POR GABRIELA COSTA
“Não há nada que substitua a relação de solidariedade humana doente médico, num comungar de confiança e de disponibilidade. Daí eu pensar de extrema importância o projecto WeGUIDE, que de modo algum pretende substituir-se ao médico, mas sim complementar a sua acção”– Professor Gentil Martins, médico oncologista
Em 2017 existiam cerca de 100 mil pessoas em tratamento de doença oncológica em Portugal, e a cada ano são diagnosticados 40 mil novos casos, segundo dados da Direcção Geral da Saúde. Vivem com a doença num cenário confuso e emocionalmente exigente, com perda de autonomia e uma grande carga burocrática, num ecossistema de saúde com recursos limitados e não articulados.
Partindo desta percepção do elevado número de novos casos oncológicos e das dificuldades emocionais e materiais que a doença comporta, quer para os doentes quer para as suas famílias, a Terra dos Sonhos está a implementar um projecto cuja proposta de valor assenta nos Guia em Saúde, profissionais que acompanham os doentes, dando estrutura, apoio prático, confiança e suporte ‘biopsicosocioespiritual’, com vista a que estes e as suas famílias alcancem uma melhoria da sua qualidade de vida.
Constituindo uma “resposta estruturada, baseada nas necessidades reais destas famílias e destas vidas em que o cancro ‘toca à porta’, e que também é escalável, replicável e sustentável”, o projecto WeGuide, cujo piloto (dedicado a adultos com cancro colorrectal), vai ser implementado em 2019, “surgiu do terreno”, segundo explica ao VER Mariana Madeira Rodrigues, directora executiva da Terra dos Sonhos: “surgiu de uma necessidade sentida pela Madalena D’Orey [presidente da organização que promove o bem-estar emocional de pessoas com doenças crónicas ou institucionalizadas, especialmente crianças e jovens], que há já muitos anos acompanha doentes oncológicos que lhe pedem ajuda e conselhos. A Madalena foi diagnosticada aos 11 anos com um cancro em que o prognóstico de sobrevivência não era muito favorável, há já mais de 30 anos. É um caso inspirador para muitas pessoas”, explica.
A impossibilidade de acompanhar todos os pedidos de dúvidas e questões relacionadas com o diagnóstico de doença oncológica, tanto maior quanto mais se alarga o universo de doentes com cancro, levou a Terra dos Sonhos a procurar uma resposta de apoio e acompanhamento a doentes, durante o processo de tratamento.
Alicerçado “na relação humana”, o WeGUIDE arranca, desde logo, com uma característica invulgar até numa grande empresa, quanto mais no lançamento de um pequeno projecto de uma organização social: vai ter o seu próprio Código de Ética, o qual está de momento a ser elaborado por Cristina Vaz Tomé,docente de Ética e Responsabilidade Social na Catolica Lisbon School of Business and Economics. A especialista contextualiza: “é precisamente por ser uma actividade desenvolvida numa circunstância de grande vulnerabilidade emocional e de grande fragilidade para o doente e para as famílias, que a confiança é um factor capital para o seu sucesso. Não pode haver espaço para dúvidas, desconfianças ou suspeitas sobre a actuação e motivação dos profissionais da WeGuide e sobre a forma como desempenham a sua actividade”.
Na sua opinião, a dimensão da responsabilidade das fundadoras do projecto justifica a intenção de ter logo na fase de formação dos profissionais um Código de Ética que se aplica a estes e restantes stakeholders. O que revela“consciência sobre os riscos que uma actividade destas pode encerrar, e a forma transparente e responsável” como a Terra dos Sonhos pretende conduzir o projecto, bem como os valores que pautam a conduta a sua gestão.
Pontes construtivas entre doentes e cuidadores
Embora “tenha a tecnologia como aliada”, o WeGUIDE assenta “numa resposta humanizada e personalizada” através de um serviço profissional que, durante 12 meses, facilita a comunicação entre o doente, a família e todo o ecossistema envolvente, ajudando a lidar com os processos administrativos e burocráticos que surgem nesta fase da vida; gere a informação durante todo o processo da doença, esclarecendo sobre eventuais apoios existentes; funciona como um agente de promoção do bem-estar emocional e ‘biopsicosocioespiritual’, criando pontes “construtivas e essenciais” entre os diversos profissionais de saúde e os diferentes familiares; e como agente de capacitação para a autonomia após os 12 meses de intervenção, facilitando um acompanhamento regular desempenhado por um profissional formado para aliviar tensões, ansiedades e dúvidas.
[quote_center]O projecto pretende, numa fase posterior, escalar para outras realidades que não a oncológica – Mariana Madeira Rodrigues[/quote_center]
Num mundo “onde o digital, o online e a realidade virtual se tornam imprescindíveis e quase reais, o projecto vem resgatar a importância dos vínculos humanos, da confiança e da relação pessoa-pessoa”, defende a Terra dos Sonhos. Embora em plano de complemento, a tecnologia é parte integrante deste projecto, pois permite alargar a missão e a eficiência operacional, o que possibilita a replicação e a escalabilidade.
Mas a base é a construção de “uma relação humana” que passa por proporcionar um(a) Guia em Saúde a todos aqueles que procurarem esta possibilidade através do seu médico, Guia este(a) “que é um profissional pago com uma vocação vincada para servir o outro”, sublinha Mariana Madeira Rodrigues.
Estes Guias terão uma formação de base multidisciplinar baseada em cinco eixos de intervenção – Gestão da Informação e Comunicação Construtiva, Inclusão no Ecossistema, Suporte Socio-emocional e Capacitação para a Autonomia, Autocuidado, Educação para a Saúde e Equilíbrio entre Papéis de Vida e Unicidade de Significados e Gestão das Perdas -, desenvolvidos em parceria com a Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.
As candidaturas, sob proposta de um médico, dão lugar à alocação de um Guia com formação específica WeGUIDE, que irá então, e após uma primeira conversa com o doente e os seus familiares, gerir em equipa a elaboração e implementação do projecto de acompanhamento ao doente. Estes cuidadores profissionais dedicam-se a acompanhar as pessoas diagnosticadas e as famílias facilitando, entre muitos outros factores, a informação e a comunicação no ecossistema de saúde do doente, ao mesmo tempo que promovem a educação para a saúde, dão esperança e apoiam a gestão dos lutos, “abordando a oportunidade de crescimento no meio do sofrimento”, salienta a directora executiva da Terra dos Sonhos, também responsável por este projecto.
Neste contexto, importa destacar os fundamentos essenciais do Código de Ética do WeGUIDE, que correspondem “desde logo” à missão do projecto, isto é, “aos valores que orientam a gestão e actividade dos profissionais, e nos quais estes têm que se rever”, explica Cristina Vaz Tomé.
Na sua perspectiva, “as normas que permitem dirimir dilemas que possam surgir em situações concretas têm que ser suficientemente explícitas”, para que sejam perceptíveis por todos os que irão utilizar o Código de Ética. Paralelamente, o mesmo deve identificar claramente “a quem recorrer em caso de dúvida sobre a sua aplicação ou interpretação”, conclui.
Impacto avaliado nas famílias e nos profissionais
O objectivo maior do projecto WeGUIDE é proporcionar qualidade de vida aos doentes oncológicos e seus familiares, através do acompanhamento humanizado que os Guias em Saúde fazem, com vantagens transversais para os profissionais de saúde e para todo o ecossistema envolvente. Para garanti-la, o impacto do projecto na qualidade de vida dos doentes e dos seus familiares vai ser mesurado no piloto. Para tanto, e como adianta Mariana Madeira Rodrigues, “temos dois óptimos parceiros para que haja uma avaliação dos resultados, a Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa e a Nova SBE, que medirá também o impacto deste projecto na saúde e na eficiência dos profissionais envolvidos”. Esta última irá, através do Nova Institute for Value Improvement in Health and Care, mesurar os resultados de saúde com recurso aos questionários do International Consortium for Health Outcomes Measurement.
[quote_center]A confiança é um factor capital para o sucesso do WeGUIDE – Cristina Vaz Tomé[/quote_center]
Nas palavras da responsável pelo WeGUIDE, “numa altura em que a confusão e a incerteza se instalam, os Guias em Saúde surgem para dar um suporte ao nível do bem-estar emocional, facilitando toda uma abordagem de serviço baseada nos [seus] cinco eixos de intervenção”.
Este apoio “em nada substitui o médico, o enfermeiro de referência, o assistente social, o psicólogo, o cuidador informal, o gestor do doente, etc. Acrescenta valor a todos estes papéis e torna o sistema mais eficiente”. Porque, e afinal, o projecto vai existir para melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Numa primeira fase o WeGUIDE destina-se a adultos com doença oncológica, seus cuidadores directos e aos cuidadores de crianças e jovens também com cancro. Mas a Terra dos Sonhos tem planos para alargar o projecto a outros doentes crónicos, no futuro. Segundo avança Mariana Madeira Rodrigues, “o projecto é ambicioso, baseado num modelo de sustentabilidade replicável, e pretende também, numa fase posterior, escalar para outras realidades que não a oncológica, pois “quando se é diagnosticado com uma doença crónica que impacta e provoca uma mudança no dia-a-dia, a necessidade de ter alguém que suporte nos primeiros tempos esta adaptação a uma nova realidade é evidente”.
Chegue a que doentes chegar, o WeGUIDE fundamenta-se num código de ética que “não é o manual de procedimentos” do projecto, mas antes “um documento orientador da forma de actuar dos profissionais, tendo como base os valores do projecto. Como ressalva Cristina Vaz Tomé, “importa realçar que o facto de existir e estar disponível um Código de Ética não elimina de per si os riscos da actividade”. Contudo, sublinha, “demonstra que há por parte da gestão consciência sobre os mesmos e, acima de tudo, vontade de mitigar os riscos e de melhorar de forma contínua o serviço a prestar”, assegurando a sua “nobre missão de contribuir para melhorar a qualidade de vida dos doentes e das suas famílias”.
O WeGUIDE é hoje, e ainda, “um projecto-piloto, mas que acreditamos ser válido”, afirma Gentil Martins, apoiante desta causa. Como diz o reputado oncologista, “só perde quem deixa de lutar e este projecto vale certamente uma oportunidade para demonstrar o seu valor e a sua importância social e humana.”
Jornalista