A Primavera chegou há dias. Depois de um fim-de-semana em que nos mostrou por que razão é o «Primeiro Verão», enfronhou-se em chuva e neve e tem sido o que se vê. Como sempre, é igual a ela própria, tórrida como o estio mais duro ou cheia de ar frio que nos gela nestes dias tão longos. É uma estação complicada para os mais sensíveis e promete tudo para o grande Verão que se aproxima. A vida é rápida e damos por nós já em finais de Março no ano que acabou de chegar. É verdade, é 2024, o Ano Novo que ainda agora celebrámos. Ou que parece novo, já não sabemos bem. Vemos que a música de Vivaldi nos diz tudo sobre as quatro estações e quase dispensamos mais reflexões
POR PEDRO COTRIM

Durante muitos anos, a música que abriu o Boletim Meteorológico foi o concerto Primavera. É uma peça vibrante que capta a essência da estação. Começa com um movimento alegre e animado que evoca imagens de pássaros a chilrear, flores a desabrochar e a sensação geral de renovação e renascimento. É caracterizada por passagens rápidas, trinados e melodias brilhantes em tons maiores, reflectindo a energia e a excitação da estação. Vivaldi concebeu contrastes dinâmicos e imagens vívidas, retratando muito eficazmente o despertar da natureza. O concerto percorre vários motivos musicais, representando diferentes aspectos da estação, incluindo brisas gentis, trovoadas e o florescimento da vida.

Chega agora uma sensação de renovação. Árvores que pareciam quase mortas têm novas folhas, as flores desabrocham numa profusão de cores e o ar enche-se com aromas doces. As aves regressam das suas migrações, enchendo o ar com cantos e construindo ninhos para as crias. Para onde quer que olhe, há uma sensação de atividade e crescimento.

A Primavera traz também uma sensação de limpeza e rejuvenescimento. Os aguaceiros que lavam os restos do Inverno, deixando tudo com um aspeto fresco e novo. É uma altura de abrir janelas, deixar entrar o ar fresco e sacudir as teias de aranha dos últimos meses.

Poucos fenómenos são tão universalmente vividos e profundamente acarinhados como a mudança das estações. Desde a beleza gelada do Inverno até aos tons vibrantes da Primavera, ao abraço abafado do Verão e ao esplendor dourado do Outono, cada estação traz a sua própria mistura única de imagens, sons e sensações, tecendo uma rica tapeçaria de mudança e renovação.

À medida que a Terra orbita o Sol e se inclina sobre o seu eixo, o ritmo das estações desenrola-se com uma precisão graciosa e entranhada na astronomia, marcando a passagem do tempo e dando início a um caleidoscópio de transformações. A cada mudança na dança celeste, a natureza sofre uma metamorfose, deixando para trás os vestígios de uma estação e abraçando a promessa da próxima.

Em geral, a Primavera é uma estação que nos recorda a natureza cíclica da vida e as infinitas possibilidades de crescimento e transformação. É uma altura para celebrar a renovação em todas as suas formas e para abraçar a beleza e o optimismo que a Primavera traz. Contudo, na sociedade da informação, reparamos cada vez menos nela.

Somos frequentemente atraídos por agendas preenchidas, vidas sociais activas, viagens frequentes e objectivos e realizações elaboradas. Acabamos por ter uma vida centrada em tudo isto, mas muito pouco em nós próprios, tanto tanto que até nos cansa ler esta frase. A vida ocupada é-nos promovida pela cultura, filmes, espectáculos, notícias, livros mais vendidos e redes sociais. Em grande parte do mundo moderno, esta «vida ideal» translada-se para dentro de nós.

Muitas vezes, tem-se que quem vive vida uma muito modesta e tranquila é menos bem-sucedido. Talvez seja difícil ver uma vida tranquila e simples de relativa obscuridade como algo apelativo, digno de nota e mesmo intencional. Para uma parte de nós, este tipo de vida é, de facto, um esforço redentor indicativo de imensa disciplina e sabedoria. Se alguém não acompanha o ritmo dos outros, pode estar a ouvir outra música.

Henry David Thoreau morreu jovem, a um mês de completar 45 anos. Dedicou grande parte da sua vida ao valor da simplicidade, autossuficiência, autenticidade e separação das influências e convenções da vida moderna. Viveu plenamente as estações e a renovação natureza. Escreveu sobre estes conceitos e viveu-os. Depois de evitar os caminhos esperados, viveu sozinho numa cabana na floresta.

Levou uma vida simples, tranquila e isolada, concentrando-se apenas no que acreditava ser verdadeiramente necessário e valioso. Trabalhava apenas um dia por semana, reduzia as suas posses materiais ao mínimo, separou-se do mundo social e cultural, mergulhou na natureza e concentrou-se na sua paixão de escrever.

Durante este período, escreveu a sua obra-prima, Walden. Numa passagem deste livro, reflecte sobre o seu tempo e as razões para viver sozinho nos bosques, escrevendo: «Fui para os bosques porque desejava viver deliberadamente, para enfrentar apenas os factos essenciais da vida e ver se não podia aprender o que ela tinha para ensinar e não descobrir, quando viesse a morrer, que não tinha vivido. Eu queria viver profundamente e beber a medula da vida. Todos nós queremos viver uma boa vida e ser bem-sucedidos, mas quantas vezes paramos e avaliamos o que pode ser uma vida boa? Com que frequência consideramos não o seu aspeto exterior, mas a sua sensação interior, o único lugar onde é realmente vivida?»

Lemos estas elucubrações e lembramo-nos de que Henry David Thoreau morreu em 1862. Se imaginasse 2024, o que lhe passaria então pela cabeça?

Há vários outros pensadores com um legado tremendo a propósito da natureza de quão precioso é para nós o seu acompanhamento. Vivemos um recomeço. Gostamos dele e juramos sempre mudanças de vida no dealbar de cada etapa simbólica. Os católicos vivem também a semana mais sagrada do ano litúrgico, culminando no Domingo da Ressurreição. Será sempre uma excelente altura para voltar ao ritmo mais chão e mais ar de tudo o que nos rodeia.

Imagem: © Ray Hennessy/Unsplash.com