Ter trabalho não significa escapar às malhas da pobreza. Ter trabalho não significa fazer parte da economia formal. Ter trabalho não significa estar socialmente protegido. E os ligeiros progressos em termos de indicadores laborais agora divulgados pela OIT num relatório extenso e abrangente só comprovam o que já se esperava: promover o crescimento económico inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho digno para todos – um dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável – está cada vez mais longe de se assumir como uma realidade
POR
HELENA OLIVEIRA

“Estima-se que nos finais de 2018 a população mundial tenha atingido os 7,6 mil milhões de pessoas. E melhorar o bem-estar de todas estas pessoas deverá estar no topo de qualquer agenda política, sendo que atingir as metas propostas nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável consiste numa parte importante dos esforços dos decisores políticos a esse respeito”.

É assim que a Organização internacional do Trabalho (OIT) dá início ao seu relatório “Perspectivas Sociais e do Emprego no Mundo”, no qual detalha as mais recentes tendências em termos de indicadores do mercado laboral relevantes para a prosperidade e bem-estar humanos. Na medida em que os mercados laborais são absolutamente cruciais para se alcançar os ODS e o desenvolvimento centrado nas pessoas, pois o trabalho pago consiste na principal fonte de rendimento para a esmagadora maioria dos agregados de todo o mundo, o presente relatório dá igualmente conta dos progressos ou retrocessos relacionados com o Objectivo 8: “promover o crescimento económico inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho digno para todos “.

Como contextualiza o relatório, em 2018, a população global em idade activa – que inclui mulheres e homens com 15 ou mais anos – era de 5,5 mil milhões. Destes, 3,3 mil milhões, ou 58,4%, estavam empregados, com 172 milhões a não o estarem. Ambos os grupos, e se considerados em conjunto, constituem a actual força laboral global, com os remanescentes 2,2 mil milhões de pessoas (38,6%) em idade activa a manterem-se fora do mercado, incluindo os que estão a estudar, os que estão em situação de trabalho não remunerado (trabalho doméstico e cuidados com outros) e os que já estão na reforma. E, dentro deste grupo, 140 milhões encontravam-se na “força laboral potencial”, ou seja, são aqueles que estão à procura de trabalho mas não em condições de o retomar ou os que estão disponíveis para trabalhar mas não estão à procura de o fzer.

Dentro deste enquadramento geral realizado pelo relatório da OIT, são várias e preocupantes as questões relativamente ao estado do mundo laboral no fim da segunda década do século XXI. E é sobre os seus principais indicadores que versa este artigo.

Ter emprego não é garantia de uma vida decente e digna

Apesar de o trabalho pago constituir o maior impulsionador para o bem-estar, para a segurança económica, para a igualdade de oportunidades e para o desenvolvimento humano, muito caminho há ainda para calcorrear para uma significativa maioria dos trabalhadores em todo o mundo. Estar empregado nem sempre garante uma vida decente. De acordo com a OlT, uma proporção considerável da população activa global está em risco de pobreza, sendo que o emprego nestes casos apenas se traduz numa situação em que os indivíduos tentam suprir as suas mais básicas necessidades em conjunto com as das suas famílias. Na verdade, muitos trabalhadores vêem-se obrigados a aceitar empregos vulneráveis, em particular na economia informal, a qual está particularmente associada a salários baixos e à escassez ou total ausência de protecção social ou direitos laborais. Cerca de 360 milhões de pessoas – ou 11% da população empregada – são trabalhadores que contribuem monetariamente para os seus agregados mas que não gozam de acesso a protecção social nem de segurança nos rendimentos e cujo estatuto de emprego é categorizado, por definição, como informal.

Adicionalmente, 1,1 mil milhões de pessoas – ou 34% da população em idade activa – trabalha por conta própria. Apesar de o “trabalho por conta própria” parecer, nos dias que correm, como o equivalente ao tão falado e elogiado empreendedorismo, a verdade é que uma substancial proporção deste tipo de trabalho está relacionado com actividades de subsistência as quais são perseguidas devido à ausência de oportunidades no sector formal ou da inexistência de protecção por parte do sistema social: é que e na verdade, 85% destes trabalhadores “por conta própria” operam na economia informal. Por último, apenas pouco mais de metade (52%) dos trabalhadores globais recebe um salário e tem algum tipo de protecção laboral. E, apesar deste tipo de trabalho estar associado a melhores condições de trabalho e a uma maior segurança em termos de rendimento, tal não se afigura como uma verdade em muitos locais do mundo, o que é demonstrado pelo facto de 40% desses mesmos trabalhos serem informais. No geral, é chocante verificar que cerca de dois mil milhões de trabalhadores estão posicionados no emprego informal, o que acontece em três em cada cinco casos (61%) da força laboral mundial, com 55% a não terem direito a qualquer benefício ou protecção social. A pobre qualidade de muitos empregos manifesta-se também no facto de, em 2018, mais de um quarto dos trabalhadores a viver em países de baixo e médio rendimento estarem a viver em condições de pobreza extrema ou moderada (ou com menos de 3,20 dólares por dia em termos de paridade de poder de compra).

Fosso de participação entre homens e mulheres no mercado laboral permanece alargado

A baixa taxa de participação de mulheres na força laboral, a qual se manteve nos 48% em 2018, comparativamente a 75% para os homens, significa que cerca de três em cada cinco pessoas que compõem os 3,5 mil milhões de indivíduos empregados a nível global são homens. Depois de um período de melhoria acelerada que teve lugar até 2003, os progressos subsequentes em estreitar este fosso permaneceram paralisados. A OIT alerta para a necessidade de acções políticas que alterem esta realidade, a qual regista um gapde 27 pontos percentuais entre a participação de ambos os sexos. Adicionalmente, as taxas de participação na força laboral por parte de adultos têm vindo a declinar nos últimos 25 anos, sendo este declínio ainda mais pronunciado entre os jovens entre os 15 e os 24 anos, constituindo esta uma tendência que, de acordo com as estimativas, não sofrerá alterações no futuro. Alguns dos motivos que explicam o fenómeno – tais como um maior número de matriculados no ensino, melhores oportunidades para o período de reforma e uma esperança de vida mais elevada – são, e obviamente, positivos. Todavia, o aumento visível da taxa de dependência– ou seja, a proporção de pessoas economicamente inactivas face às activas – oferece novos desafios em termos de organização do trabalho e de distribuição dos recursos na sociedade. O primeiro e mais importante, diz a OIT, está relacionado com o facto de os sistemas de pensões existentes terem de ser “esticados” numa tentativa de manter os mais velhos fora da pobreza: o segundo dá conta que o aumento do rácio de dependência aumenta a procura de mão-de-obra em sectores como o dos cuidados de saúde, acelerando transformações estruturais. E o último está relacionado com o envelhecimento da força laboral, a qual pode não ter capacidade para acompanhar o ritmo da inovação e das mudanças estruturais que estão a ocorrer no mercado laboral.

Em termos regionais, os cenários são, todavia, diferentes, como o fosso entre os dois géneros a fechar mais rapidamente nas regiões mais desenvolvidas: ou seja, a taxa de participação das mulheres nos países de rendimentos elevados aumentou 3.5 pontos percentuais entre 1993 e 2018, ao mesmo tempo que a participação masculina acusou um declínio da mesma dimensão para o mesmo período. Em suma e em 2018, o fosso deste indicador nos países desenvolvidos diminuiu para os 15 pontos percentuais, esperando-se que este estreitamento se venha a reduzir ainda mais nos próximos cinco anos.

Importa não esquecer que este fosso entre géneros no mercado laboral tem origem num conjunto variado de factores inter-relacionados, incluindo as normas sociais, os papéis atribuídos a cada género em conjunto com os constrangimentos socioeconómicos profundamente enraizados em muitas sociedades.

Taxa de desemprego global diminuiu, mas 170 milhões continuam sem trabalho

As estimativas da OIT apontam para que em finais de 2018 existiam 172 milhões de pessoas desempregadas em todo o mundo, o que corresponde a uma taxa de desemprego de 5%. O relatório chama a atenção para o facto de ter bastado apenas um ano para que a taxa de desemprego global tivesse aumentado de 5,0% em 2008 para 5,6% em 2009, enquanto foram necessários nove anos para que os mesmos tivessem voltado aos valores anteriores à crise económica global, com o relatório a sublinhar também a incerteza que rodeia o cenário actual. Se assumirmos a manutenção da estabilidade das condições económicas, existem esperanças que a mesma possa vir a sofrer um declínio maior. Todavia, os riscos macroeconómicos estão também a aumentar, com impactos negativos no mercado laboral já visíveis num conjunto de países. Mesmo assim, as estimativas apontam para que esta percentagem actual se mantenha similar durante 2019 e 2020, apesar de se prever também um aumento em cerca de um milhão de pessoas por ano em situação de desemprego por via da expansão da força laboral (174 milhões de desempregados em 2020).

Desafios do mercado laboral variam entre países e regiões

Apesar dos desafios inerentes ao mercado laboral relacionados com a qualidade do trabalho, com o desemprego e com a desigualdade entre géneros serem universais, o seu carácter específico e o grau de prioridade difere e é dependente do nível de desenvolvimento de cada país e região. Assim, nos países de baixo rendimento, e como já anteriormente citado, a esmagadora maioria das relações de trabalho nem sequer permite às pessoas escapar da pobreza.E se é verdade que a pobreza relacionada com o trabalho geralmente acusa um decréscimo com o desenvolvimento económico, outros progressos inerentes ao mercado laboral, como a formalidade, o acesso a sistemas de segurança social, segurança no trabalho, sistemas de negociação colectiva e conformidade com os padrões e direitos laborais são ainda uma miragem, em graus variados, para muitos países. Complementarmente, alguns novos modelos de negócio, na sua grande maioria tornados possíveis devido a tecnologias inovadoras, ameaçam igualmente os poucos ganhos alcançados nestas áreas.

Mais favorável é a notícia que dá conta da queda considerável das taxas de desemprego nos países de elevado rendimento ao longo dos últimos anos. Todavia, o mesmo não tem acontecido, pelo contrário, nos países que pertencem ao grupo superior dos países de rendimento médio, em virtude do abrandamento económico, o que mais uma vez coloca uma quota alargada da força laboral em risco reforçado de pobreza. Por último e como seria de esperar, a desigualdade de género no mercado laboral, e enquanto fenómeno universal, é muito mais acentuada nos Estados Árabes, e nas sub-regiões do norte de África e no sul da Ásia.

700 milhões de trabalhadores vivem em pobreza extrema ou moderada

Em 2018, uma em cada quatro pessoas em situação de emprego, ou 700 milhões de pessoas, viviam em pobreza extrema ou moderada em países de baixou ou médio rendimento. Todavia, o relatório sublinha igualmente os enormes progressos atingidos desde 1993, altura em que dois em cada três trabalhadores (num conjunto de 1,3 mil milhões de trabalhadores) viviam nestas mesmas condições. E se é esperado um progresso contínuo nesta matéria para os próximos anos – com o número de trabalhadores pobres a diminuir em 55 milhões até 2023, é de salientar que a taxa de declínio está a diminuir muito gradualmente.

O problema é ainda mais complexo e severo na faixa dos trabalhadores entre os 15 e 24 anos, em que mais de um em cada três jovens se encontra nesta mesma situação de pobreza extrema ou moderada, sem esquecer que a pressão sobre a população mais jovem para trabalhar em vez de continuar a sua educação ser muito mais vincada no interior dos agregados que sofrem essa mesma pobreza.

© DR UNDP.org

Objectivo 8 mais longe de ser alcançado

Para atingir ocrescimento económico inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho digno para todos – o número 8 dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável -, e de acordo com os resultados do relatório global da OIT, serão necessários esforços muito substanciais por parte da comunidade internacional. Ou e na verdade, são cada vez menores as probabilidades de o conseguir alcançar.

Em primeiro lugar, os países menos desenvolvidos têm apresentado um crescimento do PIB anual inferior a cinco por cento ao longo dos últimos cinco anos, o que contraria a necessidade identificada de estes terem de crescer pelo menos sete por cento o ano para “lá chegar”. Adicionalmente, as taxas recentes de crescimento do PIB per capita e da produtividade laboral estão igualmente abaixo dos níveis reportados em décadas passadas na maior parte do mundo.

Na medida em que o desenvolvimento sustentável deveria ser atingido através da promoção de actividades produtivas, da inovação e da formalização, em simultâneo com a optimização da eficiência dos recursos tanto em termos de produção como de consumo, os dados apresentados pelo relatório espelham os ainda pouco significativos progressos relativamente a estas metas. O facto de na maioria dos países mais de metade da força laboral “extra-agrícola” ser informal confere uma boa ideia, como refere a OIT, de quão longa é ainda a distância a percorrer até que a economia global se torne completamente formalizada.

Assim, o objectivo de se atingir “o emprego pleno e produtivo e o trabalho digno para todos” em conjunto com “salário igual para trabalho de valor igual” permanece crescentemente inatingível. Como já anteriormente mencionado e apesar da taxa de desemprego global ter diminuído, é preciso não esquecer que existem ainda mais de 170 milhões de pessoas que continuam sem trabalho. Mais precisamente, mulheres, jovens (15-24 anos) e pessoas com necessidades especiais continuam a bater recordes de “improbabilidade de virem a ter um emprego”. Igualmente preocupante é o facto de mais de um em cada cinco jovens não estar nem a trabalhar, nem a estudar nem envolvido em qualquer actividade de formação (os NEET): na medida em que estes indivíduos não estão a ganhar competências que são valorizadas no mercado laboral, esta situação reduz obviamente as suas futuras possibilidades de arranjarem um emprego. A longo prazo, uma taxa elevada de NEET irá contribuir para que seja cada vez mais difícil a economia melhorar durante um período sustentado no tempo. A taxa global de NEET diminuiu apenas dois pontos percentuais entre 2005 e 2018, o que significa também que o objectivo de reduzir substancialmente as taxas de NEET até 2020 será outra meta a não ser atingida. Por último e visto que a maioria dos países não consegue reduzir o fosso salarial existente entre géneros – o qual se posiciona entre os 10% e os 25% – também a meta de se chegar a uma remuneração igualitária pelo mesmo tipo de trabalho, independentemente de quem o faz, não será alcançada.

O mesmo acontece com outras metas que estão contidas dentro do Objectivo 8, de que são exemplo os direitos e protecções fundamentais que todos deveriam gozar no mundo do trabalho. Em 2016, refere o relatório, existiam ainda 114 milhões de crianças – entre os 5 e os 14 anos – a trabalhare, apesar de o número estar a decrescer, o declínio está a ser demasiado lento e insignificante para alcançar a meta de se acabar com todas as formas de trabalho infantil até 2025.

No que respeita à saúde e segurança ocupacional, continuam a existir muitas variações entre os diferentes países no que respeita às taxas de acidentes de trabalho fatais e não fatais. O relatório sublinha também que a taxa de doenças profissionais continua a ser mais elevada entre os homens comparativamente às mulheres e que, na maioria dos países, os migrantes são os que continuam a sofrer maior risco de as “contrair” face aos não-migrantes.

Editora Executiva