O trabalho é antropopoiético, isto é, criador de humanidade. É o único que se conhece em termos mundanos, patente a crentes e não-crentes. Para os crentes, o trabalho não é castigo algum, mas a possibilidade de que o ser humano dispõe, por dom de Deus, para se auto-com-criar com Deus, a partir do acto criador incoativo de Deus para com ele
POR AMÉRICO PEREIRA
Em sentido físico, nada do que constitui o mundo se pode mover sem que se produza trabalho, que se mede pelo produto da força usada pelo deslocamento e pelo cosseno do ângulo entre os dois vectores em que matematicamente se consubstanciam tais forças. Não é, assim, possível «pôr a mesa», «pôr comida na mesa», servir uma qualquer refeição sem trabalho. Pode pensar-se, num mundo em que apenas haja trabalho objectivo, que todo o custo, todos os custos de servir tal refeição coincidam apenas com o trabalho que tal realizou. Para isso, os bens teriam de ser apenas simples bens e não serem representáveis por símbolos como o dinheiro, isto é, a realidade – também material – das coisas ser apenas o que é, sem valor – que lhes é exógeno – atribuído.
Uma tal refeição «daria trabalho», teria como custo tal trabalho, mas poderia ser «de graça». Em termos cristãos, pense-se no alto simbolismo da condição criatural incoativa, em que tudo o que a criatura é e todo o bem que possui são dom absolutamente gratuito de Deus. Pense-se, ainda em tal âmbito, o que significa de gratuidade, não de trabalho ou de valor, o que foi o dom absolutamente gratuito da «última ceia». Puro dom, sem qualquer comércio, sem pedir algo em troca. Aliás, assim toda a vida de Cristo. Pura graça, pura gratuidade; todavia, muito trabalho.
O trabalho não é castigo algum ou fruto de castigo, mas, como se pode depreender da condição laborante de Cristo – a que castigo corresponde tal condição laborante? –, é possibilidade de criação de bem, na forma de bens – de que os serviços são parte – necessários para que a vida do laborante e de esses que também de si dependem possa existir.
O trabalho, como acção prática e pragmática humana, é mediação para a auto-construção de cada pessoa e do mundo humano, tem, deste modo, uma dimensão ética e uma dimensão política, com repercussões antropológicas. A dimensão ética do trabalho corresponde à contínua tomada de decisão que trabalhar implica, começando pela decisão de iniciar a actividade laboral, sem a qual não há trabalho algum; tomada esta decisão, o decurso do trabalho só é possível através de uma permanente tomada de decisões, minuciosas, sem o que imediatamente se cessa a actividade laboral (ou qualquer outra, pois qualquer actividade depende sempre desta minuciosa contínua tomada de decisão).
Política, pois, a menos que se embarque em abstracções que tipificam o ser humano como mero indivíduo, isto é, como isolado, sem qualquer relação, toda a actividade humana supõe relação quer a montante quer a jusante de qualquer acto praticado por um ser humano: ninguém é autor de si próprio, por exemplo, a primeira grande relação política é a filiação biológica; ninguém age num mundo em que viva só, pelo que qualquer sua acção pode ter repercussão sobre outro ou outros seres humanos. Assim com o trabalho.
Pode mesmo dizer-se que é através do trabalho, em suas variadas formas, que se constitui a dimensão política humana, a cidade. Sem trabalho, não há cidade; sem trabalho, não há humanidade, pois cidade e humanidade são sinónimos: a cidade é a relação entre pessoas, independentemente do número destas. Toda a relação construtora, constituinte, da cidade implica trabalho. A cidade é, assim, a conjugação dos actos de trabalho de quem a constitui. Um aglomerado de pessoas totalmente hirtas e sem qualquer movimento – leia-se sem qualquer relação – não é uma cidade. A cidade é o acto de relação entre as pessoas, acto de actos feito, actos através dos quais se constitui isso que acompanha a relação, dela resultante, como, por exemplo, o abrigo, o mercado em seu sentido mais básico e puro, tudo o que é fruto do labor humano em humana relação.
A repercussão antropológica do trabalho consiste precisamente na construção do humano, entendido quer como pessoal quer como comunitário, ou pelo menos, tendencialmente comunitário. Cada ser humano, ao trabalhar, não se realiza apenas num sentido psicológico ou social, mas em sentido ético, como acto fontal de sua própria acção; mas em sentido político, como acto, consequente à iniciativa ética de agir, de construção da cidade. O trabalho é antropopoiético, isto é, criador de humanidade. É o único que se conhece em termos mundanos, patente a crentes e não-crentes. Para os crentes, o trabalho não é castigo algum, mas a possibilidade de que o ser humano dispõe, por dom de Deus, para se auto-com-criar com Deus, a partir do acto criador incoativo de Deus para com ele.
Para o não-crente, o trabalho coincide, por sobre o dom natural – que substitui o dom divino –, com a única hipótese de auto-construção, isto é, de total antropopoiese. Sem Deus, para o não-crente, o trabalho é tudo o que há para construir o ser humano e para poder construí-lo de forma o mais autónoma possível.
Recusar trabalhar, é recusar tal possibilidade de auto-antropopoiese, é aniquilar em si a possibilidade de se criar a si próprio como ser humano, como pessoa.
Sendo assim, quem, podendo trabalhar, não quer trabalhar, não só se transforma em algo como um ‘sujeito da passiva’ em termos éticos e políticos, como, na realidade, aniquila em si a única mediação para a sua liberdade, para ser senhor de seu próprio movimento. Põe-se voluntariamente no paradigma dos seres humanos que, por necessidade natural ou política, não podem trabalhar. Alguns desses seres humanos, ainda que o desejem, não podem trabalhar. Pense-se, por exemplo, num tetraplégico que deseje trabalhar. Ainda assim, e no limite, é possível encontrar um modo de o ajudar a trabalhar. O ponto decisivo não é o auxílio quando possível, mas o desejar e querer trabalhar.
Compreende-se, então, o que S. Paulo significa com a terrível frase que titula este texto: «quem não quer trabalhar, também não deve comer». Quem tal quer, necessitando de tudo para poder viver e nada fazendo por tal, converte-se imediatamente num parasita político – via parasitismo económico – dos outros. Tal situação, porque voluntária – ética, por decisão própria –, em nada diz respeito à situação dos que não podem trabalhar, seja por que razão seja. Não poder trabalhar é algo de imposto à pessoa; não querer trabalhar é algo escolhido pela pessoa.
Esta dicotomia, claríssima, cria uma situação dramática, com consequências com fácil evolução para tragédia. Se ao que sofre a impossibilidade de trabalhar faz sentido que, ética e politicamente, os seus humanamente semelhantes lhe prestem auxílio, isto é, segundo o aforismo de Paulo, lhe facilitem que coma sem trabalhar, que fazer com os que se recusam a trabalhar?
O passo para a tragédia possível é evidente, sendo que, mais cedo ou mais tarde, a sua recusa em contribuir para o bem comum – que é o que não querer trabalhar significa, em primeira e última instância – terá como consequência o impedimento de comer.
Num mundo em que os milagres como coisa excecional são raros – não é raro, pelo contrário, o milagre do amor, mas este dá trabalho –, em que não há magia, em que «pôr pão na mesa» dá trabalho, que fazer com quem se recusa a trabalhar? É claro que a violência – que não é resposta certa para coisa alguma – é sempre a tentação imediata. Todavia, falhando a persuasão, único meio não-violento utilizável, e mantendo-se a recusa, que fazer?
Como evitar ou como lutar contra a tentação parasítica presente na humanidade, que é sempre berço das tiranias?
Américo Pereira
Coordenador da Área Científica de Filosofia da FCH (UCP), de 2103 a 2015. Membro investigador e vogal da Direcção do Centro de Filosofia (CEFi) da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa).