POR GABRIELA COSTA
“Vim porque acredito que as duas Coreias são apenas uma” – espectador dos Jogos Olímpicos de Inverno 2018
A modalidade de hóquei no gelo unificou as duas Coreias nos Jogos Olímpicos de Inverno, e pela primeira vez uma equipa inter-coreana compete no maior evento desportivo do mundo. Depois de a cidade de PyeongChang ter sido eleita pelo Comité Olímpico Internacional (COI) como anfitriã dos XXIII Jogos Olímpicos de Inverno, a Coreia do Sul – que realiza o evento pela segunda vez, depois da edição de Verão de Seul, em 1988 -, sugeriu a formação de uma equipa conjunta, como parte dos seus esforços em fazer de PyeongChang 2018 um pretexto para se reencontrar com o Norte e abrir caminho para negociações sobre o programa de armas do país vizinho.
Do lado da Coreia do Norte, sujeita a fortes sanções da ONU e dos Estados Unidos para pressionar o isolado país de partido único a abandonar o desenvolvimento de mísseis nucleares e balísticos, o líder Kim Jong-un afirmou, no discurso de Ano Novo, a sua disponibilidade para que uma delegação do país participasse nos Jogos organizados pela Coreia do Sul, meses depois de ter rejeitado esta hipótese. E, contra todas as expectativas, o evento está a decorrer sob a bandeira da Coreia unificada. Apesar de a cedência do mais jovem ditador do mundo se relacionar, previsivelmente, mais com objectivos estratégicos do que com o desejo de negociar a reconciliação entre os dois países ainda tecnicamente em guerra, já que o conflito de 1950-53 terminou numa trégua em vez de um tratado de paz, Kim Jong-un garante que não quer transformar a competição num cenário político.
Certo é que nestes que são os Jogos Olímpicos mais politizados desde a guerra fria, a Coreia do Norte está a passar ao mundo uma mensagem dúbia, tendo realizado um desfile 24 horas antes da cerimónia de abertura dos Jogos de PyeongChang para exibir mísseis intercontinentais na sua capital, Pyongyang (numa clara advertência ao poder que exerce a este nível), ao mesmo tempo que a delegação norte-coreana participava de iniciativas de solidariedade no condado do Sul.
Já a Coreia do Sul, apoiada pelos Estados Unidos, reafirma a sua vontade de se reencontrar com o Norte, algo que o aliado americano rejeita, insistindo para que Seul continue a fazer pressão diplomática e económica sobre o país vizinho, na sequência da retórica beligerante do presidente Donald Trump contra os sucessivos ensaios nucleares de Pyongyang, que elevaram a tensão para níveis inéditos desde o fim da Guerra da Coreia. A China, por sua vez, defende o regresso ao diálogo e propõe que Pyongyang suspenda o programa nuclear em troca do fim dos exercícios militares conjuntos entre Washington e Seul, os quais a Coreia do Norte considera um treino para uma invasão – isto, apesar de ser o principal aliado diplomático e maior parceiro comercial do regime norte-coreano.
Um Nobel para a diplomacia desportiva
O entusiasmo perante a possibilidade de o ideal olímpico de paz e cooperação entre os povos se concretizar durante os Jogos – e constituir uma fonte onde não só as duas Coreias mas também os EUA e a China possam ir beber entendimento, quer sobre o conflito coreano, quer sobre a ameaça nuclear – é tanto, que até já há quem proponha que a equipa unificada de hóquei no gelo da Coreia seja nomeada para o Nobel da Paz: Angela Ruggiero, membro americano do COI e quatro vezes campeã mundial de hóquei no gelo e medalha de ouro olímpica, sugeriu que a equipa feminina das Coreias deveria ganhar o Nobel da Paz, um dia depois do jogo contra a Suíça nos Jogos de Inverno, que a Coreia perdeu por 8 a 0, o que não impediu as claques de cheerleaders e os fãs coreanos (dos dois lados) de festejarem, conquistando a multidão. “Como alguém que competiu em quatro Olimpíadas e sabe que não é sobre mim, a minha equipa ou o meu país, eu vi o poder que foi realizado na noite passada”, disse Ruggiero.
O torneio decorreu no dia seguinte à cerimónia que marcou oficialmente, a 9 de Fevereiro, a abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno 2018, em PyeongChang, onde se celebrou a cultura coreana como um todo. Horas antes, a chama olímpica acendera a lua que encima o Estádio Olímpico do condado sul-coreano. Um espectáculo multimédia percorreu a história e a cultura do território a Sul do paralelo 38, com sentido de união, o que contrasta com a divisão pela zona desmilitarizada que domina aquela península desde 1953, data da assinatura de um armistício que determinou um cessar-fogo, em vez de um acordo de paz.
No final da passagem de 91 outras comitivas, e naquele que foi o momento mais aguardado da Abertura do evento, Norte e Sul surgiram unificados pela comitiva conjunta de atletas das duas metades da península coreana, debaixo de uma mesma bandeira branca com o mapa da península coreana desenhado a azul.
O desfile conjunto das delegações da Coreia do Sul e da Coreia do Norte não foi novidade – já acontecera em 2000 e em 2004, nas Olimpíadas de Verão de Sydney (Austrália) e de Atenas (Grécia), e em 2006, nos Jogos de Inverno de Turim (Itália), mas não deixou por isso, num momento em que o perigo paira constantemente sobre a região e a ameaça nuclear se intensifica apesar das sanções da ONU e das intimações de Trump a Kim Jong-un, de ser um momento simbólico da esperança que a diplomacia veio trazer sobre um entendimento benéfico para todo o mundo. Mesmo quando daquele lado do planeta chegam sinais contraditórios, como o facto de a Coreia do Sul ter alterado a grafia da cidade que acolhe o evento – Pyeongchang -, passando a escrevê-lo com a letra “c” do meio em maiúscula, para evitar confusões com a capital da Coreia do Norte (e transtornos aos visitantes); ou o sistema informático que serve a organização dos Jogos Olímpicos ter sido alvo de um ataque informático poucas horas antes de a cerimónia de abertura, deixando durante 12 horas o site oficial do evento em baixo (o que impossibilitou a compra e o levantamento de bilhetes), a rede de internet no Estádio Olímpico inacessível e as televisões do centro de imprensa paradas – um acontecimento que a organização não comenta, mas que, alegadamente, ter tido a mão de Moscovo, em vingança pelo facto de o comité olímpico russo ter sido penalizado depois do escândalo de doping dos jogos de Sochi, em 2014, o que obrigou os atletas do país de competir com uma bandeira neutra.
A operação de charme da “first sister” de Kim Jong-un
A delegação norte-coreana que visita o Sul integrou, durante três dias, a presença da irmã do dirigente norte-coreano Kim Jong-un, num gesto simbólico que chamou a atenção dos analistas internacionais, já que é a primeira vez que um membro da dinastia que lidera a Coreia do Norte visita a Coreia do Sul desde que terminou a Guerra da Coreia, em 1953. Kim Yo Jong já foi apelidada de a “Ivanka Trump da Coreia do Norte”, pelo Washington Post (como uma “first sister” de Kim contra a “first daughter” de Trump, numa analogia à forma como Donald Trump utiliza a filha Ivanka Trump na sua estratégia) e a CNN atribuiu-lhe uma “medalha de ouro” em “Dança diplomática”.
Tornando a sua presença nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 muito mediática, a irmã do mais jovem Chefe de Estado do mundo tem, como toda a sua família, muitos segredos. Não se sabe a sua idade exacta, a exemplo do que se passa com Kim Jong-un, mas supõem-se que terá cerca de 30 anos. Tendo estudado na Suíça, também como o irmão, está em ascensão no regime, particularmente desde Outubro de 2017, quando passou a fazer parte do órgão mais importante de tomada de decisão no Partido dos Trabalhadores da Coreia, mas já desde 2014, quando foi designada vice-presidente do departamento de propaganda do partido, aproveitando para lançar um fenómeno de culto da personalidade do irmão, representando-o como um líder acessível, a exemplo do seu avô, o fundador da Coreia do Norte, Kim Il-sung.
Para além de fazer a gestão da imagem pública do irmão, é considerada o cérebro por detrás do ditador da Coreia do Norte. Em PyeongChang montou uma verdadeira operação de charme, cujos momentos altos da diplomacia do regime norte-coreano foram o aperto de mão que deu ao presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, a mensagem histórica que escreveu no livro de visitas presidencial sul-coreano mas, e especialmente, a reunião que teve com Moon Jae-in, que foi o encontro de mais alto nível nos últimos dez anos entre funcionários dos dois regimes.
Nesse encontro, a representante da cúpula do país a Norte da península endereçou ao homólogo da Coreia do Sul um convite do líder norte-coreano para uma visita a Pyongyang num futuro próximo. À data de fecho desta edição, Moon ainda não havia enviado uma resposta a Kim Jong-un.
A delegação de alto nível encabeçada por Kim Yo Jong, que recebeu um tratamento de luxo em PyeongChang, regressou a Pyongyang depois de três dias de visita oficial. Depois de receber o relatório da delegação, Kim Jong-un não só sublinhou a importância de manter o espírito conciliador entre as duas Coreias, como se disse “muito impressionado” com a forma como a delegação norte-coreana aos Jogos Olímpicos de Inverno foi acolhida pela Coreia do Sul. Segundo a agência oficial norte-coreana KCNA, “Kim Jong-un deu conta da sua satisfação […] e disse que o Sul, que reservou um acolhimento particular à delegação da Coreia do Norte, foi muito impressionante”.
Manter a janela do diálogo aberta
A diplomacia desportiva entre as duas Coreias não impulsionou só a eventual visita do presidente sul-coreano à Coreia do Norte, e também o presidente do Comité Olímpico Internacional, Thomas Bach, anunciou que irá visitar a Coreia do Norte depois de terminarem os Jogos Olímpicos de Inverno. À agência Reuters, Bach adiantou que todas as partes receberam bem o convite da Coreia do Norte, e que o COI está a discutir qual será a data mais conveniente, a fim de poder continuar o diálogo pela via desportiva.
Sobre o clima de aproximação entre as duas Coreias – que já sentou lado a lado, na tribuna da Gangneung Ice Arena, o presidente da Coreia do Sul e o chefe de Estado de cerimónias da Coreia do Norte, a irmã de Kim Jong-un e o vice-Presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, que lidera a comitiva norte-americana (embora este não tenha cedido à propaganda norte-coreana, tendo-se mantido distante de Kim Yo Jong durante a cerimónia de Abertura dos Jogos de PyeongChang), o presidente do COI defendeu: “podemos criar os símbolos, podemos mostrar que vale a pena sentarmo-nos juntos para discutir, negociar, e que daí pode vir um bom resultado”.
Paralelamente a todos os esforços diplomáticos que estão a ser encetados na cidade olímpica, o Comité Olímpico Internacional (IOC) está a promover a campanha “Become the Light”, que pretende promover os valores Olímpicos de Amizade, Excelência e Respeito, utilizando a luz enquanto representação simbólica destes valores. Para além desta mensagem inspiradora, o IOC fará uma doação à Agência de Refugiados das Nações Unidas para trazer luz às ruas, áreas desportivas, áreas comunitárias e habitações dos campos de refugiados, um pouco por todo o mundo.
A iniciativa, a que o Comité Olímpico de Portugal (que tem na Coreia do Sul uma comitiva liderada por Kequyen Lam, um dos dois atletas lusos em prova, juntamente com Arthur Hanse) se associa “por se enquadrar com a sua estratégia de valorização social do desporto”, demonstra como os feitos dos atletas podem inspirar e motivar pessoas de todo o mundo “para se tornarem a luz e agirem como bastiões de positividade”.
Como defende Thomas Bach, “o desporto é como construir pontes, aproximar as pessoas através da amizade e do respeito”. Para o presidente do COI, “num mundo de incertezas, a mensagem de que a humanidade é maior que as forças que nos dividem é mais relevante do que nunca. Os atletas transportam a luz e inspiram-nos, dando-nos a esperança que é possível um mundo melhor.”
Até ao dia 25 de Fevereiro (e depois até 18 de Março, com a realização dos Jogos Paralímpicos), mais de 3 mil atletas de 93 equipas disputam não só 103 medalhas em 15 modalidades, como a oportunidade – em que participam também mais de 17 mil voluntários e milhões de espectadores na cidade Olímpica e televisivos – de manter aberta, para lá do encerramento dos Jogos de Inverno de 2018, uma janela de diálogo para transformar os esforços diplomáticos para a reconciliação das duas Coreias e para a contenção do programa de armas de Pyongyang.
Mas poderá a trégua olímpica prevalecer quando terminar a diplomacia desportiva, levando a que a Coreia do Norte e os EUA aceitem, enfim, sentar-se à mesa para negociar o problema do armamento nuclear? Ou irá Kim Jong-un, como ditam alguns analistas internacionais, reassumir uma postura agressiva contra o seu vizinho, mantendo os seus testes nucleares em território do Sul e aproveitando até possíveis divergências criadas durante o evento desportivo entre a Coreia do Sul e o governo norte-americano, que possam abalar a sua aliança? Por ora, apenas o ardiloso ditador comunista o saberá. Portanto, só o tempo o dirá.
Proteger o Inverno do clima artificial
Os Jogos Olímpicos de Inverno 2018 são a competição com mais neve e frio da história: PyeongChang 2018 já registou uma temperatura mínima de 25ºC negativos. Não obstante, todas as pistas de esqui ou snowboard instaladas no condado sul-coreano foram feitas com neve artificial.
A diminuição do período de inverno decorrente do aumento da temperatura em todo o planeta vem obrigando à produção de neve artificial nas últimas olimpíadas de Inverno – como as de 2014, em Sochi, na Rússia -, para garantir que nenhum evento tenha de ser adiado ou mesmo cancelado por áreas antes ideais para a prática das modalidades de gelo e neve estarem inviabilizadas. Vários outros eventos desportivos, como torneios profissionais nos Alpes europeus – que nos últimos 100 anos perderam metade da sua cobertura de neve – têm sobrevivido graças a milhares de canhões de neve artificial. E, num contexto em que se sabe que 16 dos 17 anos mais quentes, desde que se começou a registar as temperaturas, em 1880, pertencem ao século XXI, o aquecimento global prejudica inevitavelmente, e cada vez, os desportos de Inverno.
De acordo com um estudo da Universidade de Waterloo, no Canadá, até ao final do século apenas seis das 19 sedes olímpicas de Inverno teriam condições para receber os Jogos, devido ao aumento da temperatura no planeta. Tal como Chamonix, na França, palco da primeira edição, em 1924, as cidades de Vancouver (Canadá), Grenoble (Alpes franceses), Sochi e Garmisch (Baviera alemã) ficarão inviabilizadas já em 2050, caso as emissões de carbono não diminuam gradualmente. Até 2080 serão atingidas cidades ainda mais frias, como Nagano (Japão), Turim (Itália), Innsbruck (Aústria) e Oslo (Noruega). Os dados, preocupantes, fazem crer que a alternativa de ‘alimentar’ os desportos de Inverno com neve artificial poderá, num futuro não muito longínquo, tornar-se permanente.
Defendendo que “os Jogos Olímpicos nunca foram o lugar certo para que sejam emitidas mensagens políticas”, Daniel Scott, líder do estudo publicado em 2014, veio agora relembrar a ameaça do aquecimento global, apelando a que os atletas utilizem o seu “poder, liderança e inspiração” para mobilizarem a causa da mudança de comportamentos que é necessária para combater as alterações climáticas.
Por seu turno, o atleta americano de esqui Andrew Newell, fundador da iniciativa “Athletes For Action”, que envolve atletas de alto rendimento na luta contra o aquecimento global, lançou recentemente um crowdfunding para angariar verbas para iniciativas que, nas suas palavras, ajudariam a “proteger o Inverno”. Ultrapassando a meta inicial dos 20 mil dólares americanos, a campanha tornou-se mediática nas redes sociais, reunindo já mais de 50 mil dólares.
Apaixonado por desportos de Inverno, Andy lamenta a dificuldade que existe em consciencializar os países e os governos quanto à necessidade de diminuir as emissões de CO2 (evidente em casos como os EUA, que abandonaram o Acordo de Paris), mas acredita que é possível educar os atletas sobre as questões inerentes às alterações climáticas, para que exerçam um lobby contra o pensamento de líderes como Donald Trump, para quem um “bom e velho aquecimento global” seria óptimo para “resolver a onda de frio nos Estados Unidos”, como anunciou um dia nas redes sociais, revoltando a comunidade internacional. “Temos uma oportunidade de falar e alertar governantes para que mudem as suas cabeças. O aquecimento global é uma questão política e também científica”, contesta Andrew Newell.
Jornalista