POR HELENA OLIVEIRA
É a 12ª edição do Relatório sobre Riscos Globais publicada pelo Fórum Económico Mundial (FEM) e uma espécie de mostra da evolução das tendências que começaram subtilmente a surgir ao longo da última década em conjunto com os profundos inter-relacionamentos que as mesmas têm entre si. Antecipando a habitual reunião de líderes que, em Janeiro e em Davos, se realiza todos os anos, o FEM reuniu 750 especialistas de áreas diversas, os quais determinaram a existência de 30 riscos globais, bem como 13 tendências subjacentes aos mesmos. Este relatório extenso serve também para dar o mote para as principais temáticas que estarão em debate na sua reunião anual – este ano intitulada “Responsive and Responsible Leadership” – e numa tentativa quase desesperada de convencer os líderes dos diversos quadrantes da sociedade a comprometerem-se com o desenvolvimento inclusivo e com o crescimento equitativo, tanto a nível nacional como global. “Colaboração” será também a palavra-chave que precisa de reunir consenso, aprovação e, principalmente acção, por parte dos sistemas, países, diferentes áreas do conhecimento e de todos os stakeholders, com vista a um melhor e mais positivo impacto social.
Não sendo possível listar os 30 riscos globalmente identificados, o VER apresenta, em resumo, aqueles que de uma forma mais persistente e crescente, estão a ameaçar o mundo em que vivemos. E acompanhará, como habitualmente, as principais conclusões e estudos que sairão da reunião de líderes, que decorrerá entre 17 e 20 de Janeiro próximo.
No geral, e no seguimento de um ano pautado por resultados eleitorais inesperados, particularmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, o presente relatório do FEM é publicado numa época de incerteza política intensificada, na qual a polarização das sociedades começa a ser central num conjunto cada vez maior de países, traduzida por divisões intergeracionais e culturais que amplificam os riscos associados a uma economia ainda em lento crescimento e a alterações tecnológicas aceleradas.
Como já mencionado e ao longo da última década, o Relatório dos Riscos Globais tem alertado para o potencial de tendências de longo prazo, cada vez mais persistentes, e que incluem a desigualdade e a divisão cada vez mais profunda que se assiste ao nível social e político. Estas tendências foram particularmente visíveis ao longo de 2016, com o crescente descontentamento político a par de uma insatisfação cívica evidente em muitos países de todo o mundo. Para o FEM – e para os observadores em geral – os sinais de alerta e de disrupção mais evidentes encontram-se no seio da sociedade ocidental – mais uma vez traduzidos pela eleição de Donald Trump e pelo voto expresso pelos cidadãos ingleses para abandonar a União Europeia – e que parecem incitar a uma revolta contagiante contra os status quo estabelecido e, até agora, globalmente “aceite”.
Neste sentido, o FEM elegeu, entre os 30 grandes riscos avaliados, cinco grandes “centros de gravidade” fulcrais e que potencialmente afectarão o mundo neste e nos próximos anos.
Em primeiro lugar, a continuidade do crescimento lento, combinado com o elevado endividamento público e com as alterações demográficas está a criar um ambiente propício que favorece as crises financeiras e o aumento das desigualdades. Ao mesmo tempo, a corrupção generalizada, o fenómeno do “curto prazo” e a distribuição desigual dos benefícios do crescimento sugere que o modelo económico capitalista não está a servir os interesses os cidadãos, mas antes e só das elites e a transição para uma ordem mundial crescentemente polarizada está também a pôr em causa a tão necessária cooperação global. Em simultâneo, e seguindo o tema eleito pelo FEM em 2016, a Quarta Revolução industrial – sobre a qual o VER escreveu várias vezes – está a transformar radicalmente as sociedades, as economias e a forma como se conduzem os negócios. E, por último, mas não menos importante, à medida que as pessoas tentam reafirmar as suas identidades, que têm vindo a ser “nubladas”pela globalização, as necessárias tomadas de decisão têm sido crescentemente influenciadas pela emoção em detrimento da razão.
A partir da análise de um dos principais instrumentos utilizados pelo FEM para aferir os principais desafios que afectam o mundo – o seu Inquérito de Percepção dos Riscos Globais (GRPS, na sigla em inglês) – e que reúne perspectivas variadas e multidisciplinares a partir de vários segmentos populacionais, países e sectores e que envolve líderes empresariais, académicos, governamentais e da sociedade civil, foram identificados cinco desafios cruciais que o mundo enfrenta na actualidade.
Ascensão dos nacionalismos e declínio dos sistemas de cooperação global
Na Parte 1 do relatório em causa, os dois primeiros riscos identificados pelos respondentes do GRPS pertencem à categoria económica e estão em linha com o crescimento dos rendimentos e com a disparidade de riqueza, tendo sido eleitos como os desenvolvimentos globais mais determinantes para os próximos 10 anos. O que aponta para a necessidade, urgente, de se fazer “ressuscitar” o crescimento económico. Todavia, e como preconiza o FEM, o sentimento crescente do populismo anti-establishment sugere que já passámos a fase em que este “remédio”, por si só, traria a possibilidade de remediar as fracturas já expostas na sociedade. Mas também é verdade que uma adequada reforma do capitalismo de mercado tem de constar como uma prioridade na agenda internacional.
Com as surpresas eleitorais de 2016 e a ascensão de partidos outrora “à margem” a pressionar as soberanias nacionais e os valores tradicionais da Europa e para além dela, as tendências sociais traduzidas por divisões crescentes e pela intensificação dos sentimentos nacionalistas foram classificadas entre as cinco principais tendências para este ano (e seguintes). Consequentemente, este “estado das coisas” origina um outro desafio: o enfrentar da importância da identidade e do sentido de comunidade. As mudanças aceleradas em áreas como o género, a orientação sexual, a raça, o multiculturalismo, a protecção ambiental e a cooperação internacional levaram a que muitos dos inquiridos – em particular os mais velhos e os que têm menores níveis académicos – se sintam “deixados para trás” nos seus próprios países. E o que acontece é que as divisões culturais daí provenientes estão a pôr à prova a coesão política e social, o que pode (e está) a amplificar muitos outros riscos até agora “adormecidos”.
Para o FEM, e de acordo com os resultados de índice de percepção dos sentimentos dos cidadãos, apesar das políticas anti-establishment tenderem a culpar a globalização pela deterioração das perspectivas de emprego no interior dos vários países, as evidências sugerem que a gestão adequada das mudanças tecnológicas é um desafio ainda mais importante para os mercados laborais. Como o VER tem também vindo a alertar, e apesar de a inovação ter historicamente criado novos tipos de trabalho, ao mesmo tempo que destruía outros tantos, a actual fase de progresso tecnológico não está a obedecer a estes critérios tomados como certos em “revoluções” passadas, como a industrial. E, assegura o FEM, não é uma simples coincidência que os desafios que estamos a testemunhar no que respeita à coesão social e à legitimidade dos fazedores de políticas coincidam com esta fase extremamente disruptiva das alterações tecnológicas.
Um outro desafio identificado é a necessidade de se proteger e fortalecer os nossos sistemas de cooperação global. A verdade é que se começam a multiplicar os exemplos de Estados que procuram desligar-se dos vários mecanismos de cooperação internacional, o que espelha uma mudança que começa a ser mais do que visível e preocupante: o facto de se estar a optar por um “olhar para dentro” em detrimento de uma visão alargada e “interligada” com o exterior. O que para o FEM poderá resultar num desenvolvimento disruptivo com contornos preocupantes. Aliás e em várias áreas, esta perspectiva “umbiguista” é cada vez mais a norma. E basta pensar na crise interminável na Síria e nos fluxos migratórios que criou, para relembrar o quão importante é a cooperação global.
O GRPS identifica ainda outros desafios que, mais do que nunca, só serão resolvidos, ou pelo menos mitigados, através da cooperação global. E um deles é o risco ambiental, já também identificado há mais de uma década, mas que continua a ser encarado como uma problemática “longínqua”, mesmo apesar do relativo sucesso dos acordos internacionais entretanto firmados. Os fenómenos climáticos extremos e o fracasso da mitigação e adaptação às alterações climáticas, em conjunto com a escassez de água, têm vindo a ser consistentemente identificados neste inquérito anual, com especial enfoque na interligação que têm com outros grandes desafios, como os conflitos e as migrações.
Insatisfação popular está a minar a estabilidade social, política e económica
Não surpreende ninguém o facto de, e depois dos “choques” eleitorais do ano passado, serem cada vez mais os que questionam se a crise que estalou no interior dos partidos políticos “normais” nas democracias ocidentais representa, em simultâneo, uma crise mais profunda da própria democracia. E este é o primeiro dos “três grandes riscos” identificados na Parte 2 do relatório, que define três razões em particular para que este fenómeno esteja a ressurgir: mais uma vez, os impactos das alterações aceleradas na economia e na tecnologia, a par do aprofundamento da polarização social e cultural e da emergência do debate político “pós-verdade”. Este último em particular é, sem dúvida, um dos debates mais acesos da actualidade. O desafiar do processo político confere ainda maior importância a questões que não sai, de todo, novas: como tornar o crescimento económico mais inclusivo – pergunta há muito reformulada e que continua sem respostas na prática – e como reconciliar o crescimento da identidade nacionalista com a diversidade que caracteriza as sociedades no geral.
O segundo risco em foco prende-se com o funcionamento da sociedade e da política, e analisa de que forma é que as organizações da sociedade civil, em conjunto com activistas individuais, estão a viver, e de forma crescente, o ressurgimento de repressões governamentais no espaço cívico, e tão díspares quanto as restrições ao financiamento estrangeiro, a vigilância das actividades digitais e até a violência física. E se, alegadamente, essas medidas têm como objectivo proteger os cidadãos de possíveis ameaças à sua segurança, os académicos, em conjunto com as entidades filantrópicas e humanitárias, têm vindo a registar e a sentir os seus nefastos efeitos. E o problema é que estas questões têm um enorme potencial para minar ainda mais a estabilidade social, política e económica.
Uma outra temática subjacente ao aumento da insatisfação com o status quo económico e político é o facto de os sistemas de protecção sociais estarem a atingir um ponto de ruptura. Assim, o terceiro risco identificado tem como enfoque a análise de como o subfinanciamento dos sistemas estatais estão a coincidir com o declínio dos regimes de protecção social outrora suportados pelos empregadores. E este fenómeno está a tomar forma ao mesmo tempo que as alterações tecnológicas estão a “matar” os empregos estáveis e de longo prazo, substituindo-os pelo crescente auto-emprego próprio da “economia gig”. Em concreto, esta parte do Relatório oferece algumas sugestões sobre algumas das inovações que serão necessárias para preencher os “buracos” que estão a emergir nos nossos sistemas de protecção social, à medida que os indivíduos começam a carregar nos seus próprios ombros a responsabilidade e os custos associados a riscos económicos e sociais de que são exemplo o desemprego, a exclusão, a protecção na doença, na incapacidade e na velhice.
Governança não acompanha progresso tecnológico
Por último, o relatório explora ainda as relações existentes entre os riscos globais e as tecnologias emergentes da Quarta Revolução Industrial. Alertando que estamos perante um desafio premente de governança, face à urgência de se construir regras, normas, standards, incentivos, instituições e outros mecanismos que ajudem a moldar o desenvolvimento e a implementação de todas estas novas tecnologias, o FEM reconhece, contudo, que gerir estas tecnologias de rápido desenvolvimento é um dos trabalhos mais complexos que os governos enfrentam. E isto porque se a regulamentação for rápida e pesada poderá travar o progresso, ao mesmo tempo que a sua ausência irá exacerbar os riscos a ele subjacentes, bem como criar uma incerteza desnecessária para potenciais investidores e inovadores.
Actualmente, refere também o Relatório, a governança das tecnologias emergentes parece uma manta de retalhos: se algumas delas estão a sofrer de regulamentações “pesadas”, outras há que não obedecem a nenhum tipo de regras, simplesmente porque não se encaixam em nenhum organismo regulador. Os respondentes do GRPS identificaram ainda duas tecnologias emergentes como as que mais urgentemente precisam de um sistema de regulação adequado. Por um lado, as biotecnologias, as quais tendem já a sofrer de “excesso de regulamentação”, em conjunto com a inteligência artificial e a robótica, que não estão sujeitas a nenhum controlo significativo.
O Relatório do FEM dedica ainda um capítulo exclusivo aos riscos associados com a inteligência artificial, o qual considera a probabilidade de, um dia, os poderes de decisão poderem passar dos humanos para os programas de IA, bem como o debate sobre se e como nos devemos preparar para o possível desenvolvimento de máquinas que sejam mais inteligentes que os humanos.
Na sua conclusão, o Relatório analisa também os riscos associados à forma como a tecnologia está a reformular as infra-estruturas físicas. A verdade é que a gigantesca interdependência entre as redes de infra-estruturas está a aumentar o âmbito das falhas sistémicas – seja ao nível dos ciberataques, das falhas nos softwares, dos desastres naturais, entre outros – e a afectar a sociedade mediante formas jamais imaginadas.
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Editora Executiva