A recém-criada Plataforma de Direitos Humanos (PDH) — que reúne 27 organizações da sociedade civil — apresentou o seu primeiro relatório, traçando um retrato crítico das desigualdades persistentes no país no que diz respeito a esta matéria. O documento identifica um fosso preocupante entre os direitos consagrados na lei e a realidade vivida por muitas pessoas. Em entrevista, Inês Sousa, coordenadora executiva da PDH, alerta para o risco de se continuar a excluir quem mais precisa de protecção, fala da urgência de se transformar compromissos legais em políticas concretas e sublinha a necessidade de se combater a exclusão e a desinformação que fragilizam os valores democráticos
POR HELENA OLIVEIRA
O relatório “Entre o Compromisso e a Realidade – Direitos Humanos em Portugal“, publicado em 2025 pela Plataforma de Direitos Humanos em Portugal (PDH), apresenta uma análise crítica e detalhada sobre o estado dos direitos humanos no país. Este primeiro relatório da PDH surge no contexto dos 50 anos da democracia portuguesa, procurando avaliar até que ponto os compromissos assumidos pelo Estado em matéria de direitos humanos estão efectivamente a ser cumpridos. Cada capítulo do relatório começa com o retrato de uma pessoa em situação de vulnerabilidade, construído a partir de casos reais, para ilustrar como, na prática, os direitos nem sempre chegam a quem mais precisa deles.
A Plataforma de Direitos Humanos em Portugal é uma iniciativa de articulação da sociedade civil, actualmente composta por 27 organizações. Actua com base nos princípios da Constituição da República Portuguesa e dos principais instrumentos internacionais de direitos humanos. O seu papel é o de promover acções conjuntas de sensibilização, formação e advocacy, apoiar processos legislativos e produzir relatórios colaborativos que dêem visibilidade a abusos ou lacunas nos direitos fundamentais.
A coordenação executiva da PDH é actualmente assegurada por Inês Sousa que, em entrevista ao VER, afirma que Portugal registou progressos importantes nos últimos cinquenta anos em matéria de direitos humanos, mas que esses avanços não beneficiaram de forma equitativa todos os grupos sociais. Falando sobre o primeiro relatório lançado pela PDH, Inês Sousa sublinha igualmente que as narrativas discriminatórias e a desinformação estão em crescimento, o que aumenta os riscos de marginalização.
O vosso relatório traça um retrato muito crítico das falhas na implementação de direitos humanos em Portugal. Qual é, na sua opinião, a principal conclusão que gostariam que a sociedade civil e os decisores políticos retirassem desta publicação?
O mais importante é reconhecer que, ao longo dos últimos cinquenta anos, Portugal tem feito progressos significativos na construção de leis, instituições e políticas públicas que promovem e protegem os direitos humanos. No entanto, este relatório mostra que esses avanços ainda não chegam a todas as pessoas da mesma forma. Persistem quadros de vulnerabilidade que atravessam diferentes realidades e identidades — sejam marcados pela pobreza, pela discriminação, pela ausência de redes de apoio social e familiar ou por múltiplas formas de exclusão — que continuam a limitar o pleno exercício dos direitos de muitas pessoas, como as pessoas LGBTI+, pessoas migrantes, mulheres, pessoas com deficiência, entre outras.
Para além disso, torna-se imperativo reconhecer e enfrentar o crescimento acelerado da desinformação e das narrativas discriminatórias, fenómenos que fragilizam os valores democráticos, aprofundam clivagens sociais e expõem pessoas e grupos a riscos acrescidos de marginalização e violência. Estas dinâmicas, não apenas comprometem a promoção efectiva da diversidade, da equidade e da justiça social, como corroem a confiança colectiva no conhecimento científico, no progresso social e nas instituições públicas e políticas que sustentam o Estado democrático.
A Plataforma de Direitos Humanos resulta da união de 27 organizações da sociedade civil. Como se constrói, na prática, uma voz comum capaz de influenciar decisões políticas?
A construção de uma voz comum entre as 27 organizações que integram a Plataforma de Direitos Humanos assenta, antes de mais, num compromisso partilhado com um quadro normativo, que orienta toda a sua acção colectiva. Este quadro é constituído por três pilares fundamentais: a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a Constituição da República Portuguesa. Estes documentos, não apenas estabelecem os princípios universais e nacionais que guiam a protecção dos direitos humanos, como também funcionam como referências éticas e jurídicas que permitem o alinhamento de visões e a articulação de estratégias conjuntas.
É com base neste alicerce comum que todas as organizações associadas concordam em sentar-se à mesma mesa, reconhecendo que, apesar das suas diferenças de foco, métodos e públicos de actuação, partilham o objectivo de transformar a realidade portuguesa de forma positiva e estruturante, nos diversos domínios em que intervêm. A voz comum da Plataforma não emerge, portanto, da homogeneização das perspectivas, mas da valorização do pluralismo e da experiência acumulada de cada organização.
Apontam uma ausência de “narrativa pública coerente” sobre direitos humanos. O que está a falhar na forma como falamos e pensamos estes temas em Portugal?
Consideramos que, em Portugal, o enquadramento dos direitos humanos de todas as pessoas continua a não ser plenamente integrado no centro do debate, da formulação e da implementação das políticas públicas. Falta uma abordagem sistemática que reconheça os direitos humanos não apenas como um conjunto de obrigações legais ou princípios éticos, mas como uma base estruturante para o desenvolvimento sustentável, a coesão social e a segurança humana.
A ausência de uma narrativa pública coerente sobre os direitos humanos traduz-se, muitas vezes, numa comunicação fragmentada, reactiva, onde os direitos fundamentais são apresentados como reivindicações sectoriais, ou como respostas a situações de crise, em vez de serem compreendidos como parte integrante do modelo democrático e do contrato social. Esta fragmentação impede a construção de uma visão comum sobre a dignidade humana e dificulta o reconhecimento dos direitos como responsabilidade colectiva do Estado e da sociedade.
Neste contexto, torna-se importante reforçar, ao nível institucional, a incorporação de mecanismos de avaliação e monitorização em matéria de direitos humanos em todas as fases do ciclo das políticas públicas. A adopção transversal de uma perspectiva de direitos humanos permitiria não só identificar desigualdades e discriminações persistentes, como também orientar a acção pública para a promoção de uma sociedade mais justa, inclusiva e resiliente.
A construção de uma narrativa pública coerente exige, portanto, vontade política, capacitação institucional e envolvimento activo da sociedade civil, bem como um esforço contínuo de educação e sensibilização para os direitos humanos enquanto linguagem comum de justiça, igualdade e dignidade.
O Governo apresentou recentemente um projecto-lei com regras mais restritivas para a entrada e regularização de migrantes. Numa altura em que os sistemas públicos já falham na resposta, que impacto antevêem para quem cá está — e para quem chega?
Medidas que visam alargar prazos ou dificultar os processos de regularização — como o prolongamento dos períodos de reconhecimento da residência legal ou da nacionalidade — tendem a expor estas pessoas a contextos de maior precariedade e invisibilidade, deixando-as mais sujeitas à exploração laboral e habitacional.
Numa altura em que os sistemas públicos já enfrentam dificuldades em garantir respostas adequadas às necessidades da população, o endurecimento das políticas migratórias não resolve os problemas estruturais — limita-se a transferir os seus impactos negativos para os próprios migrantes, fragilizando ainda mais as suas condições de vida e integrando-os de forma desigual e subordinada.
Importa sublinhar que não está apenas em causa uma questão administrativa ou de gestão de fluxos migratórios. O que está em jogo é a definição do tipo de sociedade que queremos construir: uma sociedade que reconhece os direitos humanos como base da convivência democrática, ou uma sociedade que reproduz exclusão e desigualdade. Defender políticas migratórias justas, eficazes e humanistas implica afirmar, de forma clara, o valor de cada pessoa enquanto sujeito de direitos e apostar em estruturas de integração.
O relatório dá destaque às atitudes xenófobas crescentes, em especial dirigidas a migrantes do sul da Ásia e de países lusófonos. Como contrariar este discurso? Há um papel mais activo a desempenhar pelas autarquias ou pela escola pública?
Este fenómeno não é apenas um reflexo de preconceitos individuais, mas decorre de um ecossistema social, político e comunicacional onde faltam estratégias consistentes de educação, inclusão e justiça social.
Contrariar este discurso exige uma resposta integrada. As autarquias, pela sua proximidade às comunidades, devem assumir um papel activo na promoção da convivência intercultural, no reforço dos serviços de apoio às pessoas migrantes e no combate a práticas discriminatórias — tanto ao nível simbólico como institucional. A criação de programas locais de sensibilização, espaços participativos e políticas públicas pensadas a partir da diversidade concreta dos territórios são passos fundamentais nesse sentido.
Do mesmo modo, a escola pública desempenha um papel estrutural. Para além de ser um espaço de encontro e socialização entre pessoas de diferentes origens, é também um lugar de formação ética e cidadã. É essencial para combater estereótipos e cultivar uma consciência democrática assente no respeito por todas as pessoas.
Contudo, esta transformação discursiva e cultural não se esgota nas escolas ou nas comunidades locais. É igualmente urgente uma mediação ética e humanista do discurso político, especialmente no seio da Assembleia da República. Enquanto espaço privilegiado de construção de enquadramentos narrativos e legislativos, o parlamento influencia profundamente a forma como a sociedade compreende fenómenos como a migração, a diferença cultural ou o acesso à cidadania. Quando os discursos aí produzidos recorrem a representações discriminatórias ou desumanizantes, não só legitimam atitudes xenófobas, como moldam políticas públicas que excluem em vez de proteger.
Nesse sentido, é fundamental promover um padrão de análise eticamente informado no debate público e político. Esse padrão exige a consciencialização sobre os legados históricos de desigualdade, e o compromisso com a construção de uma sociedade baseada na justiça, na equidade e na pluralidade de vozes e actores. As organizações da sociedade civil, os colectivos locais e os movimentos de base desempenham aqui um papel insubstituível, ao trabalhar estes temas de forma crítica, situada e próxima das realidades vividas.
Uma das personagens retratadas no relatório é a Margarida, mulher qualificada, experiente, mas vítima de desigualdade salarial e discriminação estrutural no local de trabalho. Apesar dos avanços legais, por que razão continua a ser tão difícil traduzir a igualdade formal em igualdade real nas empresas e organizações?
Apesar dos avanços legais, a igualdade formal continua difícil de concretizar devido à persistência de estereótipos de género, práticas discriminatórias informais e à falta de fiscalização efectiva. Muitas empresas mantêm culturas organizacionais que favorecem modelos masculinos de liderança e penalizam, de forma invisível, as mulheres — mesmo quando estas são altamente qualificadas. A ausência de mecanismos internos de promoção da igualdade, aliada ao receio de represálias, dificulta a apresentação de denúncias. Sem mudanças estruturais e um compromisso institucional efectivo por parte das empresas, a legislação, por si só, não é suficiente para garantir a igualdade real.
De acordo com o Barómetro das Diferenças Remuneratórias entre Mulheres e Homens 2024, os dados mais recentes reforçam uma realidade paradoxal no mercado de trabalho português: quanto mais qualificadas são as mulheres, maior tende a ser a diferença salarial em relação aos homens. Em 2022, as mulheres com ensino superior ganhavam, em média, menos 641,31€ por mês do que os homens com a mesma qualificação e a desempenhar as mesmas funções — o que representa uma diferença salarial de 26,5%. Já entre pessoas com apenas o ensino básico, essa diferença era de 137,43€ (15%).
O padrão repete-se entre os quadros superiores, onde as mulheres auferem, em média, menos 754,08€ por mês do que os homens, o que reflecte um desfasamento de 25,4%. Estes dados evidenciam que a valorização do trabalho realizado por mulheres continua comprometida, mesmo quando o seu nível de formação é elevado.
Apesar de se registarem desenvolvimentos positivos no reconhecimento do princípio de “trabalho igual, salário igual”, persiste o desafio de garantir salário igual para trabalho de valor igual. Ou seja, determinadas funções com predominância de mão-de-obra feminina continuam a ser sistematicamente subvalorizadas.
Para além disso, persistem desigualdades nas oportunidades. A precariedade laboral é mais elevada entre as mulheres (16,3%, face a 15,8% nos homens), sendo particularmente agravada no caso das trabalhadoras estrangeiras, cuja taxa de emprego precário atinge os 34,5%, subindo para 36,9% entre aquelas provenientes de países fora da UE27.
O relatório denuncia também que muitas pessoas com deficiência enfrentam exclusão activa no acesso ao emprego, à habitação ou mesmo à participação cívica, apesar de existirem leis e planos nacionais para a inclusão. O que falha na aplicação dessas políticas — e que tipo de mudança estrutural é necessária para garantir uma vida digna a estas pessoas?
Considera-se que há a necessidade real de uma mudança que reconheça estas pessoas — incluindo aquelas com deficiência intelectual, — como homens e mulheres de direitos, com sonhos, expectativas e ambições legítimas. A inclusão começa com a visibilidade e exige oportunidades reais de participação, autonomia, desenvolvimento pessoal e profissional, numa abordagem centrada na pessoa e orientada pela dignidade.
Uma das principais limitações reside na falta de transversalidade das políticas públicas. A deficiência é ainda, frequentemente, encarada como uma questão sectorial — remetida para áreas como a saúde ou a acção social — em vez de ser integrada de forma sistemática em todas as dimensões da governação. Esta visão limitada perpetua barreiras físicas, institucionais e culturais, e reproduz modelos assistencialistas, em detrimento de uma abordagem baseada em direitos.
Esta transformação requer a capacitação de agentes, nas escolas, serviços públicos, autarquias, sociedade civil, e o reconhecimento de que a verdadeira inclusão é um compromisso contínuo, reflectido nas relações humanas e no espaço social, físico ou digital.
Importa ainda abrir espaço para um debate qualificado sobre desafios emergentes, como o envelhecimento das pessoas com deficiência, o impacto da demência e os casos de diagnóstico duplo, que exigem respostas mais integradas, éticas e centradas na pessoa.
Este relatório é assumido como um projeto-piloto. Que novos temas pretendem incluir numa próxima edição, e que impacto esperam gerar a médio prazo no debate público e político?
Sendo este um projeto-piloto, a definição dos temas a abordar em próximos relatórios será alvo de uma reflexão estratégica a ser construída de forma colectiva, entre a Direcção e as organizações membro da PDH.
O vosso relatório sublinha que há uma distância crítica entre os compromissos legais assumidos por Portugal e a realidade vivida por milhares de pessoas. Qual é, para a PDH, a mensagem mais urgente deste diagnóstico?
Ao longo dos últimos 50 anos, Portugal registou avanços assinaláveis na consolidação do Estado de direito democrático e na promoção da dignidade humana. De forma geral, a qualidade de vida da população melhorou, fruto de políticas públicas, conquistas sociais e do reforço do quadro legal em matéria de direitos humanos. No entanto, este relatório sublinha que há ainda um caminho importante a percorrer. Existem direitos consagrados na lei que ainda não são usufruídos de forma plena e sistemática no quotidiano de milhares de pessoas, sobretudo daquelas em situação de maior vulnerabilidade. Persistem desigualdades, discriminações e exclusões que não resultam de falhas pontuais, mas de fragilidades estruturais nas políticas públicas e nas instituições.
Esta distância crítica entre os compromissos assumidos e a realidade vivida devem ser conhecidos com rigor para que se possa actuar sobre eles. Uma mensagem urgente que queremos deixar diz respeito à actual escassez de dados desagregados, à ausência de indicadores interseccionais e à falta de sistemas de monitorização estatística comparada, que permitam acompanhar, avaliar e corrigir os desvios no cumprimento dos direitos humanos.
Para a PDH, não basta ter um quadro jurídico avançado. Por isso, afirmamos que a invisibilidade estatística perpetua a injustiça. Como sabemos, não se transforma o que não se conhece. Por isso, é necessário conhecer os dados com transparência e responsabilização. Este relatório é um apelo claro à acção: que os direitos humanos sejam entendidos não como meros princípios formais, mas como compromissos concretos de política pública e de transformação social, assumidos por todas e todos.
Quem é Inês Sousa
Coordenadora Executiva | Plataforma de Direitos Humanos em Portugal; Professora Auxiliar Convidada | Universidade de Coimbra; Doutorada em Política Internacional e Resolução de Conflitos pela Universidade de Coimbra; Mestre em Análise de Conflitos Internacionais pela Universidade de Kent, Reino Unido:; Licenciada em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra
Editora Executiva