Os desafios económicos e sociais que vivemos exigem respostas sólidas e inclusivas. A implementação de um RBI a nível europeu seria uma forma de reforçar os Estados sociais europeus, equipando-os para os desafios futuros, e reforçando a sua resposta a algumas das necessidades mais prementes que muitos cidadãos europeus enfrentam. E é por isso que foi lançada, em Setembro último, uma iniciativa de cidadania europeia que visa introduzir o Rendimento Básico Incondicional (RBI) em toda a UE
POR Associação Rendimento Básico Incondicional Portugal
No passado dia 25 de setembro foi lançada a Iniciativa de Cidadania Europeia Introduzir o Rendimento Básico Incondicional (RBI) em toda a UE. A iniciativa, que decorrerá durante um ano em todos os Estados-Membros da União Europeia (UE), visa recolher pelo menos um milhão de assinaturas tendo em vista solicitar à Comissão Europeia que apresente uma proposta no sentido da introdução, em toda a UE, de um Rendimento Básico Incondicional.
A Iniciativa de Cidadania Europeia é um mecanismo que reforça a participação dos cidadãos europeus através da formulação e apresentação de propostas, e da recolha de assinaturas subsequente. Trata-se de um mecanismo de democracia participativa, introduzido pelo Tratado de Lisboa, que visa contribuir para o aprofundamento da democracia no contexto da União Europeia, tentando reforçar a sua legitimidade junto dos cidadãos europeus. Trata-se, por conseguinte, de um mecanismo particularmente importante tendo em conta a forma como, na sequência da crise das dívidas soberanas, foi posta a nu a opacidade de algumas instituições europeias, que se viram acusadas, precisamente, de mais não serem que o palco de um conflito de poderes muito pouco democrático ou respeitador da vontade popular. Sendo assim, e para quem ainda acalente esperança que a UE possa fazer sentido enquanto projeto democrático, torna-se importante que iniciativas deste género possam funcionar.
A tentativa de introduzir um RBI por esta via acontece pela segunda vez: em 2013/2014 outra Iniciativa de Cidadania Europeia visava explorar a implementação de um Rendimento Básico Incondicional enquanto “caminho em direção a condições emancipatórias de bem-estar na UE”. Na altura, a iniciativa contou com o apoio de cerca de 285.000 cidadãos, não tendo por isso sido bem-sucedida.
Algumas das situações de vulnerabilidade de muitas pessoas agudizaram-se nos últimos anos, e as inovações tecnológicas e alterações climáticas trouxeram novos problemas, hoje ainda mais presentes. Acresce a isto a pandemia, e a consequente crise de saúde pública que vivemos atualmente, e que expôs muitas das desigualdades existentes
Para além da taxa de sucesso deste tipo de iniciativa ser infelizmente significativamente baixa (das 75 iniciativas europeias de cidadania registadas até hoje, apenas cinco chegaram ao objetivo), o movimento em prol do RBI é hoje bastante diferente do que era há sete anos. Algumas das situações de vulnerabilidade de muitas pessoas agudizaram-se nos últimos anos, e as inovações tecnológicas e alterações climáticas trouxeram novos problemas, hoje ainda mais presentes. Acresce a isto a pandemia, e a consequente crise de saúde pública que vivemos atualmente, e que expôs muitas das desigualdades existentes. Importa por isso discutir qual a importância do RBI e alguns dos seus principais benefícios, apresentando ainda algumas das razões que explicam o momento atual de grande mobilização a favor da implementação de um RBI.
Relembremos que o RBI é uma prestação monetária individual regular¸ atribuída a todos os membros de uma determinada comunidade política (cidade, país ou região), sendo por isso universal. O RBI a ser atribuído deve ser suficiente para cobrir as principais necessidades básicas de um individuo, sendo por isso pelo menos superior ao limiar da pobreza (equivalente, na UE, a 60% dos rendimentos medianos do país em questão) havendo até quem defenda um RBI “tão alto quanto possível”, que possa permitir uma vida digna. Tem ainda como principal característica a sua natureza incondicional, ou seja, a sua atribuição é livre de obrigações, pelo que qualquer pessoa receberá o RBI independentemente de estar a trabalhar ou não, ou do seu nível de rendimento.
Embora o RBI possa soar como uma medida radical – para alguns até utópica – não é uma ideia nova. As suas raízes históricas recuam ao século XVI, por exemplo no pensamento de Thomas Moore (1478-1535). Já no século XX figuras influentes como Martin Luther King defenderam publicamente a ideia de um RBI. O debate intensificou-se, e culminou até com a implementação nos EUA e no Canadá de algumas experiências de larga escala (as chamadas experiências do “negative-income tax” – isto é, o imposto negativo) cujos efeitos se assemelham em alguns aspetos aos do RBI.
Com o efetivo aumento da precarização dos vínculos laborais, uma prestação universal e incondicional oferece um modelo de proteção social que confere segurança económica a todos
Os principais argumentos para a implementação de um RBI são relativamente conhecidos, mas importa enumerá-los mais uma vez. Antes de mais, tem de se referir o seu papel no combate à pobreza e desigualdade. Enquanto prestação universal e incondicional, é um modelo de proteção social inclusivo e abrangente, que serve como “rede de segurança” ampla, que não implica o recurso a qualquer máquina burocrática e administrativa, e que não desaparece se as condições de vida se alterarem.
Esta é também a razão pela qual o RBI pode ter um papel relevante na reformulação dos modelos de proteção social existentes. Com o efetivo aumento da precarização dos vínculos laborais, uma prestação universal e incondicional oferece um modelo de proteção social que confere segurança económica a todos. Em particular, surge ainda como alternativa aos chamados “modelos de ativação” – onde para ser elegível a um determinado benefício, a pessoa tem de cumprir determinadas regras, fazendo prova das mesmas, seja através da comprovação da procura de trabalho ou da realização de formações.
Num cenário de desemprego de larga escala, e de necessidade de reconversão de uma grande percentagem de trabalhadores, um RBI pode ser um mecanismo essencial para auxiliar o processo de reconversão, garantindo um nível de proteção robusto a todos os que possam ser afetados
Muitos destes mecanismos têm-se revelado insuficientes na promoção da inclusão social pelo trabalho. Para além disso, têm exacerbado a estigmatização dos beneficiários, popularizando caracterizações imprecisas e erróneas: os “preguiçosos” ou os “ociosos”, os “excluídos”. Para além disso, talvez ainda mais preocupante, é o facto de estas medidas provarem ser ineficazes na prestação de ajuda a quem necessita dela: a título de exemplo, dados de 2009 indicavam que em Portugal entre 30% e 25% das pessoas elegíveis ao Rendimento Social de Inserção não beneficiam do mesmo. (Portugal – Regimes de Rendimento Mínimo, EU, 2009). Já em 2019, a Comissão Europeia mostrava-se preocupada com o valor bastante baixo do Rendimento Social de Inserção, face ao que acontece noutros países europeus, uma vez que o seu valor corresponde apenas a 40% do limiar de pobreza nacional. E, como se tal não bastasse, muitos cidadãos portugueses, ainda que não estritamente em situação de pobreza, encontram-se ainda assim muito longe de auferir um rendimento adequado para poder ter acesso à tal vida digna que se pretende.
Para além dos argumentos relacionados com a pobreza, desigualdade e proteção social, o RBI pode ainda ter um papel relevante em algumas das transformações que vemos acontecer atualmente. O advento da chamada 4ª revolução industrial, e consequente desvalorização do fator trabalho, em detrimento de novas tecnologias, tem como potencial consequência o aumento do chamado “desemprego tecnológico”.
Num cenário de desemprego de larga escala, e de necessidade de reconversão de uma grande percentagem de trabalhadores, um RBI pode ser um mecanismo essencial para auxiliar o processo de reconversão, garantindo um nível de proteção robusto a todos os que possam ser afetados. Também a necessidade de uma transição ecológica que seja socialmente justa pode justificar a implementação de um RBI, sobretudo se considerarmos a necessidade de garantir que o peso económico da transição não fique a cargo dos segmentos mais vulneráveis da população.
Existe ainda o argumento ético segundo o qual a proteção social básica deve ser um direito inalienável, e que a sua realização deve passar por dar às pessoas os meios materiais para poderem fazer mais livremente as suas escolhas de vida, emancipando-as das condições de necessidade e dificuldade em que possam viver
Um RBI promete ainda ser um mecanismo de desmercadorização do trabalho: ao desvincular parte do nosso rendimento do trabalho, um RBI permite que a nossa sobrevivência não advenha apenas do trabalho que realizamos diariamente. Concede-nos por isso mais liberdade para trocar de trabalho, ou para exigir melhores condições no trabalho (salariais ou outras). É por isso expectável que o RBI possa aumentar o poder negocial dos trabalhadores.
Existe ainda o argumento ético segundo o qual a proteção social básica deve ser um direito inalienável, e que a sua realização deve passar por dar às pessoas os meios materiais para poderem fazer mais livremente as suas escolhas de vida, emancipando-as das condições de necessidade e dificuldade em que possam viver.
Todas estas razões e muitas mais têm levado ao aumento recente da mobilização em torno do RBI um pouco por todo o mundo. Prova disso é a atenção que o RBI tem recebido de fóruns mundiais como o Fórum Económico Mundial, ou de instituições como o Banco Mundial, que recentemente publicou um relatório sobre os principais resultados das experiências RBI já realizadas. Além disso, tem vindo a aumentar o interesse na realização de experiências piloto de RBI em vários locais do globo: desde a Finlândia e Holanda, onde se procurou estudar o papel do RBI na ativação para o trabalho, a experiência em Barcelona, onde se procurou perceber o papel do RBI no combate à pobreza, ou ainda uma das experiências mais longas, no Quénia, onde se estuda o papel que uma prestação como o RBI pode ter numa das regiões mais pobres do mundo. Existem ainda experiências que procuram perceber o impacto do RBI como mecanismo de emancipação e maior liberdade: é o caso da experiência em Berlim, na Alemanha, ou o que se passa na cidade de Stockton, na Califórnia, e em muitas outras cidades graças ao movimento “mayors for guaranteed income”. Olhar para o mapa interativo do laboratório rendimento básico da Universidade Stanford permite-nos conhecer mais a fundo algumas destas experiências, e perceber o momento atual de forte mobilização e curiosidade sobre o impacto do RBI.
Um RBI seria um modelo mais inclusivo de proteção social, garantindo que, na eventualidade de uma quebra repentina de rendimentos, causada por uma crise generalizada como a que vivemos, ninguém é deixado sem apoio e sem capacidade de garantir as suas necessidades básicas
Também em Portugal se sente um aumento do interesse sobre o tema, para o qual em muito contribuiu a realização em 2017 do 17º Congresso da Basic Income Earth Network (BIEN) em Lisboa. No que diz respeito aos partidos políticos, o PAN apoia há vários anos a possibilidade de uma discussão alargada sobre o RBI, enquanto o LIVRE estabeleceu o RBI como medida a implementar no seu programa para as eleições legislativas em 2019. O LIVRE foi ainda o autor de uma petição por um Rendimento Básico Incondicional de Emergência, como resposta à pandemia de COVID-19. Também em 2018, Pedro Duarte e Carlos Moedas entregaram uma moção setorial no Congresso do PSD, equacionando a possibilidade de implementar um rendimento básico universal. Mais recentemente, a deputada não inscrita Cristina Rodrigues apresentou à Assembleia da República um projeto de resolução que recomenda ao Governo a criação de um grupo de trabalho com vista à implementação de um projeto piloto de Rendimento Básico Incondicional.
O movimento atual de forte apoio à possibilidade de implementação de um RBI em vários países do mundo surge ainda reforçado com a pandemia que vivemos. Desde Março, em Portugal (como um pouco por todo o mundo), aumentaram as situações de desemprego e pobreza com, por exemplo, cada vez mais pessoas a necessitar de apoio para cobrir as suas despesas com alimentação ou habitação. O facto da pandemia afetar mais os que vivem em situação de vulnerabilidade contribuiu para exacerbar os efeitos devastadores na vida de muitas famílias. Acresce a isto a insuficiente cobertura dos mecanismos de proteção social existentes: para muitas pessoas com vínculos laborais precários, nos setores da restauração, cultura ou outros, a pandemia trouxe a quebra total ou parcial de rendimentos. Em muitos destes casos, os benefícios sociais existentes, e que entretanto estão também a ser criados com a emergência da pandemia, podem não ser suficientes. Existem ainda aqueles que não conseguem cumprir os critérios de “elegibilidade” para os benefícios existentes, ficando por isso com muito poucas respostas para cobrir as suas necessidades. Um RBI seria um modelo mais inclusivo de proteção social, garantindo que, na eventualidade de uma quebra repentina de rendimentos, causada por uma crise generalizada como a que vivemos, ninguém é deixado sem apoio e sem capacidade de garantir as suas necessidades básicas.
Por isso, e se for bem-sucedida, esta iniciativa de cidadania europeia seria, na verdade, um resultado concreto (e em benefício de todos os cidadãos) da democracia participativa europeia e, simultaneamente, um avanço significativo no modelo de proteção social europeu
Por tudo isto, vemos hoje mais do que nunca a necessidade de implementação de um Rendimento Básico Incondicional. Caso tenha sucesso, a Iniciativa de Cidadania Europeia Introduzir o Rendimento Básico Incondicional (RBI) em toda a EU é um importante primeiro passo, uma vez que a Comissão será oficialmente convidada a apresentar uma proposta legislativa no sentido de implementar o RBI, e a proposta será considerada no âmbito da Comissão e do Parlamento Europeu. Para que isso suceda, é então necessário recolher, como referido acima, pelo menos um milhão de assinaturas a nível da UE e conseguir que em pelo menos sete Estados-Membros o número de apoiantes supere um limiar mínimo, que corresponde ao número de deputados ao Parlamento Europeu eleitos nesses Estados-Membros, multiplicado pelo número total de deputados do Parlamento. Assim, por exemplo, para que a iniciativa tenha sucesso em Portugal, será necessário obter pelo menos 14805 assinaturas.
Assinar a Iniciativa é por isso mais uma forma de expressar a importância e a necessidade de um debate alargado e profundo sobre o RBI. Na nossa opinião, os desafios económicos e sociais que vivemos exigem respostas sólidas e inclusivas. A implementação de um RBI a nível Europeu seria uma forma de reforçar os Estados sociais europeus, equipando-os para os desafios futuros, e reforçando a sua resposta a algumas das necessidades mais prementes que muitos cidadãos europeus enfrentam. Por isso, e se for bem-sucedida, esta iniciativa de cidadania europeia seria, na verdade, um resultado concreto (e em benefício de todos os cidadãos) da democracia participativa europeia e, simultaneamente, um avanço significativo no modelo de proteção social europeu, providenciando uma maior harmonização e coesão entre os Estados sociais europeus. Por estes motivos, apelamos a todas e a todos os que se revejam nesta visão que apoiem, com a sua assinatura, a iniciativa para Introduzir o Rendimento Básico Incondicional (RBI) em toda a UE.
NOTA: Artigo escrito em co-autoria por Ana Catarina Neves, Gonçalo Marcelo, Jorge Pinto e Roberto Merrill
A Associação Rendimento Básico Incondicional Portugal foi criada em 2017 e tem como objetivo a divulgação e promoção do debate público sobre a instituição de um rendimento básico incondicional em Portugal. É a associação responsável pela gestão e divulgação da Iniciativa de Cidadania Europeia por um Rendimento Básico Incondicional. Para saber mais: http://rendimentobasico.pt/