Há hoje um crescente número de empresas que colocaram sobre a mesa metas “net zero”. Mas concretamente o que querem dizer essas metas e como se pode garantir que as mesmas não são mais do que exercícios em “greenwashing”? Afinal, será mesmo possível conduzir com gasolina neutra em carbono? O que é que isso quer dizer?
POR PEDRO MARTINS BARATA

Primeiro, a avaliação global da COP26.

Será mais um caso de copo meio cheio, copo meio vazio. Para o bem e para o mal, a COP tornou-se num ritual global, em que anualmente a comunidade internacional – os políticos, os negociadores, mas também as sociedades civis, a comunidade científica, os manifestantes de várias causas, convergem para perceber coletivamente para onde vamos e qual o estado da nossa preparação para as alterações climáticas e o estado de preparação para a transição energética e social que será inevitável.

No centro de toda a parafernália – em Glasgow foram mais de 40.000 os participantes encartados do evento, e mais de 100.000 a marcharem ao frio e à chuva em protesto pela situação – estão as negociações. Essas, contudo, mudaram substancialmente de tom e de substância desde o Acordo de Paris. O Acordo de Paris forneceu um quadro de resposta às alterações climáticas que passa acima de tudo pela apresentação, a cada cinco (ou dez anos) de novos compromissos, sejam eles de redução de emissões, de financiamento, de apoio a ações de adaptação. Negociado o quadro de referência de Paris – os últimos retoques foram justamente os temas do reporte de mitigação e do mercado de carbono, acordados em Glasgow – a COP passa justamente a ser um processo de pressão pelos pares (“peer pressure”) onde os países são incentivados/humilhados a aumentarem a sua ambição e a demonstrarem o que pretendem fazer. Não é por isso de esperar enormes avanços negociais – ao contrário do que muitos jornalistas a fazer a cobertura pensam ser possível – pela simples razão de que não há muito mais por negociar.

Chegados por isso a Paris, o que se pretendia era fazer o balanço da adequação dos compromissos feitos pelas Partes ao objetivo global de Paris – “o de limitar o aumento da temperatura global a 2ºC e fazer todos os esforços para atingir um máximo de 1,5ºC”, o que pressupõe, diga-se, atingir a neutralidade carbónica pouco depois de 2050. Feitas as contas, Glasgow permitiu apresentar novos compromissos por parte das Partes que colocam ainda em jogo a meta dos 1,5ºC, ainda que a média dos modelos aponte para que apenas se consiga limitar a 2,4ºC. Sob esse ponto de vista, é um copo meio cheio.

Contudo, houve mais, incluindo alguns resultados inesperados. Em primeiro lugar, houve a aceleração do processo de revisão dos novos compromissos. A COP concordou que a década de 2020-2030 é a crucial, e que dada a insuficiência atual dos compromissos, deveríamos reunir todos os anos (e não de 5 em 5) para rever e aumentar a ambição das metas a que nos propomos. Mas decerto o resultado menos esperado foi ver consagrado, mesmo depois de uma luta fratricida entre China e Índia de um lado e os países do G-77, o princípio do “phasedown” dos combustíveis fósseis, em particular do carvão ao longo da próxima década. Não sendo um compromisso duro, a negociação deixou claras as novas linhas de batalha na mitigação climática: o estabelecimento de datas para o fecho da indústria do carvão e do petróleo a nível mundial.

Sobre “net zero” e mercado voluntário de carbono

O outro grande tema da COP foi o estabelecimento de metas “net zero”: há hoje um crescente número de empresas que colocaram sobre a mesa metas “net zero”. Mas concretamente o que querem dizer essas metas e como se pode garantir que as mesmas não são mais do que exercícios em “greenwashing”? Afinal, será mesmo possível conduzir com gasolina neutra em carbono? O que é que isso quer dizer?

No novo mundo da COP pós-Paris, as empresas, e o seu esforço coletivo tem vindo a ter um papel preponderante. Por forma a normalizar a discussão sobre o que é não consentâneo com os objetivos de Paris, a iniciativa Science-Based Targets publicou o seu standard Net Zero, segundo o qual as empresas são convocadas a estabelecer trajetórias de redução de emissões em toda a sua cadeia de valor e a compensar as suas emissões irredutíveis ao longo do processo de descarbonização.

Só que a experiência do mercado dito voluntário de carbono é bastante controversa, com muitas e diferentes queixas: sobre o potencial de “greenwashing” das afirmações sobre a neutralidade carbónica, sobre a qualidade dos projetos que geram créditos, o seu valor adicional, os impactes sociais e humanos sobre as populações locais, ao ponto de haver um movimento internacional muito expressivo que contesta sequer a possibilidade dessa contestação. Para responder a essas críticas, estão em marcha duas iniciativas paralelas:

– a Iniciativa para a Integridade do Mercado Voluntário de Carbono (VCMI), que irá definir que tipo de afirmações deverão eticamente ser produzidas pelas empresas que participem no mercado de carbono, atuando dessa forma sobre a procura de créditos;

– a Task Force para o Mercado Voluntário de Carbono (TSVCM), que pretende estabelecer um selo de qualidade para aqueles créditos que respondam cabalmente a um conjunto de critérios apertados de qualidade.

É com base nesses três pilares (SBTI, VCMI, e TSVCM) que se poderão criar as condições para uma utilização responsável e poderosa deste instrumento que é o mercado voluntário de carbono.

Pedro Martins Barata, membro do Expert Adisory Group SBTi Net Zero Standard, co-presidente do Painel de Peritos da Task Force para o Mercado Voluntário de Carbono e Partner da Get2c