Depois de, há poucos dias, o Presidente norte-americano ter afirmado que o seu homólogo russo era um “criminoso de guerra”, Biden não se conteve esta última quinta-feira e chamou a Vladimir Putin “ditador assassino que está a travar uma guerra imoral”. Na verdade, o estado mental de Putin tem sido objecto de discussão, com muitos observadores a apelidarem-no de doido e outro tantos a defenderem que o que o move é apenas pura maldade e ambição. Seja como for, o maior problema da “teoria do louco” – que tem sido utilizada ao longo da história para descrever líderes similares – pode funcionar como uma estratégia cuidadosamente pensada: a ideia é provocar uma instabilidade nos adversários, fazendo-os acreditar que se é tão volátil, tão hostil e tão irracional, é impossível saber o que pretende fazer a seguir. E esse é também o medo de todos nós
POR HELENA OLIVEIRA
Apesar do visível carácter belicista de Vladimir Putin, a invasão russa da Ucrânia acabou por ser uma surpresa para o mundo. Dados os seus enormes custos económicos, reputacionais e políticos – para não mencionar a tremenda miséria humana que já causou – como pode alguém no seu perfeito juízo optar por iniciar uma guerra deste tipo?
A questão da racionalidade é importante ao avaliar as acções de um país, o provável impacto da pressão externa sobre o mesmo, incluindo as sanções económicas, bem como uma potencial saída através de negociações. Todavia, Putin parece não querer saber de nada disso, mesmo tendo conhecimento que muitos analistas e observadores tenham já afirmado que o ex-agente do KGB e actual presidente russo “está a perder esta guerra”. Afinal, e convencido que esta mera “operação militar especial” estaria resolvida em poucos dias, as semanas vão passando e apesar da morte, da destruição e do aumento constante do número de refugiados, Vladimir Putin ainda não conseguiu os seus intentos, mas não deu qualquer sinal de que está disposto a abrir mão do apetecível território ucraniano.
As opiniões do líder russo sobre a Ucrânia podem ser desconstruídas em algumas narrativas básicas. Desde as afirmações de que certas áreas da Ucrânia moderna são “terras russas da velhice” (iskonnye russkie zemli), à ideia de proximidade histórica entre os russos e os ucranianos, em conjunto com o argumento das fronteiras estratégicas que ambos os países partilham. Adicionalmente, a alegação de Putin de que os russos e os ucranianos são um só povo serve o mesmo objectivo. Facilita as reivindicações de Moscovo sobre territórios ucranianos como sendo essencialmente russos e legitima o alegado direito da Rússia a uma esfera de influência especial – se não mesmo uma anexação directa tal como aconteceu com a península da Crimeia em 2014.
A ascensão de Putin à presidência russa em 1999-2000 (substituindo Boris Ieltsin) foi parcialmente o resultado de um consenso de elite sobre a importância de restaurar a ordem no Estado após uma década de crise interna e de humilhação internacional. Reflectindo o humor nacional, Putin utilizou uma das suas primeiras grandes declarações políticas – a sua chamada “Mensagem do Milénio” de 29 de Dezembro de 1999 – para se apresentar como um estatista. Na Rússia, os indivíduos existem para servir o Estado e os seus direitos sendo, portanto, secundários. Desde os seus primeiros dias no Kremlin, Putin perseguiu o objectivo de restaurar e fortalecer o Estado – redescobrindo e retomando os valores fundamentais da Rússia, reavivando as suas tradições históricas, e abandonando a prática de copiar cegamente modelos ocidentais por ele considerados abstractos. Sublinhou o comunitarismo sobre o individualismo ocidental, promoveu o renascimento da Igreja Ortodoxa Russa, e estabeleceu ligações directas entre a moderna presidência russa e os czares russos pré-revolucionários. E o desejo de recuperar o império russo esteve sempre subjacente aos seus actos e pensamentos.
Paralelamente, e como afirmavam, em 2013, Clifford Gaddy, antigo especialista da Brookings e Fiona Hill, especialista em Política Externa dos Estados Unidos e Europa, “Putin sempre demonstrou o seu apego às tradições históricas da Rússia, sedo retratado nos seus materiais biográficos oficiais como um auto designado estudante de História. Como presidente, ligou o seu destino pessoal ao do Estado russo e fez várias interpretações activas do passado do país para reforçar posições políticas, enquadrar eventos chave e camuflar-se no manto da legitimidade histórica. Por exemplo, Putin destacou frequentemente paralelos com Pyotr Stolypin – primeiro-ministro sob Nicholas II, o último czar da dinastia Romanov, que defendeu reformas económicas e sociais de longo alcance. Não foi apenas por coincidência que Putin seleccionou o 100º aniversário da morte de Stolypin em 1911 para anunciar a sua intenção de regressar à presidência e levar o seu programa de reformas até à sua conclusão.
Mas se a história tem sido um instrumento político para Putin, funciona igualmente como algo muito pessoal. Os seus pais sobreviveram ao cerco de Leninegrado, um dos períodos mais negros da história russa, com quase um milhão de mortos. O relato assustador da sua família sobre a Segunda Guerra Mundial enquadra-se perfeitamente na narrativa histórica nacional – uma narrativa em que a Rússia luta constantemente pela sobrevivência contra um mundo exterior hostil. A lição crítica de séculos de turbulência doméstica, invasão e guerra é a de que o Estado russo sobrevive sempre de uma forma ou de outra. Cada calamidade vencida reafirma a resiliência da Rússia e o seu estatuto especial na história. Esta tem sido uma pedra de toque retórica para Putin, bem como para muitos outros da sua geração.
Guerra sem paz ou crime e castigo
Não faltam literatura, artigos ou análises sobre o estado mental de Vladimir Putin. E se uns o consideram simplesmente doido e fora da realidade, outros tantos defendem que os seus actos e palavras são estrategicamente pensados para os objectivos, por mais cruéis que estes sejam, que julga poder alcançar.
Putin cultivou, para si mesmo e desde jovem, uma imagem de outsider. Nasceu e foi criado na segunda cidade russa de Leninegrado (agora São Petersburgo), filho de um operário de fábrica e ocasionalmente zelador, com anteriores raízes humildes na província russa de Ryazan. Em paralelo, e quando se juntou ao KGB, essa imagem prevaleceu em muitos aspectos. Recrutado para a maior organização de serviços secretos da União Soviética instalada durante a Guerra Fria, Putin foi um dos escolhidos nos anos 70 como parte de um esforço do Director do KGB – Yury Andropov – para trazer uma nova geração de operacionais não pertencentes aos canais normais, apesar de Putin não ter subido rapidamente nas fileiras do KGB.
Por outro lado, nunca fez parte das estruturas de liderança do Partido Comunista da União Soviética (PCUS, na sigla em português), tendo mantido a sua postura de outsider durante a década de 1980. Durante o período crítico de reforma da perestroika, o KGB colocou Putin na cidade provincial de Dresden na Alemanha Oriental, onde permaneceria até depois da queda do Muro de Berlim. Após o seu mandato como vice-prefeito de São Petersburgo, no Verão de 1996, Putin foi especificamente trazido para Moscovo devido à sua imagem de outsider para ajudar a erradicar interesses entrincheirados nos círculos políticos e comerciais da capital.
Nos anos 90, o capitalismo em São Petersburgo tratava mais de ligações pessoais com o governo da cidade do que de relações com trabalhadores e clientes. Como tal, Putin parece ter emergido desta experiência com a opinião de que os vencedores no sistema de mercado são aqueles que mais capazes são de explorar as vulnerabilidades dos outros, não necessariamente aqueles que fornecem os melhores bens e serviços aos preços mais favoráveis. Esta perspectiva levou-o a explorar as fraquezas de muitos, incluindo os empresários russos, para os manipular e assegurar que seguiam as directivas do Kremlin.
Putin fez deste estatuto uma virtude durante toda a sua presidência, sublinhando as suas ligações aos russos “comuns” e distanciando-se – quando lhe dava jeito – das elites ressentidas de Moscovo.
Todavia, e nos dias de guerra que parecem não ter fim, muitos dos seus compatriotas saíram às ruas para protestar contra a invasão ucraniana e pelo menos 4300 pessoas foram presas nestas manifestações públicas de “Não à guerra. Vê lá se tens vergonha!”
Mais recentemente, de acordo com a CNN e num discurso transmitido pela televisão pública, o presidente da Federação Russa dirigiu-se aos russos que não apoiam a invasão da Ucrânia, dizendo que são “escória e traidores”, tendo até mencionado a necessidade de uma “auto-purificação” da sociedade russa. Na linguagem agressiva que cada vez mais o caracteriza, afirmou ainda que os russos “serão sempre capazes de distinguir os verdadeiros patriotas da escória e traidores, e simplesmente os cuspirão, como um mosquito que acidentalmente voou para as suas bocas”.
Numa entrevista solicitada pela CNN ao Ministério do Interior ucraniano para falar com alguns prisioneiros russos, todos eles se manifestaram profundamente envergonhados com a sua missão e com o sofrimento dos civis ucranianos. Como afirmou um dos entrevistados, “quero dizer ao nosso comandante-chefe para parar com os actos de terror na Ucrânia, porque quando voltarmos vamos insurgir-nos contra ele”, acrescentando ainda que Vadimir Putin “pediu-nos para cometer crimes. Não estamos apenas a desmilitarizar a Ucrânia ou a derrotar as forças armadas ucranianas, há cidades com civis pacíficos a serem destruídas (…) e com os crimes que cometemos seremos todos julgados”.
“Putin é a Rússia, e a Rússia é Putin”
O comentário foi feito pelo político russo Vyacheslav Volodin depois da branda anexação da Crimeia em 2014 e citado no livro “The Code of Putinism” publicado em 2018 por Brian D. Taylor, Professor e Presidente de Ciência Política da Maxwell School of Citizenship and Public Affairs na Universidade de Syracuse. Taylor é igualmente autor de “State Building in Putin’s Russia: Policing and Coercion after Communism” (2011) e “Politics and the Russian Army: Civil-Military Relations, 1689-2000” (2003), ou seja, está bem documentado sobre o que se passa em território russo.
Como explica, o Presidente russo é uma peça central de algo ainda mais complexo que designa como “Putinismo”, um “sistema solar” de clãs interligados e muitas vezes concorrentes. Para compreender como estas redes informais governam o país e executam a política externa, é necessário conhecer o “código” que as guia, que Taylor diz incluir ideias, hábitos, e emoções. As ideias-chave por detrás do Putinismo são a necessidade de um estado forte, anti-ocidentalismo e de conservadorismo. Os hábitos do Putinismo expressam-se em preferências por controlo, unidade, lealdade, e “hipermasculinidade”.E as suas emoções emaranham-se com o respeito que todos lhe “devem”, bem como com o ressentimento e medo que provoca. O código, argumenta Taylor, explica a tendência da Rússia para o autoritarismo e para a sua política externa agressiva.
Sim, Putin é conhecido pelo seu carácter dominador, pelo seu autoritarismo, hostilidade, narcisismo, falta de empatia e, é claro, pela sua ambição. Ora, os indivíduos ambiciosos são ousados, competitivos e seguros de si, assumindo facilmente papéis de liderança, esperando que os demais reconheçam as suas qualidades especiais. Este padrão de personalidade delineia a componente “expansionista” da composição da personalidade de Putin.
O que vai na cabeça de Putin?
Tal como assinalado no início, não existe consenso entre os observadores no que respeita à saúde mental do Presidente russo em particular desde que decidiu invadir a Ucrânia. Se já há vários anos se especulava que Putin sofria de algum tipo de desordem mental, a dúvida, para muitos, transformou-se numa realidade, enquanto para outros “patologizar” acções políticas como sintomas de perturbação mental é simplesmente inútil.
Por exemplo, o reconhecido autor Ian McEwan – e que tem escrito vários artigos sobre as supostas desordens mentais de Putin – descreve-o como “um adversário perturbado e imprevisível”, afirmando também que os seus “seus sonhos são doentios”. Já o escritor e colunista do The Guardian Jonathan Freedland considera que a invasão da Ucrânia é “um capricho de um, possivelmente louco, homem”. Mas existem outras opiniões. O antigo secretário britânico dos Negócios Estrangeiros David Owen considera que o comportamento agressivo de Putin pode ser uma consequência da sua predilecção por tomar esteróides anabólicos, com um neuropsicólogo a defender que o Presidente sofre da “síndrome de hubris (que afecta os lóbulos frontais) e um outro especialista ouvido pelo The Guardian a considerar que o problema pode advir do facto de estar a sofrer de efeitos cognitivos provocados de uma Covid prolongada. A paranóia de Putin face ao vírus é igualmente publicamente conhecida. Desde a instalação de um túnel “desinfectante” no Kremlin até ao episódio em que ficou conhecida a longa mesa que o distancia de qualquer que seja o seu interlocutor, Putin manteve-se quase isolado ao longo de dois anos apavorado com a pandemia. Adicionalmente, Putin desapareceu frequentemente da vista por longos períodos de tempo durante a pandemia da COVID-19, e todos os conselheiros que esperavam vê-lo pessoalmente foram obrigados a auto-isolar-se durante duas semanas antes das suas reuniões, de acordo com relatórios dos meios de comunicação russos.
Todavia, Semyon Gluzman, um reconhecido psiquiatra ucraniano e dissidente da antiga União Soviética, foi questionado, num entrevista concedida à New Line Magazine, se a invasão da Ucrânia não era representativa de um homem louco. Ao que Gluzman respondeu o seguinte: “Não, ele não está louco, é simplesmente muito mau, tendo eu a certeza que é totalmente saudável”. O psiquiatra que passou 10 anos da sua vida num gulag defende antes que a personalidade de Putin é muito peculiar. Como afirma também e a seu ver, Putin é simplesmente diferente, sádico, não pensa nas outras pessoas, nem mesmo no povo russo, apenas nele próprio, fazendo recordar predecessores similares como Hitler e Estaline. “Podemos dizer que eles fizeram coisas horríveis mas que não as fizeram porque uma voz lhes disse para o fazerem. Eram malfeitores. Eram pessoas sádicas. Mas não eram loucos”.
Gluzman acrescenta ainda alguns traços de personalidade sobre os quais muitos observadores e políticos já testemunharam. Como afirma, “Putin tem medo de conhecer políticos estrangeiros, preferindo que estes se distanciem dele mais de 6 ou 7 metros. E Isto não é esquizofrenia”, garante. A verdade é que, e de acordo com o reconhecido psiquiatra, Putin teme que a sua vida, a sua vida física, possa acabar em breve. E naquelas raras ocasiões em que deixa a Rússia, diz também, tenta o seu melhor para limitar o contacto. “Todos podemos ver pela televisão que ele tem sempre consigo um pequeno frasco cheio de água e que não come a comida que lhe é oferecida”. Ou, em suma, tem medo de todos à sua volta e, em particular, daqueles que lhe são mais próximos e com os quais se rodeia”.
Uma visão diferente foi publicada pela revista Foreign Policy. Como se pode ler, a decisão de Putin de lançar uma nova e brutal invasão da Ucrânia fez com que alguns oficiais e observadores ocidentais questionassem o estado mental do homem responsável pelo maior arsenal mundial de armas nucleares. E embora seja impossível conhecer o verdadeiro estado mental de Putin, aqueles que têm acompanhado de perto o comportamento do líder russo foram atingidos pela natureza bizarra e obscura dos seus recentes discursos, nos quais descreveu e por exemplo os líderes da Ucrânia como um “bando de toxicodependentes e neonazis”.
Sendo ou não louco, a verdade é que alguns distúrbios de comportamento de Putin ao longo dos últimos anos, e em particular desde invasão da Ucrânia, têm chamado a atenção de muitos políticos e analistas.
Por exemplo, o presidente francês Macron ficou impressionado com a fixação de Putin pela história e notou que o comportamento do líder russo tinha mudado nos últimos anos, informou a Reuters, citando fontes da delegação francesa.
E outros vêem o comportamento recente de Putin não como uma aberração, mas mais como uma ampliação das tendências que há muito se têm vindo a observar no líder russo. “Não é exacto vê-lo simplesmente como um actor instrumentalmente racional”. “Ele tem ideias fortes, tem emoções obscuras, e tem vindo a expressá-las há muito tempo”, afirma o autor de “O Código de Putinismo”, acrescentando que, nesse sentido, “esta trajectória não é uma surpresa total”, apesar de a considerar “ algo muito maior do que qualquer coisa que ele já tenha feito antes”.
Por fim, de sublinhar ainda a ideia de que a teoria do “louco”não é nova na história das guerras e conflitos, tendo sido particularmente usada nas rivalidades existentes na era da Guerra Fria. A ideia é provocar um desequilíbrio nos adversários fazendo-os acreditar que se é tão volátil, tão hostil e tão irracional, não é possível saber o que vai fazer a seguir.
E esta parece ser, na verdade, o que Vladimir Putin está a fazer na Ucrânia. E que é, no mínimo, terrível.
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