Os desafios demográficos sérios com que Portugal se confronta foram tema de uma conversa com o economista João Duque. Mas não só. O presidente do ISEG fala igualmente dos aspectos negativos e positivos – porque acredita que os há – de uma intervenção externa no país que, afirma “já devia ter acontecido há muito tempo”
POR HELENA OLIVEIRA
Sem especificar a nossa inquietante situação económica e financeira, vivemos num Portugal envelhecido, com preocupantes índices de fertilidade e com um sistema de segurança social insustentável. Que grandes desafios económicos teremos de enfrentar no geral, a curto prazo?
Do ponto de vista demográfico, é evidente que a morte de um país pela demografia – não havendo uma guerra, um terramoto, uma catástrofe bacteriológica, uma doença assassina -, é uma morte lenta. A curto prazo não acontece nada, mas estamos perante uma bomba relógio com efeitos dilatados no tempo. Conhecendo a estrutura demográfica, a pirâmide etária, sabemos que só com a passagem do tempo, a estrutura vai evoluir: neste momento temos quase um triângulo invertido, o que significa que, qualquer dia, deixa de haver crianças dos 0 aos 5, depois dos 5 aos 10, e assim sucessivamente, e desaparecem os portugueses. Ou seja, com alguns pressupostos, isto é fácil de prever. Mas também podem existir outros fenómenos de curto prazo emergentes. Imagine que existe uma pandemia que ataca principalmente pessoas de idade. De repente, estas desaparecem e ficamos com o sistema de segurança social aparentemente equilibrado. Mas a prazo, sim, teremos os problemas que enunciou, de desequilíbrios gravíssimos e que podem até ser acentuados com movimentos migratórios. Tivemos alguns anos com um fenómeno curioso – que era o da imigração – que entretanto parou e agora estamos a começar a assistir ao fenómeno da emigração.
Uma das maiores e mais mediáticas questões que preocupa o país é o colapso do sistema de pensões de reforma. Afirmou recentemente que “não houve coragem para se rever as pensões de reforma calculadas sob fórmulas erradas”. Quão erradas estão estas fórmulas e que coragem é necessária para que se possam corrigir o mais rapidamente possível?
A coragem que é necessário ter, viu-se há poucas semanas. Alguém que diz que é preciso cortar nas pensões de reforma, e mesmo que seja de forma generalizada, é um factor que tem consequências dramáticas no espectro eleitoral.
Mas o Professor manifestou-se contra os cortes nas pensões mais baixas…
Sim, claro, porque há princípios de natureza civilizacional que são precisos. E eu prefiro que me retirem uma parte do meu salário para que o sistema de pensões seja mantido, pelo menos para aqueles que são mais necessitados. Mas também é necessário que se tenha um zelo criterioso, porque há pessoas a receber reformas, mas que continuam a trabalhar e com rendimentos maiores do que o meu. E estou eu e muitos a descontar, para estas pessoas receberem reformas, que podem até ser mínimas e miseráveis, mas o rendimento que essas pessoas têm em juros [com a aplicação que fazem desse dinheiro] pode acabar por ser superior ao rendimento que eu e muitos outros auferimos nos nossos salários.
Mas quando fala de cálculos errados, está a referir-se especificamente a quê?
No meu entendimento, existe logo um princípio que está errado. Até agora, não se tocaram nas pensões de reforma existentes. Tem-se cortado sempre nas pensões dos que se vão reformar. E isso é injusto. Porque, na prática, em Portugal, as pensões de reforma não são feitas com base num sistema de capitalização, mas sim com base num sistema de redistribuição. Isto é, quando estamos, durante uma vida, a trabalhar, e nos reduzem uma parte do nosso salário para a contribuição do sistema de pensões, essa redução não é para ser aplicada num fundo de investimento, mas sim para ser redistribuída por aqueles que estão neste momento na reforma. O que significa que, quando eu me reformar, eu não vou receber o rendimento mais o capital que poupei durante a vida, mas vou receber aquilo que os que estão a trabalhar nessa altura estão a descontar nos seus impostos para mim. E, portanto, há aqui uma falácia. O que aqui importa é fazer as contas com pressupostos diferentes. E essas contas são sempre feitas protegendo quem vai entrar na reforma e “carregando” sempre nos que ainda estão a descontar. E esta realidade vai criar mais uma convulsão, uma desagregação da sociedade, porque as gerações ficarão umas contra as outras. Ou seja, devia-se fazer nas reformas o que se faz com os códigos em geral: quando mudam, mudam para todos. Devia-se fazer um recalculo do impacto das alterações a fazer nos existentes, não sendo necessário cortar tanto nos futuros. Ou seja, este sistema daria mais esperança aos futuros, caso se cortasse um pouco mais nos actuais.
Defende, então, que este sistema é extremamente penalizador das gerações futuras…
Na prática, podemos dizer que isto é uma transferência de rendimentos. O que se está a fazer é a pegar-se nos mais jovens e a dizer-lhes: “vocês vão gastar menos agora e vão transferir mais para os vossos pais, que depois, se não consumirem, vos vão deixar o dinheiro por inteiro”. E a questão passa a ser: os que tiverem pais que sejam poupadinhos, beneficiam, os restantes não beneficiam nada. Ou seja, quando se tem um sistema de não capitalização, o que é adequado é fazer-se regras que se apliquem a todos. Vamos recalcular, mas para todos. Ou seja, vamos aplicar as novas regras às pessoas que já estão na reforma. O que me parece mais justo. Porque as gerações futuras estão a ser muito martirizadas devido ao desequilíbrio entre as gerações mais envelhecidas numerosas e as mais novas pouco numerosas. A continuar com este sistema, vamos continuar a penalizar mais e mais.
Sim, principalmente porque existe um número crescente de pensionistas a serem suportados por um número decrescente de activos…
Exactamente, e se a penalização é sempre para os mais novos, este desequilíbrio vai criar tensões no futuro. E mesmo que seja daqui a 20 ou 30 anos, são problemas de asfixia lenta. E como não teremos reformas, já nos estão a pedir para fazermos o nosso pé-de-meia. E não dá para tudo: viver, fazer o pé-de-meia, descontar, já para não falar das poucas oportunidades de trabalho, e as pessoas vão-se embora, pois ficam assustadas com os encargos que temos.
Portugal atingiu o seu recorde em termos de Índice Sintético de Fecundidade: 1, 32 filhos por mulher, para além de termos 118 idosos para cada 100 jovens. Não temos estrutura financeira para políticas de estímulo à natalidade. E com o aumento do desemprego, nem os imigrantes deverão continuar a afluir nem a população se atreverá a inverter esta tendência. Alguma fórmula mágica?
Tem de haver uma redistribuição daquilo que são as políticas de estímulo à natalidade, senão o país desaparece. Tem de se escolher. Devemos listar, elencar quais são as áreas que forçosamente têm de ser protegidas. E depois priorizar. Eu prefiro dar prioridade a quem tem filhos, do que à protecção do lobo. Dar prioridade aos jovens em idade de procriar e avaliar-se o impacto financeiro expectável.
Portugal poderá assistir a uma nova vaga de emigração, muito provavelmente protagonizada pela já famosa geração “à rasca”. O que vai ser de um Portugal que ficará com os idosos e dependentes e assistirá ao êxodo dos jovens, produtivos e enérgicos? Poderemos vir a assistir a uma verdadeira desertificação?
Pior do que isso. Não é a geração à rasca. É aquela que está activa, um segmento da geração que se desenrascou. Que, vendo o futuro que tem pela frente, sai e não volta. E este é um problema que é preciso perceber, porque quem se vai embora serão as pessoas competentes, o que é um drama. E depois há os mais jovens que, por exemplo, fazem um programa Erasmus: aumentam os seus níveis de confiança e sentem que são iguais ou melhores que os outros. E são miúdos desenrascados, adaptados e flexíveis. Mais ainda porque esta nova geração não tem, como a vaga de emigração dos anos 60, o hábito de poupança. Têm um estilo de padrão de consumo parecidíssimo com os locais para onde vão, porque não são portugueses, mas sim de uma classe social europeia. E têm comportamentos de consumo desta classe social. Ou seja, não repatriam os capitais. De qualquer das formas, também não estou à espera – e espero bem que não – que o êxodo de emigrantes seja parecido ao que aconteceu nos anos 60. Mas se as pessoas perdem o interesse e a confiança no país, temos um problema grave.
Esse problema grave insere-se na defesa que tem vindo a fazer de que Portugal já deveria ter pedido ajuda externa há muito tempo…
Convém enumerar os pontos positivos desta afirmação: ter dinheiro mais barato e ter um governo focado no corte da despesa. Estas são, no meu ponto de vista, as duas grandes vantagens. E o dinheiro mais barato significa muito dinheiro. Fiz recentemente um exercício com o Professor Paulo Trigo Pereira, no qual simulámos qual seria a diferença em termos de juros pagos durante cinco anos, financiando praticamente as nossas necessidades de dois anos, com impacto nos outros cinco. E a que conclusões chegámos? Que tal significaria valores aproximados dos 2500 milhões de euros. Ou seja, estamos a falar de muito dinheiro. Portanto, considero que isso seria um benefício muito grande, que depois poderíamos tentar repercutir na economia, não se cobrando tantos impostos como os que teríamos de cobrar caso não fizéssemos o pedido de resgate, por um lado. E, por outro, embaratecer o custo do capital nas empresas, algo que se for conseguido, tornaria o investimento mais atractivo. Tendo em conta que as previsões neste momento são de quedas sucessivas no investimento, o que é terrível, pois não vejo forma de continuarmos a absorver desempregados de ano para ano com esta queda de investimento. Portanto, se conseguirmos travar o custo do capital, embaratecê-lo para se tornar um pouco mais atractivo para as empresas investirem, não aumentar tanto a carga fiscal e também não reduzir aquilo que são os apoios que o Estado concede ou os serviços que presta, para além de abrirmos o investimento ao exterior, penso que são medidas que podem ter impacto positivo.
E no que respeita ao lado negativo?
Por um lado, há a questão psicológica. Não se pediu ajuda anteriormente por teimosia, por visões políticas e politiquices. E, em boa verdade, só o último PEC é que foi um PEC sério. Só de Janeiro para cá é que sentiu verdadeiramente alguma coisa. Há um problema de descrédito nacional no que respeita às contas públicas. Mas o problema não é divulgar que as contas estão trapaceadas, mas sim terem trapaceado as contas.
Não sabiam que os submarinos tinham sido comprados? Sabiam. E porque é que não disseram às pessoas logo no início? Para além de eu considerar que faz sentido estes terem sido comprados dada a dimensão que Portugal tem em termos de controlo de superfície marítima. Mas somos “rentistas”? Vamos alugar aquilo? É como a terra. Não temos que ter guardas-florestais? Não temos que ter polícias na rua? Sim, é um custo. Mas existe um benefício extraordinário que é uma superfície marítima colossal face à dimensão do país e, portanto, temos que ter algum custo com isso. Mas teríamos que ter incorporado este custo logo no primeiro dia de Janeiro. Ou seja, começámos logo “abaixo de água” com dois mil milhões de euros. Portanto, vamos trabalhar para tapar isto e chegarmos ao limite dos 14 mil milhões. E o que é que se fez? Nada durante todo o ano e, quando chegamos ao final, disseram-nos que ainda faltavam os submarinos. E onde é que vamos buscar o dinheiro? Vamos à PT. E o buraco foi tapado com a PT.
Está-se, portanto, a omitir números aos portugueses…
Este ano tem que se avisar já que vamos incorporar como custo o BPN. E temos que começar daqui. Os portugueses que não pensem que o nosso défice vai ser de 10 mil e 500 milhões. Não. Vão ser de oito mil milhões porque dois mil milhões já lá foram. Andaram a meter aquilo debaixo do tapete. Se tivesse havido um compromisso, as pessoas percebiam que teria mesmo de ser assim, que teríamos de cumprir. Eu estive a ver a execução orçamental do ano passado, mês a mês, e era uma vergonha pior que a de 2009.
Mas o que é que as pessoas têm mesmo de perceber neste momento?
Eu olho para o meu salário. Se me tiraram 10%, eu não finjo que a minha vida é igual. Ou seja, este ano não posso fazer a mesma coisa que fiz o ano passado. Ou se fizer, vou poupar menos. Mas para poupar a mesma coisa, tenho que abdicar de alguma, por exemplo, das férias. É um custo. E se me tiraram 1,4 salários não vou, obviamente, ficar na mesma.
Acredita que teríamos ganho alguma coisa caso tivéssemos pedido o resgate mais cedo?
Penso que o auxílio deveria ter sido pedido com tempo e não em pressão. Já se devia ter pedido há bastante tempo. Se eu estiver a vender um activo, uma casa, e estiver pressionado com falta de dinheiro, vendo por qualquer preço. Pelo contrário e se houver tempo, existem condições para se negociar melhor. Portanto, nunca consegui perceber esta fixação ao não apoio do FMI, depois de estarmos sucessivamente no mercado primário a apanhar com os juros do mercado secundário. Faria sentido algum estarmos com juros a 9% quando podemos ir buscar a 5%? É de loucos. É de insanidade. De um indivíduo que não estava no seu perfeito juízo. Ou então é um especulador nato. Um especulador é um indivíduo que aposta – e ainda por cima é mau especulador, porque aposta e perde dinheiro continuamente – que acha que tem sorte no jogo e que fez disto uma roleta russa. Só com uma diferença: a roleta anda, mas aponta à cabeça dos outros, dos portugueses. Isto foi um crime.
Apesar de não se saber ainda pormenores do pedido de ajuda, é possível perspectivar o futuro do país daqui a 5 anos?
Temos um país com um problema económico e com um problema financeiro. Um problema económico de desequilíbrio de relações externas – entre aquilo que consome e aquilo que produz, aquilo que entra versus aquilo que sai – ou seja, entra muito mais do que sai, e estes desequilíbrios da balança comercial a longo prazo trarão problemas gravíssimos. Se durante alguns anos ainda é possível aguentar – ou porque temos emigrantes que mandam dinheiro, ou é a Europa que manda dinheiro -, sabemos que isso um dia acaba e começa um problema dramático.
Mas então o que é mais premente mudar?
Não perceber as mudanças e continuar na mesma, sem alterar o problema da estrutura económica portuguesa – investir e apoiar os chamados bens não transaccionáveis – tem trazido a Portugal uma estrutura deficiente da economia. Podemos fazer uma analogia com um fígado doente que, aparentemente, não se via, mas que agora, à flor da pele, aparece uma enorme icterícia. Ou seja, o problema é dramático de aparência. A nossa aparência é péssima. O problema financeiro é o mais emergente, mas mesmo maquilhando-o, equilibrando o orçamento, não muda Portugal.
Portugal tem que mudar a sua estrutura produtiva, passar a aumentar as exportações, reduzir as importações, equilibrar-se comercialmente para começar a sobreviver no longo prazo. Para que a riqueza produzida em Portugal tente ficar localizada no país.
Portanto é necessário mudar este paradigma, o que não é nada fácil de fazer, em digamos, cinco anos. Mas resta-nos uma hipótese de duas: ou se começa a mudar Portugal ou Portugal não vai mudar nunca. Daí que a questão que é urgente colocar é se estamos a mudar Portugal. Quando olho para o mapa de previsões de investimento, o que vejo é um sintoma dramático. Vejo que as análises de perspectiva para o fígado estão cada vez pior, com previsões para piorarem cada vez mais. A doença não só não passou como se vai agravar nos próximos anos. E é por isso que eu não percebo o porquê da existência de documentos que me dizem que vamos ter cada vez menos investimento.
A retoma económica passa, forçosamente, por mais investimento?
Não podemos ser mais eficientes com o mesmo investimento. Há vários factores conjugados. Todos temos que melhorar o que fazemos, trabalharmos mais eficientemente, com mais qualidade e sermos mais competitivos. Mas todos temos que melhorar. Mas não há duvida nenhuma que muito passa por fazer investimento. Talvez seja dado um novo estímulo com uma equipa governativa nova. A chamada chicotada psicológica pode ajudar às vezes. Os investidores, os da economia real, talvez consigam ganhar um pouco mais de confiança. Trazer o investimento estrangeiro para Portugal é fundamental. Retocar o mapa logístico para fazer de Portugal uma boa plataforma que possa servir como entrada da Europa.
Mas não com grandes obras estilo TGV…
O TGV é para transporte de pessoas, não tem interesse nenhum. O que tem interesse é uma linha vital europeia a ligar, por exemplo, o porto de Sines ao coração da Europa. Mas para enviar mercadorias não é preciso que se ande a 200 à hora. Sim, é preciso gastar algum dinheiro, é preciso fazer alguns sacrifícios em prol desses investimentos, porque isso pode dar dinâmica a Portugal. Mas o que não for estritamente necessário e produtor de riqueza, não vale a pena, senão fechamos a loja.
Mesmo assim, acredita que as coisas possam correr melhor?
Vão ter que correr melhor. E que o governo que vier não seja um que não diga a verdade às pessoas. É como quando se vai para uma guerra. Não vale a pena dizer que está tudo bem enquanto se ouvem os canhões lá fora. As pessoas, desde que lhes digam a verdade, encaram esses sacrifícios de forma diferente. Isto vai ser duro, mas dentro de X tempo há-de estar melhor. Mas atenção: os sacrifícios têm de ser para todos. E os exemplos não significam dinheiro, significam exemplo. Ser o primeiro a dar o exemplo.
Nota: Uma versão reduzida desta entrevista foi originalmente publicada no suplemento Mais Responsável do jornal OJE.
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