Uma cultura de paz europeia “só poderá ser duradoura se à dimensão económica soubermos aliar a expressão cultural e cívica”. Em 2018 o Velho Continente celebra a diversidade, o diálogo entre culturas e a coesão social, valorizando o contributo do seu património para o desenvolvimento económico e nas relações internacionais. Com o objectivo de restaurar o sentimento da identidade europeia e o respeito pelos valores comuns de um projecto em crise, o Ano Europeu do Património Cultural serve de memória viva à construção do futuro da Europa
POR GABRIELA COSTA

“Como compreenderemos a Europa sem o diálogo entre a tradição e o progresso?” – Guilherme d’Oliveira Martins, Coordenador Nacional do Ano Europeu do Património Cultural

O Velho Continente vive desafios exigentes que o património cultural “enfrenta com impacto”. Da globalização à transição para a era digital, dos efeitos das alterações climáticas à crise de refugiados e ao proteccionismo provocado pela intolerância de vários Estados-membros, da crescente mobilidade humana à falência dos valores e identidade de cada nação e do próprio projecto europeu, sem esquecer o tráfico ilícito de bens culturais, muitos são os factores que colocam em risco a valiosa herança da Europa, ao nível da cultura.

Neste contexto, é premente “promover o que recebemos em ligação com a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social”, e valorizar “o contributo económico do património cultural para o desenvolvimento” bem como “o papel do património cultural nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à reconciliação pós-conflito e à recuperação de património destruído”.

E, para tanto, a União Europeia consagrou 2018 como o Ano Europeu do Património Cultural (EYCH, na sigla em inglês), celebrando, pela primeira vez, a riqueza e diversidade do património cultural europeu – tanto a nível da UE como a nível nacional, regional e local -, com os objectivos de promover o diálogo intercultural e a coesão social, mobilizando os cidadãos para os valores comuns europeus, através da divulgação do papel basilar da cultura e do património no desenvolvimento social e económico na Europa e nas suas relações externas.

Como sublinha o coordenador nacional do EYCH em Portugal, “ter memória é respeitarmo-nos”, e nesse sentido a efeméride visa precisamente “sensibilizar para a história e os valores europeus e reforçar o sentimento da identidade europeia”, entendidos como uma “memória viva”, seja ela relativa a monumentos, acervos, sítios ou tradições, seja, e principalmente, constituída por “conhecimentos ou expressões da criatividade humana”. Na linha da Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade, que entrou em vigor em 2011, “a preocupação fundamental é reforçar a noção de património cultural comum e construir um conceito de responsabilidade partilhada – envolvendo o património construído e material, o património imaterial e a criação contemporânea”.

Perante tantas incertezas e ameaças a um projecto europeu para a paz, a consagração de 2018 ao património cultural representa um marco emblemático, no âmbito do qual “as políticas públicas de cultura devem assentar no cuidado da herança e da memória”, defende Guilherme d’Oliveira Martins. Porque “o património cultural não se refere apenas ao passado, mas à permanência de valores comuns, à salvaguarda das diferenças e ao respeito do que é próprio, do que se refere aos outros e do que é herança comum”. E se não o assumirmos desta forma, como um “diálogo entre a tradição e o progresso” e um “entendimento das raízes culturais e religiosas”, “como compreenderemos a Europa?”

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Património de todos, herança para as novas gerações

Sob o lema “Património: onde o passado encontra o futuro”, o Ano Europeu do Património Cultural pretende que os cidadãos descubram e explorem a herança cultural da Europa, reforçando o seu sentimento de pertença a um espaço europeu comum, através de um conjunto alargado de iniciativas e eventos que decorrem ao longo de todo o ano.

O património cultural está presente nas cidades, nas vilas e aldeias, nas ruas, nas paisagens naturais, nos monumentos, museus, palácios e sítios arqueológicos…  mas também na literatura, na arte, na música, no teatro, no cinema, nos objectos, nos ofícios tradicionais, na gastronomia, nas histórias contadas, nos ambientes e no espírito dos lugares. A programação do evento em toda a Europa reflecte, pois, milhares de distintas acções que permitirão às pessoas aproximarem-se do património cultural e desempenharem um papel mais activo nas questões que lhe dizem respeito.

Conferências e debates, campanhas de informação, educação e sensibilização, partilha de experiências e boas práticas de administrações públicas e organizações privadas, estudos e actividades de investigação e de inovação – todos os formatos são válidos para transmitir uma abordagem “centrada nos cidadãos, inclusiva, prospectiva, mais integrada e transectorial, a fim de tornar o património acessível a todos e promover modelos inovadores de governação a vários níveis e de gestão do património cultural que envolvam todas as partes interessadas”, como aspira a organização do evento.

Lançado oficialmente a 7 e 8 de Dezembro, em Milão, o Ano Europeu do Património Cultural acolheu já vários eventos internacionais de destaque um pouco por toda a Europa, como a cerimónia de entrega dos prémios EDEN – The European Destinations of Excellence, que distinguiu, a 22 de Março, em Bruxelas, 18 países pelo seu turismo sustentável. A 21 de Maio celebra-se o The EU Natura 2000 day, dedicado à rede de áreas protegidas Natura 2000. Já do dia 27 ao dia 31 do mesmo mês, realiza-se em Budapeste, na Hungria, a Digital Humanities Conference 2018, para debater os avanços desta nova ciência interdisciplinar. Em Junho, é a vez de a Alemanha acolher a European cultural heritage summit: Sharing heritage – sharing values, que terá lugar em Berlim, entre os dias 18 e 24, e altura para a cerimónia de entrega dos prémios European Green Capital 2020 and European Green Leaf 2019, com data e lugar a definir. Entre muitos outros momentos internacionais, a NEMO (The Network of European Museum Organisations) 26th Annual Conference merece referência por se realizar, já a 15 de Novembro, em Valleta, a Capital Europeia da Cultura em 2018. Ao todo, são esperados mais de um milhão de participantes em quase 8 mil eventos realizados por 28 países.

Em Portugal, o Ano Europeu do Património Cultural, cujas iniciativas são dinamizadas pela Direcção-Geral do Património Cultural, reúne também inúmeros eventos, como o Dia Internacional de Monumentos e Sítios 2018 (sob a temática “Património Cultural: de geração em geração”), já a 18 de Abril; a participação no Prémio para destinos turísticos culturais sustentáveis, cujas candidaturas estão abertas até 1 de Julho; a participação no Desafio “Hino Da Alegria” #Ode2joy Challenge, cujas criações serão partilhadas nas redes sociais a 9 de Maio – Dia da Europa; ou o Prémio Escolar AEPC 2018, que se destina ao 3º ciclo do Ensino Básico e ao Ensino Secundário, com o objectivo de promover o conhecimento do património cultural europeu nas suas múltiplas dimensões, dinamizando iniciativas que garantam a sua sustentabilidade e protecção, assim como o diálogo entre diferentes realidades culturais.

Convocando indivíduos, comunidades, organizações públicas e privadas, empresas, associações, ONGs e demais entidades da sociedade civil, municípios, investigadores e académicos, escolas e universidades, o EYCH visa unir todos, e os jovens em particular, em torno de um valor universal, e evolutivo, que deve ser preservado e transmitido às gerações futuras: o património material – edifícios, monumentos, artefactos, vestuário, obras de arte, livros, máquinas, cidades históricas, sítios arqueológicos; imaterial – práticas, representações, expressões, conhecimentos, competências (e os instrumentos, objectos e espaços culturais que lhes estão associados), incluindo as línguas e tradições orais, as artes do espectáculo, as práticas sociais e o artesanato tradicional; natural – paisagens, flora e fauna; e digital – recursos criados em formato digital (por exemplo, arte ou animação digital) ou que foram digitalizados para assegurar a sua conservação (incluindo textos, imagens, registos) da Europa. Um património que, “acima de tudo, tem um papel importante a desempenhar na construção do futuro da Europa”.

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Cultura é cidadania e prosperidade

De acordo com o documento de Decisão da Comissão Europeia, e no quadro da Agenda Europeia para a Cultura, os objectivos deste Ano Europeu passam por incentivar e apoiar, designadamente através do intercâmbio de experiências e boas práticas, os esforços da União Europeia, dos Estados-Membros e das autoridades regionais e locais, para proteger, valorizar e promover o património cultural europeu, com vista, em especial, a contribuir para a promoção do papel do património cultural europeu enquanto elemento central da diversidade e do diálogo interculturais; enquanto mais-valia para a economia e para a sociedade, através do seu potencial directo e indirecto; e como um elemento importante da dimensão internacional da União Europeia.

Para tanto, cada país da UE designou um coordenador nacional – em Portugal, o Centro Nacional de Cultura, presidido pelo também administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian, Guilherme d’Oliveira Martins – responsável pelas comemorações e pela coordenação dos eventos e projectos a nível local, regional e nacional. Paralelamente um comité de stakeholders que reúne as principais partes interessadas do sector cultural e várias organizações da sociedade civil associa-se directamente às actividades da comemoração. E, a nível europeu, todas as instituições da UE estão empenhadas no EYCH, com a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia, mas também o Comité das Regiões e o Comité Económico e Social, a organizarem eventos para comemorar o Ano Europeu e a lançarem actividades que põem em destaque o património cultural.

Além disso, a UE está a financiar projectos de apoio ao património cultural. No âmbito do programa Europa Criativa, foi lançado um convite à apresentação de propostas de projectos de cooperação relacionados com o Ano Europeu. Uma grande variedade de outras oportunidades estão disponíveis ao abrigo do Erasmus+, da Europa dos Cidadãos, do Horizonte 2020 e de outros programas da UE.

Procurando perpetuar os efeitos dos seus esforços para além de 2018, a Comissão, em colaboração com o Conselho da Europa, a UNESCO e outros parceiros, irá lançar dez projectos com impacto a longo prazo, em áreas como educação, preservação do património, sustentabilidade e inovação, e que incluem actividades com escolas, investigação sobre soluções para a reutilização de edifícios históricos e combate ao tráfico ilícito de bens culturais. O objectivo é “ajudar a desencadear um processo de mudanças efectivas no modo como usufruímos, protegemos e promovemos o património”, assegurando que o Ano Europeu terá benefícios para os cidadãos a longo prazo.

Porque, e afinal, este mesmo património é o que nos permite “compreender o passado e olhar para o futuro”, como defende a Comissão Europeia para sublinhar a necessidade de “construir sociedades mais fortes, criar empregos e prosperidade” e fortalecer as “relações da Europa com o resto do mundo”, preservando assim, e também, a própria identidade europeia.

Como sublinha o coordenador nacional do EYCH, “só a compreensão do património cultural nos permite assumir uma cidadania civilizada”. Em causa estão “a cidadania livre e responsável, a soberania partilhada, a união de Estados livres e soberanos, a democracia supranacional, a subsidiariedade, e o desenvolvimento orientado para a dignidade humana”.

E é com memória das guerras e da intolerância que devemos defender uma cultura de paz europeia, que, como explica Guilherme d’Oliveira Martins, “só poderá ser duradoura se à dimensão económica soubermos aliar a expressão cultural e cívica, com a qual poderemos tecer a liberdade, a igualdade, a coesão, a justiça distributiva, a equidade intergeracional, a sustentabilidade e o primado da aprendizagem e do conhecimento”.


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Um futuro mais jovem para a cultura europeia

Com ideias inspiradoras, os jovens têm um papel fundamental na criação de unidade entre a diversificada cultura europeia. Sublinhando a importância de ouvir a sua opinião e de ter em conta as suas ideias, o evento anual “A tua Europa, a tua voz!”, cuja 9ª edição decorreu em Bruxelas, entre 15 e 16 de Março, reuniu um conjunto de projectos que podem inspirar as novas gerações a partir à descoberta de diferentes culturas e a compreender melhor o seu património cultural comum.

Organizado pelo Comité Económico e Social Europeu (CESE), o evento acolheu 99 alunos de 33 escolas secundárias de 28 Estados-Membros da UE e de 5 países candidatos à adesão, cujas melhores ideias foram transformadas em recomendações destinadas aos decisores políticos da EU.

Integrada no Ano Europeu do Património Cultural, a edição deste ano centrou-se na cultura, sob o lema “Unidos na diversidade: um futuro mais jovem para a cultura europeia”. Entre as ideias mais votadas para defender a cultura europeia, os jovens defendem que devem existir mais oportunidades de aprendizagem de línguas através da viagem e maior facilidade de acesso a sítios culturais europeus. A preservação da nossa cultura através do artesanato e da gastronomia nacionais, com potencial para alargar a tolerância entre as nações, foi outra ideia em destaque.

Discutindo, em debates e seminários intensos, a forma de preservar o património cultural europeu e de torná-lo mais aliciante para os jovens europeus, os alunos avançaram ideias sobre questões muito debatidas na actualidade e que podem ser melhoradas através de actividades culturais, como a igualdade, a segurança e a integração. Das dez recomendações concretas destinadas aos decisores políticos da UE, foram seleccionadas as três propostas mais votadas:

  1. Oportunidade de descobrir outras culturas através da viagem. Este projecto propõe a criação de um programa especial de intercâmbio de jovens com cursos de línguas no estrangeiro, que permitiria aos alunos viver em famílias de acolhimento e conhecer novas culturas. Para a aluna cipriota que apresentou esta recomendação, “partir à descoberta de diferentes culturas permite-nos apreciá-las muito mais e faz-nos ter orgulho em sermos europeus»”;
  2. Preservar a cultura, aprender com o passado e usá-lo para construir o futuro. Esta recomendação tem como objectivo criar a Casa da Gastronomia da União Europeia em cada Estado-Membro. “Quando pedíssemos, num restaurante, um prato nacional específico, o empregado de mesa colocaria ao lado uma pequena nota explicativa do contexto histórico em que foi criado, o que contribuiria para aumentar a tolerância entre as nações”, explicou uma delegada da Eslovénia. O grupo de alunos propôs ainda a criação de um programa de apoio a pequenas lojas de artesanato tradicional, a fim de preservar a cultura popular tradicional da Europa;
  3. Experimentar a cultura. Este projecto visa levar a cultura e o património cultural a todas as pessoas, através da criação de festivais temáticos itinerantes e da promoção dos museus fora das grandes cidades. Segundo defendeu uma delegada da França, trata-se de “um ideal que devemos procurar realizar, porque pode enriquecer-nos. É muito mais interessante estarmos abertos a outras culturas. Mas não tenho a certeza de que, actualmente, a cultura europeia seja tangível e acessível”.

Como sublinhou o vice-presidente do CESE, Gonçalo Lobo Xavier, “este projecto incrível que dá pelo nome de Europa é de todos, todos contribuem para a sua construção e todos têm uma palavra a dizer”. A dos jovens é especialmente relevante, pois face à necessidade que o projecto europeu tem de contar com a responsabilidade partilhada de todas as suas instituições e cidadãos, e de acordo com o presidente do CESE, Georges Dassis, “sem eles nada acontecerá”.


Jornalista