O relatório «Vetoing Humanity», publicado pela Oxfam em setembro de 2024, faz um apelo contundente para uma reforma profunda no Conselho de Segurança da ONU. A análise revela de como o uso do veto pelos membros permanentes tem bloqueado resoluções vitais, agravando crises humanitárias globais. Com recomendações que vão da abolição do veto à expansão do Conselho, o relatório aponta para uma ONU mais inclusiva e eficiente, capaz de enfrentar os desafios do século XXI e de promover uma paz verdadeiramente global
POR PEDRO COTRIM

O relatório «Vetoing Humanity» da Oxfam, publicado em setembro de 2024, suscita questões alarmantes sobre o impacto das decisões dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU nas crises humanitárias globais. Ao longo das últimas décadas, o uso recorrente do veto e a predominância de um pequeno grupo de países no Conselho têm prejudicado a capacidade da ONU de cumprir o seu mandato de manter a paz e a segurança internacional. Para combater estas falhas, o relatório propõe reformas estruturais e urgentes no sistema de governança global da ONU, com foco particular no Conselho de Segurança.

A Crise do Veto: O Bloqueio de Resoluções Vitais

Uma das principais críticas abordadas no relatório é o uso do poder de veto pelos membros permanentes do Conselho de Segurança – Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido. Este privilégio, concedido na fundação da ONU em 1945, deveria garantir a estabilidade global ao evitar intervenções unilaterais indevidas. No entanto, e conforme o relatório destaca, o veto tem sido frequentemente utilizado para proteger interesses nacionais, ao invés de dar prioridade à paz global. Entre 2014 e 2024, 30 resoluções sobre crises prolongadas, como os conflitos na Síria, na Ucrânia e no Território Palestiniano Ocupado, foram bloqueadas por um ou mais dos membros permanentes, resultando no agravamento da situação humanitária.

Para que o Conselho de Segurança recupere a sua relevância e eficácia, a Oxfam propõe uma série de reformas que procuram tornar a organização mais inclusiva, representativa e eficiente. Estas reformas incluem:

Abolição do Poder de Veto

O veto é identificado como uma das principais barreiras à paz e à segurança internacional. A Oxfam recomenda que este poder seja abolido, especialmente no que diz respeito a resoluções sobre crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídios e violações dos direitos humanos. A Carta da ONU estipula que os membros envolvidos diretamente num conflito se devem abster de votar sobre questões relacionadas com tal conflito, mas, na prática, os membros permanentes do Conselho muitas vezes ignoram a obrigação.

Expansão do Conselho de Segurança

O atual Conselho de Segurança não reflete adequadamente a diversidade geopolítica do mundo moderno. Com 193 Estados-membros na ONU, a composição do Conselho de Segurança, com apenas 15 assentos, é tida como desequilibrada. A Oxfam sugere a expansão do número de membros, de modo a incluir mais vozes, especialmente de regiões e países sub-representados, como a África, a América Latina e o Sudeste Asiático, o que aumentaria a representatividade e daria mais equidade ao processo de tomada de decisões.

Reforma no Sistema de «Penholding»

O sistema informal de «penholding» permite que alguns países (geralmente os membros permanentes) detenham o controlo sobre a redação de resoluções relacionadas com crises específicas. Tal muitas vezes favorece os interesses nacionais e perpetua um legado, já que as antigas potências continuam a dominar as resoluções sobre os países que outrora controlavam. A Oxfam propõe que a capacidade de redigir resoluções seja transferida para uma equipa profissional e imparcial dentro do Secretariado da ONU, o que tornaria o processo mais equitativo e reduziria a influência desproporcional dos 5 permanentes.

Avaliação do Impacto Humanitário do Veto

Uma das principais recomendações do relatório é a necessidade de uma revisão formal do impacto humanitário do uso do veto. Tal revisão ajudaria a compreender plenamente de como o bloqueio de resoluções tem impacto nas populações afetadas por crises. O relatório sugere que este processo seja conduzido pela Assembleia Geral da ONU ou pelo próprio Conselho de Segurança, de modo a fornecer uma base factual e moral para futuras reformas.

Um Novo Sistema de Financiamento Humanitário

Além das reformas no Conselho de Segurança, a Oxfam destaca a necessidade urgente de um sistema de financiamento humanitário mais robusto e equitativo. A disparidade entre o financiamento militar e o humanitário por parte dos membros permanentes é gritante. Em 2021, os P5 gastaram um total de 90 mil milhões de dólares em exportações de armas, enquanto forneceram apenas 14 mil milhões de dólares em ajuda humanitária. A Oxfam recomenda um sistema de financiamento obrigatório para crises humanitárias semelhante ao financiamento das operações de manutenção de paz, de modo a garantir que as necessidades globais sejam atendidas de forma mais previsível e sustentável.

Parar de Lucrar com Conflitos

O relatório também aborda a hipocrisia inerente às ações de alguns Estados-membros do P5, que, ao mesmo tempo em que fornecem ajuda humanitária, lucram com a venda de armas para as partes envolvidas em conflitos. A Oxfam sugere que os Estados ratifiquem e cumpram rigorosamente o Tratado sobre o Comércio de Armas e que parem de fornecer armas a países onde há um risco claro de que estas sejam usadas para cometer violações graves do Direito Humanitário Internacional.

A Oportunidade da «Summit of the Future»

Por fim, o relatório destaca a cimeira da ONU de 2024, conhecida como «Summit of the Future», como uma oportunidade única para reformar profundamente o sistema de governança global. Os líderes mundiais são instados a aproveitar este momento para promover uma reestruturação do Conselho de Segurança e a fortalecer as bases para um sistema internacional mais justo e inclusivo. A cimeira pode servir como ponto de partida para a realização de uma conferência geral de revisão da Carta da ONU, nos termos do artigo 109, algo que poderia revitalizar o Conselho e garantir que a ONU continue relevante para as próximas gerações.

As recomendações da Oxfam para a ONU são claras: o mundo precisa de um Conselho de Segurança que reflita a diversidade do século XXI e que seja capaz de agir de maneira justa e eficaz em prol da paz global. A abolição do veto, a expansão do Conselho e o financiamento obrigatório para crises humanitárias são passos essenciais para alcançar um sistema que priorize a humanidade em vez de interesses políticos. Apenas com essas reformas poderá a ONU realmente cumprir a sua missão de promover a paz e a segurança globais, protegendo os direitos e o bem-estar das pessoas durante crises prolongadas.