Acredito que naquele momento o Rodrigo se sentiu a mãe a quem tinham acabado de tirar o filho, lhe doeram as pernas dela que corriam pela rua e foram dele os gritos que ela gritava, e que foi por isso que ele largou tudo e bateu com os punhos
POR ANA ROQUE
Escrevo esta crónica a propósito da nossa contenção, da nossa ponderação e boa educação, do nosso verniz que às vezes pode ser (mesmo sem nos darmos conta) uma capa que esconde uma boa camada de miopia moral e de falta de coragem.Sexta-feira, 10h da manhã. O telefone toca e do outro lado é o Rodrigo (nome fictício), amigo de longa data que ia nesse dia inaugurar a sua segunda exposição individual em Paris. A voz é a de um Rodrigo alterado. Conta-me que à porta do supermercado onde tinha ido fazer umas compras estava sentada no chão uma mulher romena com uma criança ao colo e que, de repente, chegaram uns carros da polícia.

Os polícias começaram a falar com a mulher, que visivelmente não falava francês. Subitamente, um deles arranca-lhe dos braços a criança, leva-a para um dos carros que arranca, enquanto a mulher grita desesperada e depois começa a correr descalça, rua fora, tentando alcançar o carro que tinha lá dentro o seu filho.

Ao telefone o Rodrigo dizia: “levaram o filho sem levar a mãe, estás a ver, Ana? Ela não falava francês, se calhar ela não ia saber onde procurar o filho!”

Muitos de nós, tal como o meu amigo, ficaríamos chocados também. Se tivéssemos assistido a esta cena e chegássemos a casa ou ao trabalho contando o que tínhamos visto, toda a gente ficaria também chocada, porque, afinal, somos todos pessoas sensíveis – mas a ética, a verdadeira ética, aquela que, diz Pascal, goza com a ética, não é uma ética de pessoas que sejam apenas sensíveis.

E o Rodrigo largou as compras, avançou para o segundo carro da polícia que também se preparava para avançar e pôs-se à sua frente, bateu com os punhos no capot e disse: “isso não se faz, não se leva um filho deixando a mãe, vocês têm de levar a mãe!” Os polícias saíram do carro, começaram a discutir com ele, as vozes subiram de tom, disseram-lhe para ele ir para a terra dele (para vir para cá) e ele continuou a insistir e acabou por dizer:

– Se tu fosses um homem e tivesses feito o que acabaste de fazer eu partia-te as trombas, a tua sorte é seres uma farda e eu não saber como partir as trombas ao Estado que a tua farda representa.

A história terminou com um processo para o meu amigo. Não ficou a saber o que aconteceu à mulher e à criança e telefonou-me a chorar de frustração e eu chorei também por ele, pelo mundo em que vivemos e que às vezes deixo passar em frente aos meus olhos sem nada fazer.

Jean Nabert, um dos meus filósofos preferidos, fala do Acto Incordenável. Um acto incordenável é algo que fazemos quando estamos em presença de algo que se torna maior do que nós, que se sobrepõe a todos os planos que tínhamos para a vida (como uma exposição a inaugurar às 6 da tarde) e se torna em algo que temos absolutamente que fazer. É o que faz com que alguém se atire à água para salvar uma criança que se está a afogar, mesmo sem saber se vai conseguir sair, mesmo sabendo (nesse momento esquecendo) que tem outras crianças em casa para criar.

Temos escolha. A liberdade está nos bastidores de todos os nossos actos.

Há alguns anos vi um filme chamado Dos Homens e dos Deuses, de Xavier Beauvois, que me tocou particularmente. Nesse filme, é retratada a vida de oito monges num mosteiro nas Cordilheiras do Atlas, na Algéria, até que se instala a violência e têm de decidir se devem partir ou ficar. Há grandes discussões entre os monges sobre se devem sair por correrem risco de morte. Não há consenso.

A situação só se resolve quando uma pergunta lhes é feita pelos aldeões da aldeia onde ficava o mosteiro. Estes perguntam aos monges o que pensam fazer e eles dizem algo como “nós estamos como pássaros a balançar sobre um ramo, não sabemos se havemos de partir ou ficar”, e alguém da aldeia responde: “os pássaros somos nós, vocês são o tronco onde sempre pensámos que podíamos pousar.” E os monges ficam, por amor aos homens.

E este, para mim, é por excelência o exemplo do tal Acto Incordenável de Jean Nabert, fruto da produtividade infinita da consciência. Algo que ultrapassa o carácter mais ou menos herdado e criado no mundo em que nascemos, a nossa personalidade e a vida com todos os planos que tínhamos para ela, e nos faz exercer o sublime dom da liberdade, superando-nos a nós próprios.

Mas voltemos a algo mais corriqueiro, à nossa vida de todos os dias, e ao meu amigo e a mim a chorarmos ao telefone. Acredito que o que se passou com ele e que fez com que agisse foi algo que outro dos meus filósofos de eleição, Martin Buber, chama a palavra princípio “Eu-tu”.

Buber considera que, regra geral, nós olhamos os outros e as coisas como elementos com características: as pessoas são altas, baixas, homens, mulheres, portugueses, franceses, romenos, com filhos, sem filhos, interessantes, desinteressantes. E enquanto as descrevemos assim, por mais elogiosa que seja a nossa descrição, elas são para nós um isso, (ou um ele, ou ela) algo de externo. Algo que não nos pertence.

Mas quando subitamente nós olhamos para alguém ou para algo e pronunciamos a palavra princípio “Eu-Tu”, nós passamos a ser com o outro, a sermos unos, e quando voltamos a ser nós já não somos o mesmo, transformámo-nos, por termos sido de modo diferente. Acredito que isso é fundamental para que sejamos capazes de agir.

Acredito que naquele momento o Rodrigo se sentiu a mãe a quem tinham acabado de tirar o filho, lhe doeram as pernas dela que corriam pela rua e foram dele os gritos que ela gritava, e que foi por isso que ele largou tudo e bateu com os punhos no carro da polícia.

Trata-se de conseguir uma escuta empática, em que nós estamos nos pés do outro. Quando ouvimos de modo empático nós, ao contar o que aconteceu, já não contamos apenas o que o outro sentiu, mas o que sentimos ao sermos com o outro. Como dizia Sophia de Mello Breyner na Cantata de Paz: “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.

E nós ignoramos demais. Às vezes tem de ser, eu sei que sim, mas às vezes também é preciso pormo-nos à frente do carro, bater com os punhos no capot e dizer: partia-te as trombas!

O filme português A Fábrica do Nada, realizado por Pedro Pinho está cheio de cenas assim, de crueldades ditas com profissionalismo e compostura por gerentes e directores de recursos humanos (eventualmente também a mando de alguém) e respostas “mal-educadas”, vindas do fundo do ser por parte de quem é visado ou presencia essas crueldades.

Perdeu a razão, dizem. “Quem falar dessa forma perde a razão”. Não é o refinamento das palavras que nos distingue, isso é pouco, é o refinamento da alma, o não olhar para o lado, o não fingir que não se vê ou que não se tem opção.

A liberdade está nos bastidores de todos os nossos actos e às vezes temos de dizer e fazer alguma coisa usando estas ou outras palavras, estes ou outros gestos, mesmo sem saber se vai ter resultado, independentemente do resultado. Fazer, só porque tem de ser feito.

P.S. Às vezes escolhemos não fazer por razões muito válidas, por lealdades e obrigações múltiplas e dói-nos a escolha. Mas que seja uma escolha, que não seja por não ver.

Activista da ética, investiga, escreve e desenvolve iniciativas no sentido de promover a reflexão ética e o pensamento crítico. Procura formas alternativas de promover a ética empresarial.