“Um trabalho de David contra Golias”. É assim que Fernando Bebiano Barreto, coordenador nacional do programa Compromisso Pagamento Pontual, descreve o movimento criado em 2014 para transformar o ciclo vicioso dos atrasos nos pagamentos a fornecedores num círculo virtuoso que beneficia a economia e a sociedade, em geral. As sementes já lançadas estão a dar frutos e, desde então, mais de 2.500 empresas e entidades já subscreveram o compromisso. Ainda assim, os números mostram que o terreno vai exigir um esforço contínuo e perseverante: afinal, apenas 18 em 100 empresas pagam a horas em Portugal, o que coloca o país na cauda da Europa
POR FÁTIMA DE SOUSA

O que está na origem do Programa Pagamento Pontual?

Há dois programas que são a base do programa. O primeiro é a verdade, e o amor à verdade ensina-nos a beleza do compromisso. Temos consciência de que não há sucesso na vida sem compromisso, quer nas relações humanas, quer nas relações empresariais. E o compromisso tem a ver com cumprir. Se definimos um prazo com os nossos fornecedores, é nosso dever ético pagar nesse prazo. Devemos ser coerentes na gestão dos nossos fornecedores, do mesmo modo que o exigimos aos clientes. É um princípio ético da economia. O outro pilar decorre daqui: pagar a horas faz crescer Portugal. E esta decisão não é uma escolha, é uma obrigação ética. Não pagar aos fornecedores é uma falta de ética grave.

O que queremos é, pois, criar um movimento social no sentido desse compromisso com o prazo. E está em crescimento: já reunimos cerca de 2.500 empresas, distribuídas pelo país, entre micro, pequenas e médias empresas e grandes grupos económicos, mas também associações, institutos públicos e câmaras municipais. O nosso objetivo é contrariar uma cultura – que, infelizmente, existe em Portugal – de atrasar o pagamento. Em 100 empresas, apenas 18 pagam no prazo. É grave. Na União Europeia, estima-se que a média seja 50%, sendo que, nos países nórdicos, anda pelos 70, 80%. Estamos a falar de uma realidade complicada, até mesmo na relação económica das empresas portuguesas com o exterior: as empresas estrangeiras já sabem que, em Portugal, o compromisso com o pagamento é curto; até nas grandes empresas, em que apenas 4% cumprem os prazos.

Este programa surge, essencialmente, para proteger as pequenas e médias empresas, dando-lhes a possibilidade de criar uma união de esperança na economia. Ao incentivar este ciclo virtuoso de pagamentos, estamos a salvaguarda-las do risco de falência. De acordo com a Comissão Europeia, 25% das falências na Europa advêm de atrasos nos pagamentos. O que afeta também o emprego. Um estudo feito pelo professor Augusto Mateus mostra que um atraso de pagamento na ordem dos 12 dias – se o prazo for de 30 dias e o pagamento ocorrer a 42 dias – tem um impacto negativo na economia que, a cinco anos, gera 72 mil desempregados.

Neste contexto, tentamos sensibilizar os líderes, sobretudo os mais novos, para a importância do pagamento pontual. Digo os mais jovens porque as pessoas com mais idade ainda têm uma cultura de prender o dinheiro, de se financiarem nos fornecedores em vez de na banca. Não é uma boa gestão, afeta as empresas, os fornecedores, os colaboradores e as suas famílias, e envolve um valor muitíssimo relevante para a economia – neste momento, o valor em atraso, em Portugal, ronda os 68 mil milhões, três vezes superior ao valor do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] que o país pediu para investimento público, que anda à volta dos 22 milhões. Se houvesse um compromisso, este valor estava nas mãos dos fornecedores, o que iria fazer com que as empresas fossem mais competitivas, pois tinham mais tesouraria e podiam fazer mais investimentos, por exemplo. Com certeza que isso teria um impacto brutal na economia.

Refere que é uma cultura de gestão que justifica que apenas 18 em 100 paguem pontualmente. O que é possível fazer para mudar?

Efetivamente, tem a ver com uma cultura instalada. E por isso é que a gestão de jovens pode ser tão impactante na mudança que promovemos. O que fazemos é tentar inspirar os líderes para novas práticas de gestão, que sejam benéficas para todos. E estamos a conseguir porque, todos os anos, duplicamos valores de adesão ao compromisso.

Somos um movimento social sem fins lucrativos e temos consciência de que, para chegar às empresas, tem de haver divulgação, pelo que realizamos sessões públicas de norte a sul do país, em que entregamos os diplomas do compromisso às empresas cumpridoras e para as quais convidamos as forças locais, nomeadamente os autarcas, porque entendemos que é muito saudável criar uma cultura de pagamento regional. É como quando se lança uma pedra a um lago: formam-se ondas circulares que se vão alargando. Há que começar por algum lado e a melhor forma é localmente, porque acreditamos que depois vai alastrar pela economia.

O que explica que apenas 4% das grandes empresas pague a horas?

Infelizmente, o que nos parece é que as grandes empresas sentem que têm algum poder negocial. Como têm uma estrutura maior, são capazes de aguentar por períodos maiores e ter uma vantagem sobre os fornecedores. É um engano, uma lógica de curto prazo, sem grande futuro, porque os atrasos têm impacto em todo o mercado, não só nos fornecedores. Já há orientações comunitárias para definir os 30 dias como teto máximo para os pagamentos. E o governo português colocou no Orçamento do Estado uma orientação clara de pagamento a 30 dias entre os organismos públicos, tendo ainda criado uma conta corrente das empresas públicas com as privadas, de modo a fazer um ajuste de contas entre pagamentos e recebimentos.

É possível identificar diferenças por setores?

O problema é transversal, mas há setores piores do que outros. O dos transportes, por exemplo, é dos mais incumpridores, e o das telecomunicações é o melhor. Talvez porque as empresas das novas tecnologias sejam geridas por pessoas mais novas, com outra cultura de gestão, para quem o negócio é servir, prestar um bom serviço. Uma cultura de empreendedorismo. Já nos transportes, os players são mais antigos. Mas, estamos sempre a falar de valores médios.

De norte a sul, também há diferenças. No norte, paga-se melhor do que no sul, sendo o Algarve a região onde se paga pior, talvez por alguma inércia das empresas locais. Os Açores e a Madeira têm uma boa cultura de pagamento.

E a administração pública, como se comporta, atendendo a que é tida como má pagadora?

Não podemos ver o Estado todo por igual. O grande problema dos atrasos no Estado tem a ver com a Saúde. Porque uma coisa é pagar a 30 ou a 60 dias, e outra é pagar a dois anos. O que o governo fez foi reestruturar a dívida e renegociar os prazos, o que passa por pagar as novas contas dentro dos prazos, a 30 dias, e pagar a dívida acumulada em bloco, ao abrigo do plano de pagamento.

Quanto às autarquias, temos visto com agrado que estão a aderir ao compromisso. Só para citar algumas, Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, Viseu, Torres Vedras… E, quando vamos a cada um dos municípios, tentamos que os presidentes sejam os grandes promotores do programa. Afinal, se eles querem cativar investimento é fundamental que as empresas das suas regiões sejam saudáveis e o prazo de pagamento é um sinal disso. Claro que gostaríamos de ter todas as câmaras e juntas de freguesia connosco, mas o número está a aumentar de ano para ano. O caminho está a ser percorrido, a sensibilização está a acontecer, mas não se consegue de um dia para o outro.

Como é que acontece a verificação de que as empresas aderentes são, de facto, cumpridoras?

De três em três meses, fazemos uma auditoria à nossa base de dados e vamos vendo se as empresas que estão no programa estão a cumprir ou não. No fundo, fazemos o fine tunning das faturas – conseguimos acompanhar o percurso de cada fatura, saber quanto tempo demorou entre a emissão e o pagamento. Se houver discrepâncias relevantes, numa fase inicial pedimos explicações, damos um prazo para regularizar a situação e, se verificarmos que não é possível, convidamos a empresa a sair do programa. E, se ela encontrar o seu caminho e a forma de estabilizar os pagamentos, pode sempre voltar.

O nosso papel não é sermos polícias, é apoiar as empresas, pelo que, se pudermos ajudá-las a encontrar uma solução, vamos fazê-lo. Temos uma base de dados relevante – estamos a falar de 1.200 empresas associadas da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE) e de mais de 200 mil empresas ligadas aos nossos parceiros. Acreditamos que o facto de estarem no programa, só por si, vai ajudar as empresas a fazerem mais e melhores negócios. Quando a empresa é certificada e recebe o diploma e os selos, isso traduz o reconhecimento de que pertence ao grupo mais credível. Aliás, o nosso próprio site é uma janela para o mercado, pois significa que o fornecedor de uma empresa aderente tem mais probabilidade de receber a horas. É um movimento que está no início. Representamos apenas 2% das empresas, mas estamos em crescimento. Costumo dizer que somos construtores de esperança: se inspirarmos os gestores a viver uma cultura de compromisso empresarial estamos a transformar a sociedade.


O compromisso

Pagar a horas, fazer crescer Portugal. É este o lema do Compromisso Pagamento Pontual, iniciativa da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores em parceria com o IAPMEI – Agência para a Competitividade e Inovação, a CIP – Confederação Empresarial de Portugal, a APIFARMA – Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, e a Ordem dos Contabilistas Certificados, bem como o apoio da Informa D&B e do Santander.


Conta corrente

  • 18% das empresas em Portugal paga dentro dos prazos acordados;
  • 23 dias é a média do atraso nos pagamentos;
  • 68,2 mil milhões de euros é o valor por pagar aos fornecedores;
  • 29,3 é a taxa de cumprimento do setor das tecnologias de informação e comunicação;
  • 9,6% é a taxa de cumprimento das empresas do setor dos transportes;
  • Na União Europeia, cerca de 50% das faturas é paga com atraso;
  • A Roménia é o pior pagador europeu, com 9%;
  • A Dinamarca é o melhor, com uma taxa de cumprimento de 94%.

Fontes: Informa D&B e Comissão Europeia

Nota: Entrevista originalmente publicada na Supply Chain Magazine. Republicada com permissão.

Imagem: ©Markus Spiske/Unsplash.com

Jornalista na Supply Chain Magazine - www.supplychainmagazine.pt

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