapidez com que o mundo se transforma. No nosso país, a aposta dos partidos incide sobre os votos, não sobre os eleitores, resultando que a perspectiva de governo não ultrapassa em muito os três anos de uma legislatura que em princípio duraria quatro. Neste caso que vivemos já decorreram seis meses sobre as eleições e ainda não há governo. Só podemos ficar pasmados. E está claro que não se vai mexer no modelo da constituição.
Não me parece grande fã do regime que temos, doutor Roquette.
Olhe, vou citar Winston Churchill: «a democracia é pior de todos os sistemas políticos com excepção de todos os outros». Sou democrata, evidentemente, mas Portugal não está bem cotado nas democracias liberais, pois temos o país a mergulhar nos indicadores internacionais. Podemos votar, mas por vezes votamos mal. Estamos em penúltimo em termos de crescimento na União Europeia e temos apenas a Roménia atrás de nós; muito provavelmente vai-nos ultrapassar brevemente. Porque não olham os eleitores portugueses para estes indicadores e percebem que é necessário pressionar muito a classe política para que se façam as reformas necessárias? Estamos num cenário de maioria absoluta, o que permite assacar culpas e atribuir méritos. Nada impede esta mudança, agora.
Alguma coisa impede, ou não estaria o senhor a dizer isto…
É verdade e não é só uma coisa. Há uma ferramenta mal usada e vou recorrer a Umberto Eco, de quem me afastei em muitas ideias, mas que foi um pensador muito lúcido, e que afirmou que as redes socias mais não fizeram que dar voz a muitos milhões de imbecis. O tempo que se perde nas redes sociais, escondendo a identidade e ecoando maus fígados, é transcendente. Muitas pessoas estão instaladas num emprego para a vida com o mau emprego de tempo consequente e vão parar ao facebook. Desdenham a mudança, e se desdenham a mudança, ou se nem sequer estão para ela, nada irá mudar. E tem isto ecos em toda a sociedade. Pessoas que nada sabem de engenharia começam a falar em enviar foguetões para a Lua ou para Marte. E depois é muito fácil manipular o pensamento com informações não verídicas.
Isto sucede sempre a não ser que haja um momento disruptivo, como esta invasão da Ucrânia.
Claramente. Aí já se juntam opiniões para o bem comum e estamos perante um teste terrível, porque do outro lado está um regime e um tipo de civilização que não é compatível com o nosso. Temos absolutamente de o combater. A liberdade tem um preço que temos de pagar. A linguagem macropolítica mudou e estamos hoje numa segunda Guerra Fria, porque se trata de um confronto de civilizações. O poder político, no caso dos absolutismos, e que o senhor Putin vem mostrar o que valem com esta guerra horrenda, decorre de cima para baixo, ao contrário do que sucede nas democracias liberais, que actua de baixo para cima.
Vivemos o que nunca esperámos viver…
Talvez não se possa afirmar isso. Repare que sabíamos, só que agora fomos despertados para a realidade, tal como sucedeu na Coreia do senhor Kim. Percebemos, aqui na Europa, que pavimentámos o caminho para este panorama. A senhora Merkel terá uma inscrição na lápide por ter falado sempre em russo (aprendia-se russo no ensino básico da RDA) com o senhor Putin e por ter assinado o acordo que permitiu o Nord Stream 2. O ex-chanceler Schroeder está na administração da Gazprom e da Rosneft. São péssimos sinais. Aliás, a senhora Merkel está escondida – não tem ouvido falar dela, pois não? Os alemães estão certamente zangados com Schroeder e com Merkel agora que vêem o país nas mãos dos russos em termos de gás e petróleo.
Como pode então a Europa emendar a mão?
Apenas de uma forma: aconteça o que acontecer, devemos à Ucrânia este reforço do sentido de liberdade, que nos está a dar a perspectiva de ter um preço e que nós temos mesmo de pagar, porque senão o senhor Xi e o senhor Putin mandam em tudo. Claro que para já vai conduzir a um mundo mais isolado e hoje em dia a economia global desapareceu. Primeiro através das sanções à Rússia e à China, e também pelas posições do governo dos EUA, com um país que está a meio caminho da Europa e da Ásia com as duas costas que tem, uma para cá e outra para lá.
Mas mais concretamente a Europa…
À Europa cabe este combate pela liberdade, e em Portugal temos de perceber como é que os países que se tornaram independentes da URSS se comportaram e têm hoje em dia melhores indicadores que nós. E porquê? Nós estamos na periferia geográfica e felizmente não temos a percepção de estar entalados entre dois regimes, como tiveram os países da Europa Central. Esta situação dramática na Ucrânia traz para tudo cima da mesa, pois ali se sabe muitas vezes o que se passa em casa dos outros.
A Rússia é enorme, mas os russos não são muitos.
É verdade. A Rússia é enorme e tem onze fusos horários, mas tem ao lado um país com metade da área e o décuplo da população. O senhor Putin tem de entender isto. A Rússia tem metade do PIB da França, e se lhe retirarmos as reservas de petróleo e de gás fica com um PIB idêntico ao de Espanha. Esta informação não chega aos russos, pois se lhes chegasse o senhor Putin já teria sido corrido há muito. Mantém a ideia da «terra mãe», com pavor da verdadeira comunicação social e tendo de controlar a informação. Os cidadãos pensam que vivem bem mas vivem mal. Vendem a história da «nazificação da Ucrânia» e justificam assim as suas acções. O dinheiro do petróleo e do gás vai apenas para o bolso dos oligarcas. Controlaram inclusivamente a internet.
Com manipulação da informação sobre o que se passa na Ucrânia.
A Ucrânia é um caso à parte nas repúblicas saídas da URSS. Houve presidentes do país que foram apenas títeres de Putin. Apesar de tudo, há um sentido de liberdade. Sabem tão bem o que se passa do outro lado da fronteira que inclusivamente montaram um sistema de defesa que está a fazer aos russos o que sucedeu aos americanos no Vietname. Só podemos esperar que a paz não demore a chegar…
Deixemo-la então chegar e continuemos a denunciar este atropelo aos direitos humanos e ao direto internacional. Há acontecimentos horrendos, mas há também alguma esperança nas negociações. Podemos então deixar a situação política internacional, esperando que se resolva rapidamente, e tornar ao tema do nosso país e do seu tecido económico e social. E à ACEGE, se me permite.
Certamente. Torno então ao código de ética, onde, conforme disse, se definem linhas de orientação, sendo por isso ainda actual. Adapta-se às grandes alterações que se deram neste sector, e, mesmo há pouco tempo, as empresas e o sector privado tinham unicamente relações com o mercado e com os accionistas; os accionistas ou sócios eram o ponto de referência.
E os CEO das grandes empresas eram remunerados em acções.
Por isso interessava-lhes a cotação, e não tudo o que hoje em dia está realmente em causa, como a sustentabilidade. Nos anos 70 apareceram as ideias de Milton Friedman, o grande mestre da economia das empresas. O objectivo das empresas era ganhar dinheiro e depois os accionistas que fizessem o que bem entendessem. Em menos de 20 anos passámos dos accionistas como responsáveis pela empresa para os stakeholders, o que originou uma perspectiva muito mais abrangente de compromisso. Estes stakeholders são constituídos por mão-de-obra, fornecedores, mercados, entidades reguladoras e fiscais. Não se olha para as empresas da mesma forma e o modo como os gestores têm de se adaptar a novas condições de outros intervenientes também se alterou.
Conforme as linhas do Código de Ética da ACEGE.
Penso que na altura o código foi adoptado mais por uma questão de moda que por uma questão de convicção, e afirmo-o em relação a uma grande parte das empresas portuguesas. Contudo, temos que cada vez mais opiniões se juntam a estes temas da responsabilidade social, como a questão das alterações climáticas. Tem que decorrer da responsabilidade social a atitude para por termo a esta exaustão do planeta, retirando tudo o que se pode sem sustentação ambiental. Tenho um enorme sentido de urgência, não só pelos 21 netos e 4 bisnetos, pois sinto mesmo solidariedade inter-geracional. E também não apenas no caso das alterações climáticas. No caso de Portugal, estamos a enviar para filhos e netos uma dívida quase impossível de pagar.
Parece-me uma oportunidade para falarmos do programa Compromisso de Pagamentos Pontuais (CPP), da ACEGE.
É uma boa oportunidade, sim. A campanha dos CPP teve igualmente o meu apoio, porque dentro do grupo de empresas que está sob a minha alçada, e antes de a comunicação mundial se debruçar sobre os stakeholders, já estava em prática. Não só para dentro das empresas, e trabalham mais de 300 pessoas nas que dirijo, mas igualmente endereçado aos fornecedores. Tínhamos reuniões regulares com todos para enquadramento, ajuste de preços e outra qualquer situação. Por exemplo, temos o caso dos fornecedores de vidro. Precisamos de 30 milhões de garrafas por ano e o vidro tem uma factura energética elevadíssima. Tentamos sempre antecipar a subida dos preços, comprando mais cedo uns milhões de garrafas. Não nos interessa o fornecedor mais barato, mas sim o que oferece a melhor relação preço/qualidade. Não se deve procurar, a todo o custo, apenas o preço mais baixo. É um dos princípios do código de ética.
Bom seria termos sempre bons princípios…
Ah, não duvide. Veja-se o caso da compra da Audi pelo Grupo Volkswagen. A dada altura, os fornecedores foram esmagados e estiveram muitos meses sem fornecimento nem possibilidade de produzir peças sobresselentes. Foi uma situação dramática que bem ilustra que estamos todos no mesmo barco: o da economia sustentável, que não depende unicamente dos que promovem a economia de mercado. É certo que vivemos fundamentalmente da economia de mercado, que entra em conflito com as plutocracias: a de Putin, de carácter pessoal, ou do senhor Xi, na China, que é uma plutocracia de partido único. Ambos nos querem dizer muito claramente que o regime deles é melhor que o nosso.
Certamente que nem um nem outro sabe o que é um código de ética.
Claramente que não. Tudo decorre de uma coisa que devia começar a ser cultivada de uma forma muito vigorosa, que é o sentido que as pessoas têm da liberdade. Não se limita ao «eu sou livre porque não estou preso nem confinado». A liberdade não é isto porque assim não tem em conta a liberdade dos outros. A liberdade, no caso que a ACEGE propõe, encaixa-se no sentido da fraternidade. No meu caso, sendo católico, vou ainda mais longe na relação com os outros, pois enveredo pela via de mais compromisso e de maior preocupação com a vida dos outros, que é curial num mundo que parece não ir por aí.
Como faz então uma empresa sua para obedecer ao Código de Ética, doutor Roquette?
Dando atenção às pessoas, a todas as pessoas, e muita atenção aos consumidores. Dou-lhe o exemplo do Esporão. A empresa precisa das redes sociais e temos de estar atentos, nomeadamente em termos de exportação. Não é feito no sentido de nos subordinarmos ao que sucede nas redes, mas actuando com filtros detectores para intervir no momento em que for necessário. Imagine que surge o boato «há álcool metílico nas garrafas do Esporão»: claro que temos de ver o que está por trás disso. É fundamental a nossa relação com os consumidores, que são stakeholders, e talvez os mais importantes, e que hoje em dia mandam mais nos mercados ou nas economias que o que decidem empresários ou gestores.
E o que cabe então aos empresários?
Cabe-lhes a antecipação e a previsão para evitarem erros. Se não as conseguem fazer, não se aguentam. Têm de se questionar, especialmente com perguntas do género «que tipo de mercado vou eu ter nos próximos anos? O que posso produzir?». No caso da vitivinicultura, se hoje vou plantar castas que não vão ter procura daqui a meia dúzia de anos, acabou. É um tipo de engano sem reversão. A antecipação permite-nos, por exemplo no caso das alterações climáticas, reajustar castas que possam ser mais resistentes ao ambiente que muda, que é o que estamos a fazer no Alentejo: temos técnicas biológicas já tratadas por nós em termos de i&d no sentido de substituir castas exigentes em termos de água por castas mais tradicionais do Alentejo, que apenas tem a rega proveniente do Alqueva há vinte anos. Não obedecemos à ditadura dos mercados porque muitas vezes os produtos criam os seus próprios mercados, o que é uma consequência importante dos gabinetes de inovação.
Têm então os empresários que obedecer à biologia.
Têm, claro. O Esporão é conhecido e reconhecido com distinções pelo modo de produção biológica (mpb), uma abordagem diferente do planeta e na natureza, não usando herbicidas, a fertilidade do solo não fica comprometida após uma colheita. Os vinhos mpb têm um overprice atribuído/cotado pelos mercados. Não é pelo «ah, este vinho mpb é melhor que o outro». Também fazemos vinhos da talha, onde Cristo fez o primeiro milagre da sua vida pública.
Quer falar-nos um pouco sobre o modo de produção biológica?
O modo de produção biológica tem apenas um overprice de 10 ou 15% em Portugal, sendo que no panorama internacional chega aos 35%. É incrível que o Esporão tenha 20% das vinhas em mpb do país inteiro. O sentido de reforma dos responsáveis políticos tem de ir mais além e actuar aqui. Um produtor não passa para mpb por incapacidade financeira; porque tem de suspender o modo de produção tradicional, terá provavelmente de sacrificar uns dois anos de produção, tem de reduzir o número de toneladas de uva que produz por hectare – no Alentejo, o valor de 6/7 tem de passar para 5/6, usando a parte superior da vinha, sobretudo, para fugir ao míldio e ao oídio. O mpb é uma certificação extremamente difícil de adquirir. No esporão iniciámos esta produção há quase 20 anos.
Intervenções no vinho, na agricultura em geral, na energia…
Na energia as mudanças foram abissais. Quem ousaria afirmar há uns quinze anos que os carros eléctricos iriam permitir updates para o software mais recente? Tenho um Tesla dos primórdios e não preciso de comprar um novo. Aumentou a autonomia, aumentou o desempenho e está a par com os últimos modelos. É quase um cenário de ficção científica! Aparece a mensagem «foi feito o download de um update; agora é o senhor quem decide se o quer instalar ou não.» Inteligência artificial em pleno funcionamento. Imaginar o que temos agora em carros eléctricos há dez anos pecaria sempre por defeito. E a competição, hoje em dia, reside sobre quem oferece mais autonomia e com que tipo de elemento se está a trabalhar. Estas baterias de lítio, a curto prazo, vão ficar esgotadas, e gerar depois um problema em saber o que se faz com isso. E não sabemos se será o lítio a permitir autonomias de mais de mil quilómetros.
Um tremendo problema ambiental, mas confiemos nos departamentos de i&d das empresas.
Confiemos e façamos com que as empresas neles invistam. Qual é o ponto mais fundamental para se ter inovação numa empresa? É um termo lato que pode significar muitas coisas, mas o mais fundamental é procurar talentos e desinstalar as pessoas. Se estão instaladas não têm sentido de mudança, sendo que é preciso transmitir-lhes um sentido permanente de mudança. Os empresários mais competentes procuram talentos, mas em Portugal as pessoas estão instaladas e em níveis de ambição muito reduzidos. Por isso somos o penúltimo país no tal indicador de crescimento da EU e a caminho de sermos o último.
Vamos acreditar que não e esperar que associações como a ACEGE possam ser cada vez mais actuantes. Quer comentar os 70 anos da associação?
A ACEGE é um elemento actuante e com peso e com o prestígio adquirido pela história. Ajustou-se bastante bem aos tempos correntes, com reuniões não presenciais e outras soluções pertinentes. Ocupa um lugar essencial entre os empresários portugueses. Penso que existem condições para que os caminhos suscitados pela ACEGE, possam ser percorridos. Está em sintonia com a Economia de Francisco. Trata-se do caminho cristão, que não exclui outras crenças nem o ateísmo, e que está em sintonia com a vida de todos os dias.
Um Papa dos nossos dias e para os nossos dias.
O papa Francisco chega às estruturas que contactam os fiéis para assim poder perceber os problemas. Está agendado um sínodo para o outro próximo ano que, pela primeira vez, terá grandes representações dos fiéis que não pertencem às hierarquias. A igreja não estava a chegar às «periferias». As pessoas, que, conforme Jesus Cristo veio afirmar, são o grande ponto de intervenção, sendo necessário abordar o problema da fraternidade e do amor ao próximo. A igreja tem de fazer alterações institucionais muito profundas. O caminho da liderança tem de ser percorrido. Não está a ser percorrido e não diminuímos a pegada carbónica. É altura de tratar de tudo. Do planeta, do próximo e dos valores que queremos deixar aos que vêm depois de nós.
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