A edição do de Relatório Anual dos Serviços de Água e Resíduos em Portugal (RASARP) relativamente ao ano de 2022, apresenta-nos uma vasta, densa e complexa avaliação do setor. Contudo irei focar os quatro indicadores que, do meu ponto de vista, melhor definem a insustentabilidade do setor para algo tão importante, para o futuro do território, como são as capacidades mitigadoras e de resiliência às alterações climáticas ou a robustez técnico-económica do setor para enfrentar essas mesmas alterações do clima. Falo obviamente da eficiência hídrica e da eficiência de gestão do setor respetivamente
POR PAULO CHAVEIRO

Para quem não está familiarizado com estas terminologias, RASARP é o acrónimo de Relatório Anual dos Serviços de Água e Resíduos em Portugal que é, nada mais, nada menos, um estudo avaliativo à qualidade dos serviços de água, saneamento básico e resíduos de todo o continente, efetuando uma excelente caraterização do setor e um benchmarking bastante fiável entre entidades gestoras. 

A entidade responsável por este relatório é a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) que produz anualmente este estudo, o qual analisa indicadores preestabelecidos para os Serviços de Águas, Saneamento Básico e Resíduos relativos ao ano anterior, editado, e que descreve a evolução anual de cada entidade gestora. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma agenda política, adotada por todos os estados membros das Nações Unidas em 2015, que define as prioridades e aspirações de desenvolvimento sustentável global para 2030 numa tentativa de mobilizar esforços globais à volta de 17 objetivos conjuntos com metas comuns. Entre os 17 objetivos está o objetivo 6 – Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos e para o presente artigo abordamos mais concretamente o indicador 6.4.1 – alteração da eficiência no uso da água.

Este artigo irá somente basear-se nos dados relativos aos serviços de abastecimento de água do RASARP 2022, nomeadamente o volume 1, que foi apresentado ao país no passado dia 10 de fevereiro de 2023. Com o relatório de 2022, a ERSAR encerra a 3ª geração dos sistemas de avaliação da qualidade dos serviços de águas e resíduos prestados em Portugal pelas atuais 354 entidades. Na próxima edição, de 2023, já entrará em ação a 4 ª geração de indicadores, que colocará na equação avaliativa a circularidade e a valorização.

O setor das Águas e Resíduos é para os leigos, ou para os menos atentos, uma parafernália de dados, definições e indicadores que na maior parte das vezes dificilmente consegue transmitir para o exterior a informação verdadeiramente importante de um modo totalmente esclarecedor. 

Arrisco mesmo a dizer que, por vezes, nós, os intervenientes no setor, fazemos questão de deixar todos mais confusos pela maneira pouco correta ou pouco exata com que “exalamos” opinião ou transmitimos a informação. Assim e para que todos saibamos do que falamos é importante esclarecer, logo à partida, que existem dois tipos de entidades gestoras: em Alta e em Baixa. Em Alta, temos as entidades que tradicionalmente captam, tratam e transportam/ vendem a água para as entidades em baixa, como por exemplo as empresas do grupo Águas de Portugal. Em baixa temos as entidades que distribuem a água pelas populações até às nossas casas, como por exemplo os municípios, as empresas municipalizadas ou empresas privadas a quem o serviço foi concessionado. Em alguns casos, como por exemplo a EPAL ou noutra escala o Município de Estremoz, a entidade gestora pode ter as duas componentes (alta e baixa), ou seja, gere o ciclo desde a captação até a distribuição de água nas nossas casas.

Centrando-nos novamente no RASARP, a edição de 2022 apresenta-nos uma vasta, densa e complexa avaliação do setor. Contudo irei focar os quatro indicadores que, do meu ponto de vista, melhor definem a insustentabilidade do setor para algo tão importante, para o futuro do território, como são as capacidades mitigadoras e de resiliência às alterações climáticas ou a robustez técnico-económica do setor para enfrentar essas mesmas alterações do clima. Falo obviamente da eficiência hídrica e da eficiência de gestão do setor respetivamente. Os indicadores, sobre os quais incidirá este artigo são: as perdas reais de água, a água não faturada, a reabilitação de condutas e a recuperação de custos.

Relativamente ao indicador infraestrutural (com óbvia vertente económica) Perdas Reais de Água, ou seja, aquela água que efetivamente se perde nas condutas de distribuição de água, nos instrumentos manobra e nos reservatórios, os dados são claros: PERDE-SE UMA IMENSIDÃO DE ÁGUA! Apesar de o valor médio do indicador mostrar uma evolução favorável entre 2017 e 2020 com inversão em 2021, para o serviço em alta e em baixa, perde-se em Portugal Continental, num ano, 197 Milhões de metros cúbico de água, praticamente o mesmo volume de água que comporta a Albufeira do Maranhão, na bacia hidrográfica do Tejo!

 Os maiores contributos ocorrem onde a densidade de ramais é igual ou superior a 20 por quilómetros de rede (os aglomerados urbanos de média e alta densidade) com 169 Milhões de metros cúbicos de água, os restantes 28 Milhões de metros cúbicos perdem-se no serviço em alta, com 23 Milhões de metros cúbicos e, nos aglomerados de baixa densidade, com 8 Milhões de metros cúbicos. A média nacional de perda real de água, por entidade gestora, é de 128 litros por ramal-dia, um valor elevado. 

Contudo, conseguimos ver demasiadas entidades, mais de metade, com perdas bastante acima desse valor, como por exemplo, entidades gestoras com perdas reais de 1258, 418 e 417 litros por ramal-dia como são o caso da InfraTróia, do SIMAR Loures e Odivelas e da Câmara Municipal de São Brás de Alportel respetivamente (não deveriam ser superiores a 80 – 90 litros por ramal/dia). Um indicador de país subdesenvolvido é verificar que ainda existem entidades gestoras que omitem/ não reportam este dado como, por exemplo, as Câmaras Municipais de Constância, Monchique, Vinhais ou Paredes, entre outras entidades. Inaceitável! Como é que podemos gerir algo que não conhecemos? Expliquem-me, que não alcanço.

No que diz respeito ao indicador Água Não Faturada o cenário também é pouco animador. Contudo, vejo-me obrigado a fazer um pequeno ponto prévio. Vejo demasiadas vezes ser utilizado este indicador económico como indicador de perdas de água, até pela própria entidade reguladora, alguns profissionais do setor ou até algumas das maiores entidades gestoras. Como podemos querer medir perdas de água com o que não faturamos? E a Água Não Faturada Autorizada, o que lhe fazemos? Esta água é medida mas, amiúde, são autoconsumos ou até mesmo situações negociadas entre as entidades gestoras e, por exemplo, freguesias, industrias relevantes nos concelhos, ou águas de serviços e de resposta a emergências, como o caso dos autotanques dos bombeiros.

 Então um Município não pode ter a autonomia de não contabilizar na água faturada os seus autoconsumos? Então penalizamos socialmente uma entidade só por ter autonomia de escolha e não por gerir ineficientemente aquela água que distribui? É com algum constrangimento que vejo criado um “lobby” à volta deste indicador dando-lhe uma visibilidade na comunicação social indevida e até confundindo propositadamente conceitos técnicos. Então dizemos que perdemos 1 metro cúbico de água, 1000 litros de água (volume) ou 1000 euros de água (medida económica)? 

O leitor claramente percebe a incongruência da coisa, sendo esta muito fácil de explicar. Percebemos todos que é muito mais fácil mudar atitudes ou atos de gestão através da força da opinião ou da exigência da população/ consumidores. Ora que melhor maneira de envolver TODOS ao apresentarmos uma ideia consubstanciada com valores impactantes. Digam-me pois: não é muito mais impactante dizer que perdemos por ano 267 Milhões (valor global de Água Não Faturada em Portugal Continental no ano de 2021), ao invés dos reais 197 Milhões de metros cúbicos de água? Na verdade ambos os valores são maus. Não pode valer tudo. Temos de ser factuais e exatos no que transmitimos, sob pena de, na opinião pública, haver o risco de se desacreditar o relatório e se passar a olhar com desconfiança para um setor que  já não  é muito bem visto.

Conforme referi anteriormente, em Portugal Continental, juntando o serviço em alta e em baixa, não se faturam 267 Milhões de metros cúbicos de água que entram no sistema. Desse total, 234 Milhões de metros cúbicos não são faturados pelas entidades gestoras em baixa. Referir também que cerca de 12% dos 267 Milhões refletem a expressão de Água Não Faturada Autorizada. Também aqui utilizarei uma analogia de grandeza, os 267 Milhões de metros cúbicos não faturados davam para encher 15 Albufeiras da Vigia, no distrito de Évora, ou 1,5 albufeiras como Odeleite no Algarve. O resultado deste indicador é aceitável? Não fosse este setor predominantemente público, quantas destas entidades gestoras estariam falidas? 80%, mais? A forma como gerimos este recurso tão escasso é revelador de muito, enquanto indivíduos, mas também enquanto coletivo. Onde está a exigência?

No que à Reabilitação de Condutas diz respeito, há muitos anos que está identificada a necessidade de se investir em cadastro, na otimização da gestão dos serviços e na reabilitação das infraestruturas (condutas de água), mas os dados apresentados agora pela ERSAR mostram que nada continua a ser  feito para melhorar. Na reabilitação de condutas vemos que tudo ainda está por fazer, e quer na alta quer na baixa a palavra reabilitar não entra na equação das entidades gestoras. 

No serviço em alta, 10 entidades reabilitam somente 0,2% ao ano as suas condutas quando deviam garantir, em média, 2 a 4%. No serviço em baixa, a média de reabilitação ao ano está em 0,6% quando deveria estar entre 0,8 e 1%. Neste parâmetro todas as entidades do serviço em alta têm o indicador no vermelho, ou seja, têm uma qualidade de serviço insatisfatória. No caso das entidades gestoras do serviço em baixa, das 267 entidades existentes 160 estão no vermelho. A este ritmo de renovação somente daqui a 500 anos, no serviço em alta, e daqui a 160 anos, no serviço em baixa, teremos todas as condutas renovadas. Fácil de concluir é que quanto menos condutas forem renovadas, maior será o volume de perdas de água, perdas de água inaceitáveis no atual contexto de alterações climáticas.

No que ao indicador Recuperação de Custos diz respeito, os dados dos serviços de águas parecem ser animadores com uma média de 110% de cobertura de gastos no serviço em alta e 107% de cobertura de gastos no serviço em baixa. Mas estes dados são um pouco enganadores, nomeadamente no serviço em baixa, e devem-se aos resultados obtidos pelas entidades gestoras de maior dimensão, ou seja, as entidades gestoras com o maior número de consumidores e maiores volumes de água transacionados. Ainda assim, 99 entidades gestoras apresentam neste indicador uma qualidade de serviço insatisfatório e 53 uma qualidade mediana.

Os resultados agora apresentados vêm demonstrar aquilo que muitos de nós, técnicos qualificados do setor, há muito constatamos: o atual modelo maioritário de gestão do serviço de água em Portugal está falido (modelo organizacional e de gestão)! O serviço de água e saneamento tem de ser alterado. Não podemos manter estes níveis inaceitáveis de renovação de infraestruturas e os consequentes elevados valores de perdas reais de água e de água não faturada. 

O país não suportará mais este tipo de resultados e a União Europeia não permitirá que se peçam mais fundos para dar resposta às situações climáticas extremas da seca, se em troca continuarmos a dar tanto de “nada”. O serviço prestado por este setor é exigente e tem de ser altamente qualificado com capacidade de resposta a várias dimensões, desde: i) a dispersão territorial dos aglomerados; ii) o diminuto número de consumidores face à extensão da rede de distribuição de água; iii) o envelhecimento das infraestruturas; iv) a qualidade da água; v) o reduzido número dos recursos humanos existentes dentro da maioria das entidades gestoras, entre outros. 

Parece-me só haver uma maneira plausível de podermos ter um bom setor, com entidades gestoras capazes: através do ganho de escala! Não interessa o modelo doutrinal se, através de concessões, de empresas inter ou multimunicipais, empresas público-privadas ou o que for (ideologias à parte). 

Não podemos é continuar neste modelo suicida da gestão municipal da sua “capelinha” através dos esforçados serviços municipais (com fracos orçamentos, diminutos recursos humanos operacionais e recursos técnicos qualificados quase inexistentes) que mesmo assim todos os dias produzem pequenos milagres. Somente escalando se conseguirá ser melhor.

Numa altura em que já sentimos os impactos diretos do aquecimento global e das alterações climáticas, que no caso português nos leva a maiores períodos com baixa precipitação, resultado direto da subida de latitude do anticiclone dos Açores e do anticiclone norte Africano, a Gestão Eficiente da Água é uma obrigação. 

Temos de ser mais exigentes e temos, enquanto país, de produzir maiores esforços nas verdadeiras medidas de mitigação às alterações climáticas e aqui o ODS 6 é fulcral, seja no setor urbano, agrícola ou industrial. Digam-me então: não são os resultados do RASARP um verdadeiro indicador do nosso comprometimento com as ODS? Exija-se por isso mais! 

Permitam-me ainda uma última consideração: o que escrevo baseia-se na minha experiência académica mas acima de tudo profissional, de mais de 12 anos no setor, enquanto responsável do serviço de águas e saneamento de um pequeno município que desde cedo me permitiu avançar com o conhecimento e gestão (cadastro, leituras de consumos, pressão) e colocar em prática metodologias que nos permitem ter bons resultados nas perdas reais de água e em sistemas informáticos de disponibilização de dados e informação real do sistema de abastecimento. Conheço bem os problemas do setor. E mais concretamente de mais de metade das entidades gestoras do interior do país, com todas as suas carências, e sei bem os entraves que o atual modelo organizacional provoca no dia-a-dia. Temos de conseguir dar o passo correto sem amarras ou dificilmente sairemos deste ciclo vicioso.

PAULO CHAVEIRO

Engenheiro de Recursos Hídricos, com mestrado em Ciclo Urbano da Água. Presidente da Comissão Especializada de Serviços de Água da Associação Portuguesa de Recursos Hídricos (APRH). Chefe de Gabinete da Presidência da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz e conselheiro da Região Hidrográfica do Alentejo