POR MÁRIA POMBO
Este não é o primeiro documentário sobre alterações climáticas, e certamente não será o último, já que juntar personalidades e histórias de vida a um tema que, para muitos, não passa de uma brincadeira de cientistas ou até de uma fraude, parece funcionar – e ainda bem.
Repleto de drama, tragédia, questões às quais é impossível fugir e histórias da vida real, em conjunto com a participação de alguns dos principais líderes mundiais, Before the Flood – que foi produzido pela National Geographic e reproduzido na RTP nos passados dias 30 e 31 de Outubro, estando disponível gratuitamente no Youtube, com legendas em diversas línguas – é o mais recente documentário sobre alterações climáticas e tem todos ingredientes para cativar o público, ou seja, todos nós, cidadãos. O grave de tudo isto é que, por exemplo, o termo “histórias de vida” pode ser aplicado a qualquer vida, incluindo a nossa, e nem sempre no bom sentido – já que as histórias que se contam em documentários sobre este tema são normalmente sobre vidas devastadas, ora pelas cheias e chuvas torrenciais, ora pelas secas extremas, ora ainda, e consequentemente, pela fome e pobreza provocadas por ambas as situações.
Neste documentário imperdível, Leonardo DiCaprio larga as personagens pelas quais é (re)conhecido em Hollywood, despe-se do seu papel de actor e assume-se como activista ambiental, investigador, entrevistador e narrador, também numa espécie de autobiografia na qual revela um enorme fascínio por espécies em vias de extinção e o seu interesse antigo por diversas causas de cariz humanitário – motivo pelo qual foi, aliás, eleito Mensageiro da Paz das Nações Unidas em 2014.
Ao longo de dois anos, DiCaprio e Fisher Stevens (convidado pelo “melhor actor” de 2016 para assumir a direcção e realização deste documentário) percorreram a Europa, Ásia, África, Norte e Sul da América, Austrália e também o Árctico, com o objectivo de revelarem as causas e as consequências das alterações climáticas, alertando para a necessidade de se procurar e implementar, de uma vez por todas e a nível mundial, alternativas ao uso de combustíveis fósseis.
[quote_center]“Foram as acções contra o ambiente que expulsaram o Homem do Paraíso” – Leonardo DiCaprio[/quote_center]
Consciente de que “estamos a ficar sem tempo”, DiCaprio preocupou-se, não em assustar as pessoas ou mostrar-lhes estatísticas já conhecidas, mas antes em apresentar soluções e acções que ainda podem ser desenvolvidas, tentando travar o aquecimento global e a destruição do planeta.
Recuando às suas primeiras memórias visuais, o actor de Hollyood recorda, no documentário, a tela que tinha em cima do berço, da autoria de Hieronymus Bosch, que a criou por volta do ano 1500. Denominada O Jardim das Delícias Terrenas, a imagem descreve a História do mundo, desde a sua criação até ao seu fim, em três painéis distintos: o primeiro é uma paisagem paradisíaca, com Adão e Eva, animais diversos e motivos religiosos; no segundo momento, começam a surgir criaturas estranhas, doentes e a morrer; o terceiro painel é o da destruição total. E DiCaprio não tem dúvidas: “foram as acções contra o ambiente que expulsaram o Homem do Paraíso”.
Encontrar gelo é “uma aventura para cada vez mais pessoas”
Demonstrar os efeitos da acção humana em apenas uma hora e meia de filme, e numa linguagem acessível e atractiva para o grande público, foi um dos maiores desafios que Stevens e DiCaprio enfrentaram ao longo das filmagens, tendo sido difícil – mas bem conseguida – a escolha dos cenários mais inacreditáveis e das situações mais urgentes, principalmente porque entre estes encontram-se eventos extremos, como paisagens de seca total, corais completamente sem vida, glaciares destruídos e cheias sem fim. Complementarmente, entrevistar cientistas, investigadores e alguns dos principais líderes mundiais – como Ban Ki-Moon, Barack Obama e o Papa Francisco – escolhendo as suas citações mais relevantes e dando importância aos detalhes mais marcantes constituiu outro grande desafio deste documentário que só em dois dias ultrapassou os 200 milhões de espectadores.
A floresta de Sumatra – situada na Indonésia e que está a ser completamente destruída pelos produtores de óleo de palma (utilizado para a produção de cosméticos e para fins alimentares, por algumas das maiores empresas a nível mundial), libertando uma enorme quantidade de dióxido de carbono -, as Grandes Areias Betuminosas – localizadas a nordeste da província de Alberta, no Canadá, e de onde são extraídos diariamente 350 mil barris de petróleo bruto sintético –, e algumas ilhas do Pacífico – que, devido ao aumento do nível do mar, correm o risco de desaparecer –, são alguns dos locais que surgem no filme.
A Gronelândia, no Árctico, é uma outra paisagem que DiCaprio e Stevens visitaram e cujo gelo tem vindo a derreter a uma velocidade sem precedentes, destruindo a vida daquela região e pondo em risco a manutenção de todo o planeta. As placas de gelo, azuis, espessas e que outrora eram inquebráveis, estão a dar lugar a películas finas o que, em alguns locais, torna já possível a sua travessia por barco. E, se as temperaturas se mantiverem elevadas, esta região irá desaparecer nos próximos anos, tal como as espécies que nela habitam.
[quote_center]“Garantir a toda a população indiana o acesso à energia é um desafio tão grande como o das alterações climáticas” – Sunita Narain[/quote_center]
Um outro momento interessante do documentário é a filmagem de uma parte do filme The Revenant – que fala precisamente sobre a luta do Homem contra a natureza e onde, como é difícil esquecer, DiCaprio desempenhou o espectacular papel que lhe deu o Óscar – e no qual Iñárritu explicou a dificuldade que teve em encontrar gelo num local onde antes existia em abundância, tendo sido obrigado a ir, em conjunto com cerca de 200 pessoas, para o “outro lado do mundo” para encontrar neve – uma realidade que descreve como “uma aventura para cada vez mais pessoas”, principalmente para as próximas gerações que terão de percorrer muitos quilómetros para a encontrarem.
Para aqueles que acreditam que os problemas ambientais não são reais, os produtores do documentário aconselham uma visita à China (que é o maior emissor a nível mundial), para verem como os próprios viram – e apresentam na fita – as consequências, para a população, deste flagelo. Muitos chineses são, hoje em dia, obrigados a utilizar máscaras na rua, tal é o nível de poluição atmosférica, motivo pelo qual querem sentir-se parte da solução e ter um papel activo na procura de meios mais sustentáveis de utilização de energia.
Para contornar esta situação e melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes, a China concordou em tomar medidas de preservação ambiental, dando prioridade à utilização de energia solar e eólica. A segunda boa notícia é que, como afirma DiCaprio, esta transição “está a ser feita muito mais depressa do que se antecipava”. E para Alvin Lin, responsável pelas políticas de energia e clima do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais, não existem dúvidas: “se a China consegue fazer isto, o resto do mundo também conseguirá”.
Índia ou um confronto difícil com uma dura realidade
Contudo, foi na visita à Índia – que é o terceiro maior emissor a nível mundial, mas enfrenta graves rupturas energéticas e apagões constantes – que DiCaprio se confrontou com uma realidade dura e, porventura, inesperada. Se é verdade que os países desenvolvidos estão a conseguir, com um maior ou menor investimento, e em maior ou menor escala, encontrar meios para fazer a transição para energias mais sustentáveis, como será a realidade das economias em desenvolvimento e cuja população continua em crescimento acelerado, mas que ainda vive maioritariamente sem acesso a saneamento básico e energia (seja ela qual for)? Conseguirão estas nações fazer a transição?
Para Sunita Narain, directora geral do Centro para a Ciência e Ambiente – uma organização sem fins lucrativos e com preocupações ambientais, sediada em Deli – “garantir a toda a população indiana o acesso à energia é um desafio tão grande como o das alterações climáticas”, principalmente porque existem ainda 300 milhões de pessoas (o equivalente à totalidade de cidadãos que residem nos Estados Unidos e a 30% das famílias indianas) que vivem sem electricidade, neste país, porque a mesma não é acessível. Apesar de esta gigantesca nação ter vastas reservas de carvão – onde são, aliás, explorados muitos trabalhadores – existem cerca de 700 milhões de famílias que ainda cozinham a biomassa.
[quote_center]O aquecimento global “é uma questão de segurança pública, e não apenas uma questão ambiental” – Barack Obama[/quote_center]
Para a activista, a questão é simples: os norte-americanos “têm que praticar aquilo que pregam”, e “se fosse fácil, todos os habitantes dos Estados Unidos já teriam adoptado a energia solar”. Contudo, a realidade demonstra que “a electricidade consumida por um americano, em casa, é equivalente à que consomem 1.5 franceses, 2.2 japoneses, dez chineses, 34 indianos e 61 nigerianos”. De acordo com Sunita Narain, “se os norte-americanos estivessem a mudar, serviriam de exemplo para qualquer indiano”, sublinhando que “o que é triste é que isso não está a acontecer”.
Confrontado com esta dura realidade, e na qualidade de norte-americano, DiCaprio concorda com as afirmações da indiana, e assume que é muito difícil convencer os seus compatriotas a mudar o estilo de vida, afirmando até que “isso provavelmente não vai acontecer”. A solução, para o actor, é “tornar as energias renováveis cada vez mais baratas à medida que investimos nelas”.
A tristeza de Sunita prende-se com o facto de serem os pobres, nomeadamente da Índia, de África e do Bangladesh, na Ásia, aqueles que actualmente mais sofrem com as principais consequências dos “primeiros sinais das alterações climáticas”, vendo destruídas, pelas cheias e chuvas torrenciais, as plantações que nos meses seguintes iriam alimentar as suas famílias – motivo pelo qual, como afirma, estas “não são um produto da nossa imaginação”.
Após esta difícil visita, DiCaprio assume que “todos beneficiámos dos combustíveis fósseis” e que, por ser norte-americano, a sua pegada “deve ser maior que a da maioria das pessoas”, confrontando-se com a questão (que deve, aliás, ser feita por cada um de nós): o que podemos fazer? Vivendo numa nação que tem, desde há 100 anos, o estilo de vida que querem ter os mais de mil milhões de pessoas que não têm ainda acesso a electricidade, o actor sublinha que “se queremos resolver este problema, todos temos a responsabilidade de dar o exemplo”, ajudando assim “o mundo desenvolvido a fazer a transição, antes que seja tarde”.
A urgência na voz de Francisco
Em Washington, e para Barack Obama, o aquecimento global “é uma questão de segurança pública, e não apenas uma questão ambiental”, motivo pelo qual é urgente “agir agora”. Nesta sequência, o Acordo de Paris, assinado em Dezembro do ano passado e que entrou em vigor no início do presente mês, foi histórico “não porque nos levará até onde devemos estar, mas porque, pela primeira vez, ao obrigar todos os países a atingir metas verificáveis, cria a arquitectura que permite enfrentar este problema de uma forma mais séria”, conclui o ainda líder dos Estados Unidos.
Demonstrando a sua preocupação, também o Papa Francisco tem uma palavra a dizer sobre o problema das alterações climáticas, motivo pelo qual lançou a Encíclica Laudato Si, sobre o “cuidado da casa comum” e inteiramente dedicada ao ambiente. Este documento inédito surge em forma de apelo a uma acção imediata para travar o aquecimento global e também como um pedido de ajuda aos pobres. Para o líder da Igreja Católica, a Terra “é a nossa casa comum, e está a ser destruída, o que prejudica toda a gente”. Francisco explica que “a esperança convida-nos a reconhecer que há sempre uma saída, que podemos sempre mudar o rumo e fazer algo para resolver os problemas”; contudo, não consegue fugir ao facto de começarem a notar-se “problemas de ruptura”.
E DiCaprio não consegue ser indiferente às suas palavras nem aos seus gestos, referindo que “havia urgência na sua voz”, e salientando que o Santo Padre lhe confidenciou que a conferência de Paris “foi importante mas não suficiente”, que é necessário “continuar a falar sobre este tema, o mais alto possível” e que é crucial “agir imediatamente”. “Mas mais do que tudo, disse-me para rezar pela raça humana”, sublinha o actor em tom pessimista e pensativo.
Tanto ou mais que as declarações dos intervenientes – e que merecem, sem dúvida, ser ouvidas – o documentário primou pela crueza e a veracidade das imagens. Estas sim, não permitem pensar que as alterações climáticas são fruto da imaginação de alguns ou uma fraude defendida por outros.
Os grandes planos, por exemplo de Sumatra, demonstram que a acção humana tem destruído hectares e hectares de uma floresta que outrora já foi plena de vida e que hoje é apenas o reflexo da destruição. Os corais da Bahamas, nas Caraíbas, que já abrigaram variadas espécies marinhas e que hoje são o sinal de que a morte já chegou a alguns dos locais mais bonitos do planeta. As famílias que, na Índia, abriram a porta das suas casas e deixaram filmar a pobreza em que vivem e da qual não conseguem fugir. As ruas de Pequim que, de tão poluídas que estão, mal permitem ver o que acontece a poucos metros de distância. E as imagens de satélite, tiradas à noite, as quais permitem perceber que a atmosfera, actualmente, não é mais que uma “película incrivelmente frágil”, bem à semelhança de “uma fina pele de cebola à volta da Terra”.
Todos estes exemplos merecem reflexão e permitem que cada um de nós mude a ideia que tem acerca do planeta, alterando hábitos que permitam diminuir ao máximo a nossa pegada ambiental. Cada luz será diferente, no futuro. Virá de outras fontes de energia, construídas de uma forma diferente da actual. Todos os carros também terão que ser diferentes e todas as casas terão de ser alimentadas por fontes cada vez mais sustentáveis. Ou pelo menos assim o esperamos.
O documentário termina onde começa: no quadro que Hieronymus Bosch pintou por volta do ano 1500. E o protagonista desta história não tem dúvidas: estamos actualmente no segundo painel, denominado “before the flood” que, em português, significa “antes do dilúvio”. Contudo, algo mudou. Mudou a consciência de Leonardo DiCaprio, de Fisher Stevens e – esperemos – de cada uma das pessoas que, por este mundo fora, já teve a oportunidade de assistir ao documentário. A questão agora é: como podemos mudar o nosso rumo e inverter esta situação?
Para ver o trailer do documentário “Before the Flood”, clique aqui
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Jornalista