Talvez seja pela necessidade de imaginar que não estamos sós que desprezamos o éden em que vivemos, o berço cósmico que nos embala entre ondas gravitacionais e que está repleto de vida. Essa mesma vida que nos deu origem e que se seguirá após os nossos muito prováveis últimos passos sob este planeta
POR NUNO GASPAR OLIVEIRA

Pisca… pisca… pisca, o ritmo cardíaco do cursor é o primeiro sinal de vida de um novo texto. Aos poucos, uma ideia vai ganhando corpo, materializando em finas camadas celulares de pensamentos e conhecimentos pré adquiridos os tecidos primordiais de um organismo em desenvolvimento. Para além do A, C, T e G, o teclado tem mais uns quantos caracteres, o que torna mais complicado aquilo que a Natureza faz de forma simples, codificar toda a vida no planeta com quatro letrinhas apenas, correspondentes às quatro bases que constituem as múltiplas combinações da hélice de DNA.

Desde os primeiros organismos unicelulares e de simetria simples até ao desenrolar caótico das séries de Fibonacci e dos fractais de Mandelbrot que criaram formas tão exuberantes e maravilhosas como a orca, o rato do campo, o vírus da gripe, a orquídea-abelha, a aranha tigre de jardim ou o ser humano, as possibilidades são infinitas. Somos feitos exactamente a partir da mesma base codificante que qualquer um dos seres vivos que existem ou já alguma vez existiram e, muito provavelmente, alguma vez existirão no terceiro calhau a contar do sol.

[quote_center]A vida já sobreviveu a cinco grandes colapsos e está agora a meio do sexto crash, powered by Homo sapiens[/quote_center]

Não deixa de ser curioso pensarmos que nos calhou a estranha sorte de sermos guardiães deste tubo de ensaio cósmico. Até ver, apesar dos anseios paradoxais de Fermi que olhava para a miríade de possibilidades de existência de vida extra terrestre num raio de apenas meia dúzia de milhares de anos-luz e ponderava como era possível ainda não termos (provas de) contactos imediatos do terceiro grau, estamos completa e assustadoramente sós. Ou bem conhecendo um pouco do que é a rara natureza humana, é tão ou mais aterrador pensar que não estamos sós do que nos imaginar a vogar solitários na infinita noite negra.

Talvez seja por isso que temos esta urgente necessidade de criar amigos e inimigos imaginários, que se reflectem em desenhos sugeridos pelo bruxulear pálido da luz fóssil de estrelas que há muitos milhões de anos colapsaram em supernovas ou são hoje buracos negros que, à semelhança de Kronos, vogam agora pela imensidão enquanto devoram os seus filhos.

Talvez seja pela necessidade de imaginar que não estamos sós que desprezamos o éden em que vivemos, o berço cósmico que nos embala entre ondas gravitacionais e que está repleto de vida. Essa mesma vida que nos deu origem e que se seguirá após os nossos muito prováveis últimos passos sob este planeta.

A vida já sobreviveu a cinco grandes colapsos de software (mais do que muitos computadores da maior parte das pessoas que vão ler esta crónica) e está agora a meio do sexto grande crash (leia-se extinção), powered by Homo sapiens. Recuperou sempre. Com quatro letrinhas apenas, reconstruiu, reinventou e renovou a vida no jardim, sob e sobre as águas e os céus, um imperativo biológico imparável que, num escasso intervalo de tolerância em termos de temperaturas e elementos naturais, coisa rara (mas não assim tão rara, segundo Fermi e os seus seguidores) e preciosa, reconquista uma e outra vez o seu direito a existir. O nosso direito a existir. E esta é a parte mais estranha. Nós insistimos que o nosso direito a existir se sobrepõe a quaisquer outras formas de vida.

Desculpamo-nos com a nossa grandeza, defendemo-nos com astronautas do etéreo a que chamamos deuses, traçamos linhas imaginárias de uma absurda geografia do céu, daqui para lá manda o meu favorito, que é obviamente muito melhor que o teu. E numa pequena, minúscula partícula de pó glorificado, discutimos incessantemente quem criou a vida e, mais importante, quem tem o direito de a tomar, por razões que têm tão pouco de espiritual.

Temos uma estranha obsessão de domínio sobre as coisas e as bestas embalado por uma perturbadora necessidade de autorização suprema para o fazer, somos como as crianças abandonadas à sua sorte que William Golding soube tão bem retratar no ‘Senhor das Moscas’, um perigo para nós próprios e para as mesmas formas de vida que nos sustentam. Olhamos para os céus à procura dos tais deuses-astronautas e riscamos com os nossos frágeis dedos as linhas imaginárias que os definem no firmamento. Buscamos o destino nas estrelas enquanto, encavalitados num autista desígnio de supremacia, espezinhamos o precioso tecido natural que nos deu mente e asas para voar.

[quote_center]Somos como as crianças abandonadas à sua sorte, um perigo para nós próprios[/quote_center]

Estamos tão fixados na nossa superioridade que nos tornámos especialistas em detalhes e narrativas. Conseguimos explicar o invisível com precisão e textura, mas agimos de forma idiota e displicente perante as evidências palpáveis da nossa acção funesta e decadente sobre a Terra e os nossos companheiros, mesmo com os da mesma espécie. Queremos tanto ser o capitão desta nave sideral e mal reparamos que só descobrimos onde fica o acelerador, que pisamos com fervor suicida. A direcção não é tão interessante como a velocidade, e como vamos depressa!

Por vezes, no meio da grande aceleração, passamos por cima de lombas de velocidade pessoais, temos um azar na vida, mudam-se os tempos, elegemos monstros para nos governar ou perdemos um ente querido. Mais uma vez, o medo e a incerteza agem como travão, mesmo que momentâneo. Questionamos o visível e o imaginário em busca de justificação, atravessamos o grande vazio e negamos que ele exista. O vazio. Aí contemplamos tudo aquilo que nos preenche, dentro e fora de nós, em busca de sentido ou conforto. E aí ressurgem as pequenas coisas, um pôr-do-sol magnífico, um melro que pousa à nossa janela, uma onda que se enrola num desvario de prata, uma folha coberta de geada que parece uma escultura feérica.

A vida reconforta-nos, recorda-nos que nunca estamos sós, que não viemos do nada nem fomos criados por artes mágicas nem por artes mágicas daqui seremos levados. Não voltamos ao nada, mas sim a fazer parte do grande ciclo da vida. Voltamos aos elementos atómicos, carbono, azoto, oxigénio… estes são os blocos elementares que constituem a matéria. Mas da matéria se faz vida, acontece assim no frágil, porém, resiliente planeta Terra. O planeta vivo. O planeta luxuriante, belo, assustador, confortável e intrigante. E cheio de problemas, muitos deles causados por nós, os inquietos inquilinos que tanto temos de maravilha da evolução como de apetite pela destruição.

Mas ver problemas é fácil, muito mais fácil do que vislumbrar soluções. Eis um exemplo: peguem numa página em branco e coloquem lá um minúsculo ponto negro. Mostrem a quem estiver ao vosso lado e perguntem o que vêem. Aposto convosco que a maioria, senão toda a gente, vai dizer que vê um minúsculo ponto negro, o problema. Com sorte, uma pessoa poderá dizer algo diferente, que vê uma imensa página em branco. Perante si está agora um ser humano com um dom, o dom de imaginar o futuro, de ver para além do ponto e com a capacidade de criar. Porque o futuro é de facto uma página em branco: apesar de sabermos que muito está escrito noutros capítulos, haverá sempre um espacinho para introduzirmos um pouco da nossa vida na grande história da vida.

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence