POR GABRIELA COSTA
“As Nações Unidas nasceram da guerra. Hoje devemos estar aqui pela paz” – António Guterres ao prestar juramento como secretário-geral da ONU
“Façamos de 2017 um ano de paz”. O apelo de António Guterres na sua primeira mensagem enquanto líder das Nações Unidas foi veiculado vezes sem conta, nestes primeiros dias de 2017, nos meios de comunicação e nas redes sociais, e dissecado por analistas internacionais que tendem a encontrar no ex-primeiro ministro português um sinal de esperança para a reforma da ONU e para o seu contributo efectivo na resolução das profundas crises que o mundo atravessa, mas que reconhecem os muitos desafios que o novo secretariado das Nações Unidas tem pela frente, nos próximos cinco anos.
No dia 1 de Janeiro, data a partir da qual é, oficialmente, o nono secretário-geral da ONU, Guterres recordou as vítimas das guerras em todo o mundo, nas quais “não há vencedores, todos perdem”. E questionou, porque é essa a pergunta lhe “assalta a consciência”, no seu primeiro dia à frente do mais alto cargo da diplomacia internacional, “como ajudar os milhões de seres humanos vítimas de conflitos e que sofrem enormemente em guerras que parecem não ter fim?”.
[pull_quote_left]Para fazer da paz a prioridade é preciso superar diferenças[/pull_quote_left]
Na mensagem intitulada “Apelo à Paz”, o português que entre 2005 e 2015, enquanto Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, transformou uma das principais organizações humanitárias mundiais, durante uma das mais graves crises de migrações em décadas, defendeu que o compromisso para com a paz é de “hoje e de todos os dias” e deve ser um “princípio orientador”. Denunciando a situação de muitas populações civis em vários pontos do globo que “são destroçadas sob a mais letal violência”. E criticando que se gastem “biliões de dólares na destruição de sociedades e economias, alimentando ciclos de desconfiança e medo que podem perpetuar-se por gerações”.
Perante um cenário em que “vastas regiões do planeta estão inteiramente destabilizadas”, e o “terrorismo global ameaça a todos”, Guterres quer fazer da paz “a prioridade”, e para tanto é preciso que “todos – cidadãos, governos, dirigentes – procurem superar as suas diferenças”. Incluindo as “divergências políticas”, o que exige solidariedade, compaixão, diálogo e respeito, conclui.
Defendendo a necessidade de “entendimentos conseguidos à mesa de negociações para obter soluções políticas”, o novo líder da ONU deixou um apelo para que o mundo partilhe o compromisso das Nações Unidas para com a paz, da qual depende “tudo o que valorizamos como família humana”, desde logo “a dignidade e a esperança, o progresso e a prosperidade”.
A mensagem de paz proferida por António Guterres no primeiro dia do novo ano é uma insistência dos apelos que o agora secretário-geral da ONU vem fazendo, em diversas ocasiões: a 28 de Dezembro de 2015, na despedida após dez anos à frente da agência da ONU para os refugiados, sublinhou que “a restauração da paz deve ser a prioridade”. O ainda chefe do ACNUR pediu empenho nas negociações dos processos de paz na Síria, Iémen e Líbia, com “passos vitais” para conter as deslocações forçadas em todo o mundo, e deixou claro que as duas maiores razões pelas quais as pessoas têm de abandonar as suas casas e fugir em busca de segurança são as alterações climáticas e os conflitos armados.
[pull_quote_left]Gastam-se biliões na destruição de sociedades e economias, alimentando ciclos de medo[/pull_quote_left]
Dias antes, a 12 de Dezembro, Guterres prestava juramento na Assembleia Geral das Nações Unidas, depois de ter sido declarado o seu próximo secretário-geral. Num discurso promissor, assumiu o compromisso de trabalhar pela paz, defendendo que se “as Nações Unidas nasceram da guerra, hoje devemos estar aqui pela paz”. Para o novo líder da ONU, trabalhar nas causas profundas que atravessam os três pilares da ONU – paz e segurança, desenvolvimento sustentável e direitos humanos – deve ser uma prioridade para a organização.
Outra prioridade é a reforma da ONU, recolocando o desenvolvimento no centro das actividades da organização para garantir que esta possa mudar para efectivamente enfrentar os múltiplos desafios da comunidade internacional: “a ONU deve estar preparada para mudar”. Não consegue prever crises mas “precisa ser ágil, eficiente e eficaz. Deve-se focar mais nas pessoas e menos na burocracia”, defendeu Guterres depois de prestar juramento durante a cerimónia que reuniu os 193 países-membros da ONU. Porque a verdade é que das “crises agudas na Síria, no Iémen, no Sudão do Sul e em outros lugares” às “longas disputas, incluindo o conflito israelo-palestino, precisamos de mediação, arbitragem e diplomacia criativa”, afirmou.
Além de mediar conflitos, o novo dirigente das Nações Unidas enfrenta enormes desafios. Desde logo, e como é apontado pelos especialistas internacionais, aquele que será porventura um dos mais complexos, porém, inevitável: trabalhar com Donald Trump que, como se sabe, já se manifestou céptico quanto às alterações climáticas e próximo de críticos da ONU.
[pull_quote_left]A ONU deve estar preparada para mudar[/pull_quote_left]
Mas António Guterres terá também de envergar os necessários esforços para fortalecer a organização que irá liderar nos próximos cinco anos, e manter o legado do seu antecessor, Ban Ki-moon, que deixa o cargo depois de cumprir dois mandatos, nos últimos 10 anos. E que, como recordou o actual secretário-geral na cerimónia realizada durante o 60º Plenário da ONU, foi o responsável por iniciativas da maior relevância (e que ajudaram a salvar 2015 do rótulo de ano desastroso para os direitos humanos e a sustentabilidade), como a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, o compromisso com a paz e a segurança e o histórico Acordo de Paris. No evento em Nova Iorque a Assembleia Geral prestou um tributo ao sul-coreano, pela sua contribuição para o trabalho desenvolvido pelas Nações Unidas desde 2006.
Ban, por sua vez, manifestou-se confiante quanto à escolha do antigo primeiro-ministro para manter esse trabalho, felicitando o seu sucessor a 13 de Outubro, durante o discurso à Assembleia Geral após a nomeação de António Guterres para o cargo, durante o qual este afirmou que fará da dignidade humana o centro da sua actuação. Na ocasião, Ban ki-moon lembrou que se o novo secretário-geral é bastante conhecido na Assembleia Geral, “é, talvez, mais conhecido onde mais conta: nas frentes dos conflitos armados e de sofrimento humanitário”, reconhecendo como “essencial para a vida de milhões de pessoas forçadas a deixar suas casas” o trabalho da Agência da ONU para Refugiados e de outros atores humanitários, na última década.
Enaltecendo a “sólida e profunda” experiência política de Guterres e a defesa que faz do empoderamento das mulheres no mundo, Ban concluiu: “há muito valorizo os seus conselhos, e há muito admiro o seu espírito de serviço. Ele é uma escolha excelente para dirigir esta organização e dar andamento ao progresso da última década no combate à insegurança e às incertezas do mundo de hoje.”
Mulheres serão “os alicerces” de Guterres
O então secretário-geral da ONU cumprimentou ainda os Estados-membros “não apenas pela sua escolha, mas pela forma como ela foi tomada”, numa referência às audiências públicas realizadas com os candidatos, com o objectivo de criar um processo transparente de eleição do mais alto cargo das Nações Unidas: “muitas mulheres e homens altamente qualificados […] compartilharam a sua visão e responderam a perguntas da comunidade diplomática e da sociedade civil. Esses novos passos estabeleceram um novo padrão de abertura e participação”, concluiu Ban.
Recorde-se que António Guterres, que tem agora a missão de renovar e fortalecer a ONU num contexto de profundas crises, foi indicado e aprovado por unanimidade pelo Conselho de Segurança da ONU, e aprovado pela Assembleia-Geral, em Outubro, vencendo 12 outros candidatos, sete dos quais eram mulheres, graças ao movimento para a eleição de um secretário-geral no feminino, apoiado por Ban Ki-moon.
Não venceu uma mulher, mas venceu um homem que acredita na importância vital da paridade nos cargos de liderança. E que equacionou essa premissa com a da representatividade dos vários continentes entre os Estados-membros da ONU para fazer da escolha de três mulheres para integrar cargos de chefia do seu gabinete uma das suas primeiras decisões.
[pull_quote_left]Só um esforço colectivo pode livrar a ONU da sua apertada camisa burocrática[/pull_quote_left]
Para vice-secretária-geral da ONU, a segunda função mais importante da organização, Guterres nomeou Amina Mohammed, que era, até agora, ministra do Ambiente da Nigéria. Para o cargo de chefe de gabinete elegeu a diplomata brasileira Maria Luiza Ribeiro Viotti, que foi embaixadora do Brasil na ONU entre 2007 e 2013. E como assessora especial para assuntos políticos o novo chefe da ONU escolheu a sul-coreana Kyung-wha Kang, actual chefe da sua equipa de transição. “Estas indicações são o alicerce da minha equipa, que continuarei a construir respeitando os meus compromissos com a igualdade de género e a diversidade geográfica”, afirmou Guterres em comunicado.
O português nos comandos da ONU foi aclamado pelos 193 países-membros depois de derrotar a búlgura Kristalina Georgieva, candidata apoiada pela chanceler alemã, Angela Merkel, que entrou na corrida à ONU na recta final, meses depois dos restantes candidatos, e de terem decorrido cinco votações informais (todas elas com Guterres a obter o melhor resultado) – colocando, assim, em causa a desejada transparência no processo de selecção do novo líder da organização.
Felizmente, dirão muitos, ganhou António Guterres. A bem da credibilidade da maior organização intergovernamental do planeta e, eventualmente, a bem dos destinos do mundo (que passam pelas mãos desta gigantesca instituição nascida em 1945 para promover a segurança e a paz mundial, os direitos humanos, o desenvolvimento e o progresso social), no actual contexto global, inevitavelmente marcado por dramáticas crises humanitárias, deslocação de refugiados, conflitos armados e actos de terrorismo, instabilidade política, medo e consequente germinação de movimentos extremistas. O mundo está perigoso.
Mas o contexto global em que viveremos, em 2017, regista também, e com várias conquistas alcançadas no decorrer do ano passado, progressos estruturais, como a entrada em vigor do Acordo de Paris, para combater as alterações climáticas, e a ambiciosa Agenda 2030 da ONU para o desenvolvimento sustentável.
O ano de 2016 ficou, de facto, marcado por grandes desafios para a comunidade internacional, como o agravamento da guerra na Síria, conflitos violentos no Sudão do Sul e no Iémen ou um aumento de 5 milhões de refugiados, comparativamente a 2015. Mas testemunhou também progressos históricos em muitas frentes no combate às alterações climáticas, a assinatura de um tratado de paz inédito entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o governo que encerrou um conflito interno de 50 anos, o anúncio por parte da ONU de um plano para mitigar a epidemia de cólera no Haiti, e, fundamental, uma melhoria nos principais indicadores de desenvolvimento global: taxas de pobreza, doenças mortais, níveis de alfabetização, número de mulheres no poder.
[pull_quote_left]Este é o momento em que temos de afirmar o valor do multilateralismo[/pull_quote_left]
No seu primeiro dia de trabalho na sede da ONU, em Nova Iorque, António Guterres disse à sua equipa que “é muito importante reconhecermos as nossas conquistas […], mas precisamos também reconhecer as nossas falhas, os nossos fracassos “. Recebido pelo presidente da Assembleia Geral e por algumas dezenas de funcionários, o novo líder das Nações Unidas esclareceu que “não há milagres”, e que “a única maneira de alcançar os nossos objectivos é trabalhando em conjunto”.
Reconhecendo que a forma como o processo de selecção para o cargo (e o escrutínio que este permitiu das suas qualificações) “tem levantado um monte de expectativas”, Guterres pediu um esforço colectivo “para resolver as deficiências” e tentar livrar a ONU da “camisa burocrática apertada” que veste. E apelou ao “diálogo com os Estados-membros da ONU para superar as divisões que ainda existem na organização”. “O que é preciso é trabalhar em equipa e ganhar o direito de servir os valores da ONU, que são os valores que unem a humanidade”, concluiu.
[pull_quote_left]Não se deve dar nada como garantido[/pull_quote_left]
A Donald Trump, Guterres deixou vários recados: “Este é o momento em que temos de afirmar o valor do multilateralismo”, afirmou, sublinhando que é hora “de reconhecer que apenas soluções globais podem resolver problemas globais, e que a ONU é a pedra basilar dessa abordagem multilateral”. O crescimento demográfico e o aquecimento global são dois problemas que demonstram bem isso mesmo, já que “não podem ser resolvidos país a país”. Mas, “estes sentimentos não são partilhados por muitas pessoas no mundo” e “não se deve dar nada como garantido”, lamenta.
Sem, efectivamente, poder contar com uma visão multilateralista por parte da futura administração americana – que, de resto, depressa prenunciou uma política externa unilateral e desconsideração por uma ONU que Trump considera “obsoleta” -, António Guterres já começou a tentar construir as suas habituais pontes: ontem mesmo realizou o contacto telefónico “de apresentação” que lhe permitiu manter com o próximo presidente dos EUA uma “discussão muito positiva” sobre as relações entre as Nações Unidas e os Estados Unidos.
Logo de seguida, o porta-voz de Trump, Sean Spicer, anunciava que os Estados Unidos pretendem uma “reforma” nas Nações Unidas para que a organização seja “mais eficiente”. Recorde-se que os EUA acolhem a principal sede da organização, em Nova Iorque, e são o país que fornece mais fundos para o funcionamento das Nações Unidas.
Jornalista