Centrando a sua intervenção na reinserção profissional, familiar e social de “pessoas sem comunidade que são colocadas perante a falência de si mesmas”, o Vale de Acór tem por missão dar uma resposta efectiva ao problema emergente da toxicodependência, como explica, em entrevista, a directora da Comunidade Terapêutica desta IPSS. A capacitação dos utentes a partir do reforço da sua autonomia foi recentemente distinguida, através de um projecto de formação em cozinha dirigido a doentes com duplo diagnóstico
POR GABRIELA COSTA

O projecto Vale de Acór “nasceu do empenho da Igreja, nomeadamente do então bispo de Setúbal, D. Manuel Martins”, concretizando-se em 1994, com a constituição da Associação Vale de Acór – que, desde então, actua na recuperação de toxicodependentes. Em entrevista, Filipa Líbano Monteiro explica que a IPSS intervém “com competência e pertinência junto de pessoas dependentes de drogas e álcool, oferecendo-lhes comunidade e (re)educando-as no encontro com a sua humanidade”.

No âmbito da sua intervenção, a associação acolhe, recupera e reinsere os “novos pobres” da nossa sociedade, explica a directora da Comunidade Terapêutica do Vale de Acór: toxicodependentes e alcoólicos, incluindo toxicodependentes com problemas psiquiátricos (Duplo Diagnóstico) e toxicodependentes reclusos e ex-reclusos. “Geralmente aqueles que acolhemos são pessoas sem comunidade que são colocadas perante a impotência ou falência de si mesmas e, por isso mesmo, são incapazes de activar os seus recursos pessoais para reagir de um modo construtivo”.

A IPPS utiliza o método terapêutico “Projeto-Homem” (ver Caixa), que se baseia numa forma de intervenção fundamentalmente educativa que “procura a redescoberta da vida como oportunidade dada ao Homem para ser feliz”. Segundo Filipa Líbano Monteiro, neste método a atenção “é centrada no homem e não na droga”.

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Filipa Líbano Monteiro, directora da
Comunidade Terapêutica do Vale de Acór

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Quais são os objectivos do método terapêutico-educativo do Projecto-Homem, que fundamenta a sua acção na dignidade de cada pessoa?
O método terapêutico que utilizamos, baseia-se numa forma de intervenção fundamentalmente educativa que procura a redescoberta da vida como oportunidade dada ao Homem para ser feliz. No “Projecto-Homem” a atenção é centrada no homem e não na droga. O consumo de substâncias é visto como a consequência e não como a causa do problema.

Actuamos na dependência tendo em conta quatro vertentes fundamentais:
. Física, procurando um quadro de vida equilibrado;
. Psicológica, trabalhando para libertar a pessoa dos seus procedimentos autodestrutivos;
. Educativa, introduzindo no horizonte da pessoa em reabilitação uma perspectiva crítica do mundo, propondo novos valores e uma outra atitude face à vida;
. Espiritual, interpretando as questões em que se decide a humanidade da própria pessoa, entrando em relação com o outro.

Como funcionam as principais etapas de Intervenção neste método, da Equipa de Intervenção Directa à Comunidade Terapêutica, até à transição para a fase final de Reinserção Social?
Temos uma Equipa de Intervenção Directa que vai ao encontro dos toxicodependentes que por si próprios já não têm capacidade para pedir ajuda, procurando estabelecer a sua ligação com a rede de apoio existente, e desenvolvendo, paralelamente, um processo de motivação e encaminhamento para o rastreio de saúde e o tratamento. Esta equipa desloca-se formalmente aos Hospitais, Estabelecimentos Prisionais, Centros Paroquiais, Equipas de Tratamento dos centros de saúde e, informalmente, aos locais de consumo ou a algum outro lugar que lhe tenha sido assinalado como precisando de ser visitado.

Estas equipas funcionam em articulação com o Sector de Primeiras Entrevistas, que realiza com o toxicodependente um trabalho de motivação, com vista à entrada na Comunidade Terapêutica. Paralelamente é tratado todo o processo de entrada do utente no Vale de Acór, nomeadamente ao nível de requisitos médicos e de articulação com a rede de apoio existente.

Após o internamento, o programa terapêutico-educativo que propomos é realizado em duas etapas. A primeira é a Comunidade Terapêutica. Aqui é trabalhada a vida de relação, a história pessoal e a área emocional da pessoa toxicodependente, por forma a promover a sua motivação e o sentido para uma mudança de vida. A intervenção terapêutico-educativa realiza-se através de acompanhamento individual, grupos de auto-ajuda, seminários formativos, e grupos de expressão de sentimentos, como terapia pela arte, dramatizações, bonding, acompanhamento familiar paralelo, ou grupos de prevenção de recaída. A estruturação do dia-a-dia é realizada com especial atenção ao desenvolvimento de competências e ao rigor no cumprimento das tarefas diárias.

Após esta primeira fase, que dura em média doze meses, é realizada a transição para a Reinserção Social. Esta fase final é composta por um período residencial (com duração média de um a três meses) e por um período em ambulatório, mais longo. Nesta altura, a intervenção tem como objectivo último a plena inserção profissional, familiar e social dos utentes, o que é conseguido através do reforço da sua autonomia e da consolidação de um estilo de vida saudável.

Qual é média mensal de utentes em tratamento e de utentes que transitam para a fase de Reinserção Social no Vale de Acór, e quantas pessoas já acolheram no total?
Na Comunidade Terapêutica do Vale de Acór são admitidos toxicodependentes e alcoólicos de ambos os sexos, com o limite mínimo de dezoito anos de idade. São ainda admitidos dependentes com doença mental grave concomitante (duplo diagnóstico) e toxicodependentes em regime de substituição opiácea, desde que o residente se comprometa a fazer gradualmente a sua redução. De sublinhar também que é facultado e fomentado o contacto dos utentes com os filhos, os quais, no entanto não vivem no centro.

“O alcance da nossa intervenção ultrapassa em muito o que conseguimos quantificar” .
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O alcance da nossa intervenção ultrapassa em muito o que conseguimos quantificar. Há muitas histórias que não chegaram ao fim do programa, mas cuja passagem pela nossa comunidade marcou uma diferença no rumo seguido. Há também aqueles que não conseguem recuperar nem à primeira, nem à segunda, mas acabam sempre por nos voltar a procurar. Porque sabem que não desistimos deles.

A Comunidade Terapêutica da Quinta de S. Lourenço está licenciada pelo IDT (Instituto da Droga e da Toxicodependência) e tem 77 camas convencionadas. As mensalidades são as estipuladas pelo Ministério da Saúde, mas saliente-se, no entanto, que nenhum utente deixa de entrar na Comunidade Terapêutica por apresentar impossibilidade financeira, sendo cada caso analisado individualmente.

Desde que começámos a trabalhar, em 1994, e até ao final de 2012, o Vale de Acór já acolheu na Comunidade Terapêutica cerca de 2900 pessoas, e acompanhou em ambulatório mais de 1600 pessoas. Estão em tratamento uma média mensal de noventa pessoas (setenta na Comunidade e vinte na Reinserção).
No entanto, sabemos que os resultados não se podem medir apenas por números, porque o alcance da nossa intervenção ultrapassa em muito o que conseguimos quantificar. Há muitas histórias que não chegaram ao fim do programa, mas cuja passagem pela nossa comunidade marcou uma diferença no rumo seguido. Há também aqueles que não conseguem recuperar nem à primeira, nem à segunda, mas acabam sempre por nos voltar a procurar. Porque sabem que não desistimos deles.

A Associação desenvolve ainda outros projectos, com destaque para a área da intervenção em meio prisional. Que acções destaca a este nível?
A nossa intervenção em meio prisional começou de modo regular no ano 2000, no Estabelecimento Prisional de Setúbal. Ali são realizados grupos semanais de auto-ajuda, entrevistas de motivação, colóquios individuais de apoio, ou trabalhos pontuais de remodelação de celas e de outros espaços usados pelos reclusos, entre outras acções.

O contacto com os reclusos com problemas de dependência devido ao consumo de drogas abre a possibilidade de internamento na Comunidade Terapêutica, desde que a situação jurídico-penal o permita e se verifiquem os requisitos de admissão. Desde o início da nossa presença no EP de Setúbal até à data, inscreveram-se perto de 120 reclusos, tendo cerca de trinta ingressado na Comunidade do Vale de Acór para tratamento.

A Equipa de Intervenção Directa também se desloca aos Estabelecimentos Prisionais das zonas de Lisboa e Setúbal sempre que é solicitada, para realizar entrevistas de motivação ao tratamento.

O Vale de Acór foi recentemente distinguido com o projecto vencedor da votação online da Visão Solidária. De que modo revela esta distinção o objectivo último para que trabalham – a reinserção social dos vossos utentes?
A Visão Solidária realizou recentemente uma votação online com dez projectos de diferentes IPSS. O Vale de Acór foi o vencedor, com um projecto que consiste na formação em cozinha para utentes doentes com duplo diagnóstico. Trata-se de pessoas que, devido ao seu contexto, só muito dificilmente poderão voltar a integrar o mercado de trabalho sem novas competências, e daí a relevância desta formação, que abre portas à sua reinserção social no futuro.

“Enquanto uma pessoa não se confronta consigo própria, foge”
A Associação Vale de Acór centra a sua intervenção junto da população toxicodependente com que trabalha num conjunto de valores que acredita serem basilares para a sua diferenciação:

  • Identidade Cristã
  • Método Educativo Projecto-Homem
  • Cultura de Serviço
  • Responsabilidade Pessoal
  • Envolvimento das Famílias dos Utentes em Recuperação
  • Não Recurso Avulso a Fármacos
  • Equipa Multifacetada
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© DR
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O Projecto-Homem é um método terapêutico-educativo que pretende levar ao reencontro da pessoa consigo mesma, com os seus problemas e as suas potencialidades, recuperando o respeito por si próprio e aprendendo a viver em sociedade.

Este método nasceu de um programa criado pelo CEIS (Centro Italiano di Solidarieta), instituição que actua desde 1979 na prevenção e reabilitação de toxicodependentes, em Itália, e é inspirado na metodologia do Daytop Village, nos EUA (onde surgiu a primeira comunidade terapêutica baseada nos princípios da auto-ajuda).

Hoje é utilizado em vários países. Na Europa a intervenção baseada no Projecto-Homem tem alcançado elevados resultados de sucesso na recuperação de toxicodependentes principalmente em Itália (link Federazione Italiana delle Comunita Terapeutiche) e na Espanha (Proyecto Hombre).

Como diz a “Filosofia Projecto-Homem”, colocada em texto por um utente de uma Comunidade Terapêutica nos EUA, “enquanto uma pessoa não se confronta consigo própria nos olhos e corações de outras pessoas, foge”.

O texto é repetido todos os dias de manhã, por todos os residentes da Comunidade Terapêutica da Quinta de S. Lourenço. Para Filipa Líbano Monteiro, trata-se de abraçar cada novo dia “promovendo a relação, essa mesma que permite o crescimento e a mudança pessoal”.

E é por isso que, cada vez mais, o olhar da equipa terapêutica do Vale de Acór se foca no restabelecimento da confiança entre as pessoas”, conclui: “acreditamos que a própria comunidade, em conjunto com a intervenção dos nossos psiquiatras, é um terreno seguro para o restabelecer da relação humana primordial. Viver em comunidade, perceber-se incluído nela, pertencer-lhe, restitui a cada um a sua dignidade essencial”.

Jornalista