A perda de confiança gerada pela crise é “um obstáculo de peso à gestão empresarial”, pois é dela que depende “a robustez dos mercados”. Como concluiu o Painel convidado a debater os critérios de gestão no Mercado, Comunidade e Accionistas, em tempos difíceis é preciso, mais do que nunca, valorizar o relacionamento com os stakeholders, para “maximizar o valor do accionista. Harmonizando, ao nível das lideranças, a ambição terrena com os valores éticos da fé O tema “Amor ao Próximo como Critério de Gestão” suscitou, ao longo da jornada de trabalho do 5º congresso Nacional da ACEGE, alguma perplexidade, à primeira vista, e as mais criativas adjectivações, quando reflectido com profundidade: Desafiador, provocador, interessante, oportuno, essencial na gestão. Para Raul Galamba de Oliveira, partner da McKinsey, a classificação interessante “é um undersatement”, já que este é “um tema dificílimo”, até porque a ACEGE é “uma das assembleias mais capacitadas deste país”, considera. Na “perspectiva estreita de um operário da gestão”, a qual “transcende” esta filosofia para a gestão, e, simultaneamente, na “condição de um aprendiz muito interessado e comprometido, mas sem deixar de o ser”, Raúl Galamba sublinhou na sua intervenção, integrada no último painel da manhã do Congresso realizado pelos empresários e gestores cristãos, o enorme desafio da reflexão proposta. De resto, é preciso contextualizar na actual conjuntura de crise económica o tema do amor como critério de gestão no mercado, perante a comunidade e face aos accionistas, já que “este contexto torna mais evidente a importância do tema”, conclui Galamba. Em tempos de retracção económica, “gera-se todo um conjunto de efeitos secundários que pressupõem uma quebra de perspectiva”, por parte quer do mercado, quer dos diversos stakeholders – dos colaboradores aos accionistas, passando pela comunidade envolvente à empresa -, defende o partner da McKinsey. Estas “dualidades” reforçam a tendência para se darem “ruptura de contratos”, que se manifestam num conjunto de factores negativos, como “demoras nos pagamentos, salários em atraso, incumprimento de obrigações fiscais, desigualdades sociais” e, claro está, um contributo inevitável para acentuar o fenómeno do desemprego, que atinge hoje em Portugal uma taxa de quase 15%. Paralelamente, a conjuntura de crise abre também caminho à proliferação de situações de fraude empresarial; ao não cumprimento dos compromissos que as empresas estabeleceram com o ambiente, nas suas estratégias de Responsabilidade Ambiental e de Sustentabilidade; e ao incontornável crescimento das desigualdades sociais, sublinha. Por outro lado, os tempos difíceis que vivemos são condutores de uma “enorme perda de confiança nas empresas”, um obstáculo de peso à gestão empresarial, atendendo a que “ a robustez dos mercados depende da confiança e, se a curto prazo esta é inevitável (devido à crise), a médio prazo tem consequências perigosas”.
Alargar os horizontes da gestão Sobre o primeiro elemento, que preconiza a ponderação de uma visão de longo prazo em detrimento de uma de curto prazo, Galamba de Oliveira acredita que há “um fenómeno de encurtamento de vistas”, bem visível no foco colocado pelas empresas nos resultados do trimestre (o “quarterly capitalism”), no desejo pela “rentabilidade imediata dos investimentos”, ou na dedicação dada às transacções, e tantas vezes menosprezada no que diz respeito ao estabelecimento de relações fortes e construtoras de uma base de confiança. Este menosprezo pela geração e consolidação de relações de confiança entre os agentes empresariais, tópico sempre actual no “secular tema” dos horizontes da gestão, faz com que a importância dos resultados “aqui e agora” se sobreponha às preocupações com fornecedores e clientes, por exemplo. Ora, quando a visão de longo prazo tende a perder-se, “tudo é performance, tudo é curto prazo”, lamenta o partner da consultora. E persiste ainda uma tendência por parte dos empresários “para esquecer” uma gestão planeada não só a pensar nos resultados imediatos, cujos factores “não são suficientemente debatidos”, diz. Não quer isto dizer que seja preciso pensar unicamente em estratégias empresariais a longo prazo, mas “estas chegam a estar ausentes” nas agendas dos CEO, quando é sabido, nos meandros da gestão, que “as decisões tomadas com tempo garantem mais equilíbrio”: na verdade, uma proporção 50/50 entre gestão de performance e gestão de ‘health’ da empresa (no sentido da saúde da organização), por parte dos CEO, é reconhecida como a ideal. Como manter, então, uma perspectiva de longo prazo na gestão das nossas empresas? “Esta é a grande questão”, defende Raúl Galamba. Mas, em tempos de crise, “tudo é gestão de performance”, insiste, o que coloca em causa a ‘loyalty’ para com os colaboradores”. Os gestores donos No que concerne este relacionamento, “nos últimos vinte a trinta anos” as empresas percorreram um caminho que coloca “os clientes e os colaboradores em primeiro lugar”, explica. Acresce que os clientes só pontuam em primeiro “se os colaboradores assim o entenderem”, comenta, concluindo: “ a margem”, ou seja, “o que vamos ganhar com eles” pode estar ameaçada – a verdade é que “ninguém lê relatórios de sustentabilidade”, sendo este “um tema não resolvido pelas organizações”. Em suma, a importância estratégica das empresas vai “muito além da sustentabilidade” ou, dito por outras palavras, “a gestão de stakeholders garante a robustez e a estabilidade do contexto onde as empresas se movem”. Finalmente, há um terceiro factor determinante para a concepção de um modelo de gestão ganhador: o conceito de governance, liderado por alguém “que toma conta e abre o caminho”. Muitos destes accionistas “não têm representação na organização, ou “não são sequer conhecidos” da mesma. Importa, pois, questionar que implicações tem esta realidade para os gestores: apenas “uma pequena parte acredita que o envolvimento dos shareholders tem impacto na gestão, e muitas empresas têm um link muito débil a este nível”, remata Galamba. Cumulativamente, os incentivos normalmente atribuídos aos gestores estão “sob escrutínio crescente” e são “tipicamente de curto prazo”. Quando seria necessário “compensar os gestores como se fossem donos”, através de “elementos de gestão com impacto no longo prazo”, definindo horizontes “por exemplo a três anos” e “incorporando downside”. Importa, assim, procurar “um modelo de execução diferente” que permita que os gestores “tenham a capacidade de actuar não só para liderar bem os seus negócios, mas como se fossem os donos desses negócios, com o sentido de responsabilidade que isso implica”, sublinha Raúl Galamba. Para o partner da McKinsey, “a palavra amor pressupõe um sentimento e superação e uma perspectiva de longo prazo”, que inclui “a subjugação dos nossos interesses em prol do outro” e, neste sentido, há uma “difícil reconciliação a fazer”, conclui. Pessoalmente, Galamba aspira a “vir a entender” o tema do amor ao próximo como critério de gestão “não só como uma linguagem que inspira, mas do ponto de vista ético, de longo prazo”. Um ponto de vista que persista no quotidiano das empresas, quando estas “têm de tomar decisões”, apela.
A ética utilitária e a ética da fé Afinal, “os gestores das grandes empresas são os ricos e os poderosos do nosso tempo” (como explica a obra “Deus e os Ricos”, nas suas meditações a propósito do quadro “Vocação de S. Mateus”, de Caravaggio) e tornam-se facilmente “frios e ambiciosos” relativamente às suas carreiras profissionais. Esta obsessão pelo mundo do trabalho retira-lhes “espaço e tempo para pensar no próximo ou em Deus, conclui o partner da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados (MLGTS)”. Como compatibilizar então a ambição terrena com os valores cristãos? De que modo podem estes valores interferir na vida das empresas? Para o advogado, este que “é o desafio central” da obra recentemente lançada por António Pinto Leite, “Amor como critério de gestão”, é um tema básico, e não utópico”: produzindo um efeito comunicacional, ao nível dos Media (“só quem anda distraído fica admirado com o tema”, diz Lobo Xavier), a ‘elevação’ do amor ao próximo como critério de gestão nem sequer é um tema dirigido especialmente aos gestores, ironiza, mas “também à senhora Merkel e a Vitor Gaspar”. Em qualquer dos casos, “é possível ser gestor de uma empresa deixando à porta os valores cristãos que se têm?”, questiona. Embora estes valores pareçam desadequados nos negócios, isto é, “sejam aparentemente contrários aos mesmos, o mundo da fé é um mundo de certeza e confiança”. E uma verdadeira economia de mercado assenta na ética e na confiança, defende o advogado da MLGTS. No seu entender, é por esta razão que “a proposta da ACEGE nos obriga a distinguir entre os planos individual e colectivo”. É que, se a sustentabilidade é a procura de “harmonia na exploração do planeta, e entre as pessoas na sociedade” (e foi assim que o capitalismo adoptou o conceito, “como uma moda ou não”), “este critério baseado em valores corporativos não é suficiente, relativamente ao amor ao próximo”, acredita Lobo Xavier. Quer o Lehman Brothers quer o Royal Scottish Bank tinham fortes códigos de ética, recorda. Mas a ética corporativa “é utilitária, é organizada no interesse da própria empresa – o que não é necessariamente errado”. O grupo Sonae (Grupo onde ainda detém responsabilidades) “é um exemplo deste sistema” que cruza os valores da empresa com o que se exige aos colaboradores, “que é útil, mas criado para maximizar o lucro”. Vista deste ângulo, e “até pela crítica à sustentabilidade de Friedman, que passou a ser justificada também com um pilar económico, “a responsabilidade social é uma charlatanice”, conclui. Porque um gestor que não seja ao mesmo tempo dono, mais não é do que “um mandatário da utilização dos bens”, defende: tem de gerar resultados para a sua empresa e não pode ser meramente filantropo. Por sua vez, o amor ao próximo implica “um compromisso connosco próprios”. Trata-se de um desafio pessoal “difícil, que poucos se gabarão de conseguir” na gestão, reconhece. Realizar a tarefa de gestor com uma perspectiva cristã, “através do magistério do exemplo”, poderá permitir vencer o desafio de não deixar à porta “os valores essenciais que, porventura num mundo com tanto desmando e tão pouca ética, são o seu tesouro”, conclui António Lobo Xavier.
Um sector especial Isabel Vaz desfez os “quatro mitos sobre o sector”, a saber: a saúde não um negócio; o sector rege-se por padrões morais e éticos mais elevados do que os outros sectores da economia; as boas práticas de gestão (leia-se, eficiência operacional e gestão rigorosa dos recursos disponíveis) prejudicam a qualidade dos cuidados de saúde e causam a crise no sector; e as leis do mercado não se aplicam ao sector. Entre as especificidades que distinguem o sector da saúde, a responsável salienta “a presença de fortes juízos éticos”, exemplificando com “o princípio aceite – pelo menos no contexto do modelo social europeu – de que ninguém deve ser privado de cuidados médicos em caso de necessidade”. O “grau de gravidade conferido pela sociedade ao erro médico” é outra demonstração de que este “é um sector especial, porque a sua missão é “focada no cliente”. Sobre o “custo da ineficiência operacional”, a presidente do Espírito Santo Saúde sublinha que “é um imperativo ético ser eficiente para continuar a garantir o direito à prestação de cuidados de saúde a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica”. E na saúde, os valores humanos que vão além dos princípios egoístas “são especialmente visíveis, graças à sua missão”. Uma missão que, para Isabel Vaz, em tudo coincide com a aplicação dos valores cristãos. A diabolização do ‘lucro eficiente’ No contexto actual “de crescimento da despesa com a saúde consistentemente acima do crescimento económico, a sustentabilidade do sistema está, de facto, em causa”, lamenta Isabel Vaz. Qualquer reforma para garantir a manutenção do modelo social “é muito difícil neste sector”, recorda, já que para tanto, “em 2050 mais de 50% do Orçamento de Estado teria de ser aplicado à saúde”. Ora, não se pode naturalmente ignorar as dimensões igualmente fundamentais da educação, ou do sistema de pensões, por exemplo. Isabel Vaz defende que a economia de mercado “é a que melhor valoriza a criatividade humana e o empreendedorismo” na área da prestação de cuidados de saúde. E que “a inovação ocorre de forma transversal na prática da medicina”. Convicta de que “os mecanismos de mercado “permitem não ignorar o papel fundamental dos clientes (versus utentes) na melhoria dos serviços prestados e na criação de novos serviços e produtos”, sustenta a criação de valor inerente ao modelo de gestão assente num “stakeholders capitalism’. Na certeza de que, “ao nível das lideranças de topo, a sustentabilidade incorpora não só valor económico, mas também – e sempre – valores éticos, principalmente na saúde. Neste modelo a ética e os valores têm “um papel preponderante para o funcionamento eficiente e eficaz do mercado e da economia”, através de uma gestão “focada na capacidade de pensar a longo prazo” e que reconhece que “as pessoas são realidades complexas e multifacetadas”. Este reconhecimento da complexidade do ser humano, na sonda da “Teoria dos Sentimentos Morais”, do economista e filósofo moral Adam Smith, é particularmente relevante no sector da saúde, acredita a responsável. Aqui, “as missões das empresas têm em vista um bem maior (os doentes), e o serviço prestado é o próprio cliente… Ou, como afirmou o médico João Lobo Xavier, citado por Isabel Vaz, na saúde, não basta a excelência técnica, pois, “embora se inventem cada vez mais modos de tratar, ainda não se descobriu o modo de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão”. |
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Jornalista