É o mais abrangente estudo realizado desde sempre sobre o impacto da civilização moderna na natureza e um sério aviso para os governos e empresas de todo o mundo: está na altura de acabar com os interesses velados que estão a impedir reformas urgentes nos sectores agrícola, energético e mineiro, necessárias para salvar os ecossistemas da Terra. É que a acelerada perda de biodiversidade – um milhão de espécies está em vias de extinção – terá consequências muito graves para todo o planeta, humanos incluídos, é claro
POR HELENA OLIVEIRA
“A saúde dos ecossistemas dos quais nós, e todas as outras espécies, dependemos está a deteriorar-se mais rapidamente do que nunca. Estamos a minar os principais fundamentos das nossas economias, dos nossos meios de subsistência, da segurança alimentar, da saúde e da qualidade de vida a nível global”, Sir Robert Watson
Um milhão de espécies em vias de extinção. Os resultados são mais do que alarmantes e foram divulgados na passada segunda-feira num relatório elaborado por 145 cientistas de 50 países pela Plataforma Intergovernamental de Política de Ciência sobre Biodiversidade e Serviços do Ecossistema (IPBES, na sigla em inglês), e com o contributo de outros 310 autores que, nos últimos três anos estiveram a trabalhar na sua realização. O estudo, com cerca de 1400 páginas, conhecido como Avaliação Global, aborda as alterações sofridas nos ecossistemas do planeta ao longo das últimas cinco décadas, oferecendo uma visão abrangente sobre o relacionamento existente entre o desenvolvimento económico e os seus impactos na natureza, ao mesmo tempo que fornece possíveis cenários para as décadas vindouras.
O Relatório concluiu que cerca de um dos oito milhões de plantas, insectos e espécies animais que se estimam existir no planeta está em sério risco de extinção – muitos deles ao longo das próximas décadas -, com o ritmo actual desta a ser dezenas ou centenas de vezes mais elevado do que ao longo dos últimos 10 milhões de anos. As alterações climáticas causadas pela indústria de queima dos combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás – estão a exacerbar a perda da biodiversidade, sendo urgente que o mundo abrace uma forma “pós-crescimento” da economia se quiser inverter os riscos existenciais colocados pelos efeitos em cascata da poluição, da destruição de habitats e das alterações climáticas. E o mundo não pode salvar o clima sem salvar a biodiversidade e vice-versa, na medida em que os sistemas naturais que mantêm a vida na Terra estão intimamente inter-relacionados.
[quote_center]O Relatório concluiu que cerca de um dos oito milhões de plantas, insectos e espécies animais que se estimam existir no planeta estão em sério risco de extinção, com o ritmo actual desta a ser dezenas ou centenas de vezes mais elevado do que ao longo dos últimos 10 milhões de anos[/quote_center]
A abundância média das espécies nativas na maioria dos habitats terrestres apresentou um declínio de pelo menos 20%, em particular desde 1900. E mais de 40% das espécies anfíbias, cerca de 33% dos corais que formam os recifes e mais de um terço dos mamíferos marinhos estão sob ameaça. Os dados relativos aos insectos são menos claros, mas as estimativas apontam para que 10% estejam igualmente em risco. Indo ainda mais atrás no tempo, o relatório esclarece também que pelo menos 680 espécies de vertebrados seguiram a via da extinção desde o século XVI e que mais de 9% das espécies de mamíferos domesticados utilizados para a alimentação e a agricultura tornaram-se extintos em 2016, com pelo menos mais 1000 espécies adicionais em situação de ameaça.
Para aumentar a relevância política do Relatório, os autores classificaram, pela primeira vez, os cinco principais factores directos com os maiores impactos globais nas alterações na natureza até agora, os quais e em ordem descendente englobam as alterações na utilização dos solos e dos mares, a exploração directa dos organismos, as alterações climáticas, a poluição e a proliferação de espécies invasoras.
Apesar dos progressos para a conservação das espécies e da implementação de políticas na mesma direcção, os responsáveis pelo Relatório asseguram que os objectivos globais para conservar e utilizar de forma sustentável a natureza não poderão ser alcançados caso se mantenham as actuais trajectórias, uma realidade que só terá possibilidade de ser invertida através de mudanças verdadeiramente transformadoras em termos económicos, sociais, políticos e tecnológicos.
[quote_center]O mundo não pode salvar o clima sem salvar a biodiversidade e vice-versa, porque os sistemas naturais que mantêm a vida na Terra estão intimamente inter-relacionados[/quote_center]
Como escreveu Robert Watson, um cientista britânico que preside ao IPBES, num artigo de opinião no The Guardian, “todos assumimos que a natureza iria estar sempre aqui para nós e para as nossas crianças. Contudo, o nosso consumo ilimitado, a nossa dependência míope dos combustíveis fósseis e a nossa utilização insustentável da natureza estão agora a ameaçar seriamente o nosso futuro”. Watson alerta também para o facto de, e pela primeira vez com este mesmo relatório, a biodiversidade se estar a transformar numa questão global tão preocupante quanto as alterações climáticas, na medida em que a natureza está a ser destruída a um ritmo sem precedentes na história da humanidade.
Horas antes do lançamento em Paris, na passada segunda-feira, do mais abrangente esforço científico para documentar a perda global em espiral de plantas e animais no planeta, e citado pela agência Reuters, Watson exortou os governos a cortarem centenas de milhares de milhões de dólares em subsídios anuais para as empresas do sector agrícola, da extracção mineira, das pescas e dos combustíveis fósseis, cujas operações estão a conduzir o planeta para esta trajectória de catástrofe.
[quote_center]A biodiversidade está finalmente a transformar-se numa questão global tão preocupante quanto as alterações climáticas, na medida em que a natureza está a ser destruída a um ritmo sem precedentes na história da humanidade.[/quote_center]
Depois do relatório contabilizar que subsídios globais na ordem dos 345 mil milhões de dólares que foram empregues no sector dos combustíveis fósseis resultaram em cinco biliões de custos totais quando os danos para o mundo natural são levados em linha de conta, o cientista britânico alertou para o facto de “termos mesmo de pensar num sistema económico que possa ser mais sustentável no futuro”. Ou seja, se os governos utilizassem, ao invés, este montante para incentivar, por exemplo, técnicas agrícolas capazes de regenerar os ecossistemas locais, tal iria ajudar não só a recuperar a vida selvagem em preocupante declínio, como ainda a sequestrar as emissões de carbono.
Ainda temos tempo, mas muito pouco
“Para melhor compreender e, mais importante ainda, abordar as principais causas dos prejuízos infligidos à biodiversidade (…), precisamos de perceber a história e a interconexão global de factores complexos de mudança demográficos e económicos, bem como os valores sociais que lhes estão subjacentes”, afirmou também Eduardo S. Brondízio, professor de Antropologia e um dos co-autores do relatório. “Os factores-chave indirectos incluem o aumento populacional e o consumo per capita; a inovação tecnológica que, em alguns casos diminuiu, e noutros aumentou, os danos para a natureza e, principalmente, as questões relacionadas com a governança e a responsabilização”, acrescentou ainda. Para o investigador, existe um padrão emergente de interconexão global, o qual se traduz na extracção e produção de recursos em uma parte do mundo para satisfazer as necessidades de consumidores distantes na sua outra parte.
Contudo e apesar “da diversidade no interior das espécies, entre espécies e dos ecossistemas, bem como outros contributos fundamentais que retiramos da natureza, estar a declinar rapidamente”, ainda temos tempo, ainda que muito limitado, “e os meios para assegurar um futuro sustentável para o planeta e para as pessoas”.
O caminho será tudo menos fácil, em particular porque muitos dos países em desenvolvimento enfrentam uma enorme pressão para explorar os seus recursos naturais como forma de saírem eles mesmos da pobreza. Mas, ao detalhar os benefícios que a natureza pode oferecer às pessoas, e ao tentar quantificar o que é perdido quando a biodiversidade está a cair a pique, os cientistas responsáveis por esta avaliação esperam poder ajudar os governos a lutar por um equilíbrio mais reflectido entre o desenvolvimento económico e a conservação.
[quote_center]O caminho será tudo menos fácil, em particular porque muitos dos países em desenvolvimento enfrentam uma enorme pressão para explorar os seus recursos naturais como forma de saírem eles mesmos da pobreza[/quote_center]
Como tantos especialistas têm vindo a alertar – este não é o primeiro relatório a pintar de negro o cenário dos ecossistemas da Terra, apesar de ser o mais completo – temos nas nossas mãos as tecnologias e as ferramentas necessárias para alterar este panorama, desde que haja verdadeira vontade política para o fazer. O problema, sublinhado também no relatório do IPBES (o qual engloba 130 países), é o facto de nem os governos nem as empresas estarem perto de fazer o suficiente para inverter esta dramática realidade, com o mundo a caminhar a passos largos para o não cumprimento dos objectivos estabelecidos no Acordo de Paris, o mesmo acontecendo com as metas para a biodiversidade acordadas em Aichi, em conjunto com 80% dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável relacionados com a alimentação, água e segurança energética, como também sublinha Robert Watson no seu artigo de Opinião. Um (pequeno) passo em frente foi dado recentemente pelo governo britânico ao assumir e declarar formalmente um estado de emergência ambiental e climática.
O desafio da inversão da trajectória vigente será hercúleo e exigirá alterações radicais, desde “o fim dos subsídios que conduzem à destruição da natureza e ao aquecimento futuro da Terra, à promulgação de leis que encorajem a protecção da natureza, à redução da nossa dependência crescente da energia produzida através dos combustíveis fósseis e do consumo dos recursos naturais e ao repensar da definição de uma vida recompensadora”, escreve ainda o presidente do IPBES. De sublinhar ainda que, em 2015, as estimativas apontavam para que cerca de 100 mil milhões de dólares de apoio financeiro fornecido a nações ricas da OCDE tenham sido utilizados para práticas agrícolas prejudiciais ao ambiente.
O Relatório apresenta igualmente um conjunto alargado de acções para se atingir a sustentabilidade e caminhos para lá chegar que exigem um trabalho conjunto entre os sectores da agricultura, florestas, sistemas marinhos, sistemas de água doce, áreas urbanas, energia, finanças, entre outros, sublinhando a importância da adopção de abordagens de gestão integrada intra-sectorial que levem em consideração os trade-offs existentes entre produção alimentar e energética, infra-estruturas, gestão costeira e conservação da biodiversidade.
Como é que chegámos a este desastre ecológico?
De acordo com o relatório, e desde 1970, as tendências na produção agrícola, nas pescas, na produção de bioenergia e na extracção de matérias-primas aumentaram desmesuradamente como resposta ao crescimento populacional, ao aumento das necessidades de consumo e ao desenvolvimento tecnológico, tudo isto a um preço excessivo, o qual foi desigualmente distribuído no interior e entre países.
O ritmo da expansão agrícola em ecossistemas outrora intactos variou de país para pais, sendo que as maiores perdas ocorreram principalmente nos trópicos, a “casa” que “aloja” os mais elevados níveis de biodiversidade do planeta. Por exemplo, 100 milhões de hectares de floresta tropical foram destruídos entre 1980 e 2000, devido essencialmente à criação de gado na América Latina (cerca de 42 milhões de hectares) e a plantações no sudeste asiático (cerca de 7,5 milhões de hectares, dos quais 80% foram usados para o óleo de palma, utilizado na alimentação, cosmética, produtos de limpeza e combustível), entre outros.
Desde 1970, a população mundial mais do que duplicou (de 3,7 para 7,6 mil milhões de pessoas), aumentando em ritmo desigual nos vários países e regiões, com o produto interno bruto per capita quatro vezes mais elevado – e com os “consumidores cada vez mais distantes” a mudarem o fardo ambiental de consumo e produção entre regiões.
[quote_center]Uma pequena amostra dos resultados divulgados no relatório ajuda a compreender de que forma, nos últimos 50 anos, “pequenos arranhões nos ecossistemas se transformaram em feridas profundas”[/quote_center]
A abundância média de espécies nativas nos maiores habitats terrestres apresentou um declínio de pelo menos 20% desde 1900, com os números das espécies invasoras a crescerem 70% desde 1970 em 21 países com registos detalhados.
As distribuições de quase metade (47%) dos mamíferos terrestres, por exemplo, e de cerca de um quarto de aves ameaçadas podem já ter sido negativamente afectadas pelas alterações climáticas.
O Relatório alerta também para o facto de, na actualidade, os humanos terem ao seu dispor cada vez menos variedades de plantas e animais para produzir comida. O que significa também que o sistema alimentar se está a tornar significativamente menos resiliente contra pragas e doenças. Por outro lado, será cada vez mais difícil no futuro produzir novas culturas e gado para lidar com o calor extremo e as cheias que as alterações climáticas irão originar.
Os ecossistemas em estado de sítio
Apesar de todos sabermos que a natureza nos oferece os alimentos que comemos, a água que bebemos e o ar que respiramos, a catastrófica perda de biodiversidade não parece estar ainda nas agendas globais como uma prioridade. Tal como aconteceu – e ainda acontece – com as alterações climáticas, é mais fácil assobiar para o lado e considerar que os alertas há muito emitidos por cientistas de todo o mundo constituem apenas avisos histéricos aos quais se fará orelhas moucas mais uma vez.
Mas a publicação deste relatório – que se baseia na avaliação de mais de 15 mil materiais de referência científica – poderá contribuir – pelo menos assim se espera – para que o assunto seja levado mais a sério, constituindo a mais “grave acusação” da forma como os humanos têm tratado o planeta em que vivem, apesar de não ser a primeira vez que é chamada a atenção para este desastre que deixou de ser iminente para passar a ser real.
[quote_center]Os fertilizantes que entram nos ecossistemas costeiros produziram mais de 400 “zonas mortas” nos oceanos, o equivalente a uma área superior à do Reino Unido[/quote_center]
Uma pequena amostra dos resultados divulgados no relatório ajuda a compreender de que forma, nos últimos 50 anos, “pequenos arranhões nos ecossistemas se transformaram em feridas profundas”. Por exemplo, ficamos a saber que três quartos do ambiente terrestre e 66% do ambiente marinho foram dramaticamente alterados pelas acções humanas. Ou que um terço das áreas terrestres e 75% da utilização de água limpa estão a ser utilizados em culturas agrícolas e na actividade pecuária. O valor da produção agrícola aumentou 300% desde os anos de 1970, a exploração madeireira cresceu 45% e aproximadamente 60 mil milhões de toneladas de recursos renováveis e não renováveis são extraídos globalmente todos os anos do planeta, um valor que quase duplicou desde 1980. Por causa da degradação dos solos, a produtividade da superfície terrestre global diminuiu em 23% e cerca de 277 mil milhões de dólares derivados das colheitas globais anuais estão em risco devido à perda da polinização, na medida em que 75% dos tipos de colheitas de alimentos globais dependem dos polinizadores. Adicionalmente, entre 100 a 300 milhões de pessoas encontram-se em risco de serem vítimas de cheias e furacões graças à perda de habitats costeiros.
Em 2015, 33% dos recursos marinhos estavam a ser capturados a níveis insustentáveis, 60% ao nível “máximo” sustentável e apenas 7% a níveis inferiores ao que é sustentavelmente “aceite”. Por seu turno, as áreas urbanas mais do que duplicaram desde 1992. A poluição por plástico aumentou dez vezes desde 1980 e entre 300 a 400 milhões de toneladas de metais pesados, solventes, lamas tóxicas e outros resíduos derivados de fábricas industriais são deitados anualmente em águas de todo o mundo. Os fertilizantes que entram nos ecossistemas costeiros produziram mais de 400 “zonas mortas” nos oceanos, com uma dimensão de 245 mil quilómetros quadrados, o equivalente a uma área superior à do Reino Unido.
Os números dramáticos recheiam o Relatório (podem ser acedidos neste link e no final do documento) e dão consistência à urgência para se agir, nomeadamente através de um conjunto de políticas e iniciativas que também constam do relatório.
Os autores do relatório oferecem também um conjunto de medidas passíveis de ser implementadas pelos decisores políticos e que, caso o sejam rapidamente, poderá conferir alguma esperança a este cenário digno de Dante.
Como escrevem, existem acções políticas e iniciativas societais que estão a contribuir para aumentar a sensibilização e consciencialização sobre os impactos do consumo na natureza, a proteger ambientes locais, a promover economias locais sustentáveis e a restaurar áreas degradadas. Ideias, técnicas iniciativas, planos de acção e políticas globais já identificadas existem, mas o tempo começa, mesmo, a escassear.
96% dos europeus estão preocupados com a biodiversidade
A esmagadora maioria dos europeus está preocupada com a perda de biodiversidade e apoia uma acção mais forte da UE para proteger a natureza. Esta é a principal conclusão do mais recente inquérito Eurobarómetro, que entrevistou mais de 27 mil cidadãos europeus, os quais afirmaram que temos a responsabilidade de proteger a natureza e que tal é também essencial para combater as alterações climáticas.
Como refere o comunicado da UE, “os europeus estão cada vez mais preocupados com o estado em que se encontra o mundo natural”, o que revela igualmente e de um modo geral “o aumento da sensibilização sobre o significado da biodiversidade, a sua importância, ameaças e medidas para a proteger”.
Este aumento da sensibilização é demonstrado pelo facto de o termo “biodiversidade” ser reconhecido por mais de 70% dos europeus auscultados e também por estes definirem correctamente algumas das maiores ameaças à sua “saúde”, nomeadamente “a poluição atmosférica, do solo e da água, as catástrofes de origem humana e as alterações climáticas”. O inquérito concluiu ainda que “a agricultura intensiva, a silvicultura intensiva e a sobrepesca são cada vez mais reconhecidas, ainda que não inteiramente, como importantes ameaças à biodiversidade”.
Adicionalmente, “a maioria dos europeus não está disposta a aceitar a degradação ou a destruição da natureza nas áreas protegidas em proveito do desenvolvimento económico”, considerando também que “as acções mais importantes que a UE deve tomar em defesa da biodiversidade consistem em restaurar a natureza e a biodiversidade para compensar os danos causados e informar melhor os cidadãos sobre a sua crucial importância”.
Editora Executiva
Realmente é fundamental defender a natureza, são muitas as medidas, uma delas é cpomeçar gradualmente e enfrentar as soluções, sem as preocupações de ter de ser mais à direita ou à esquerda, ouvir as pessoas nos locais, fazer por criar condições a vover no interior e em qualquer lugar, defender a natalidade e o crescimento das famílias porque é por aí que tudo começa.
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