Clima, clima, clima, clima e clima. Pela primeira vez na história de 15 anos do relatório de riscos globais publicado pelo Fórum Económico Global, as cinco principais ameaças percepcionadas para os próximos 10 anos são todas de ordem ambiental. A curto prazo, os confrontos por razões económicas e a polarização da política interna ocupam os primeiros lugares do top 5, num mundo cada vez mais fracturado, que não confia nas instituições multilaterais e que está a substituir a cooperação pela competição
POR HELENA OLIVEIRA
Como habitualmente, uns dias antes de ter tido início mais uma reunião mundial de líderes em Davos – marcando, este ano, o seu 50º aniversário – o Fórum Económico Mundial (FEM) publicou o seu relatório de riscos globais, depois de questionar um conjunto alargado de participantes, ou cerca de 800 decisores económicos, políticos e da sociedade civil, em conjunto com a sua comunidade de “Global Shapers” (200 jovens líderes e empreendedores). E pela primeira vez na história de 15 anos do relatório em causa, dos riscos percepcionados a longo prazo, para um período de dez anos, todos eles são ambientais.
Em termos de curto prazo, o panorama muda ligeiramente com os confrontos por razões económicas e a polarização da política interna a ocuparem os dois primeiros lugares e novamente seguidos por riscos ambientais, como as ondas de calor extremo e a destruição dos ecossistemas naturais. Os mais jovens são ainda mais pessimistas nas suas perspectivas, elegendo quatro riscos ambientais também para o curto prazo, ou aqueles que se esperam vir a ter um grande impacto ao longo de 2020, e incluindo as crises relacionadas com a água (que neste caso surge nos factores sociais) para eleger o seu top 5.
De uma forma geral, a economia global está a confrontar-se com um “abrandamento sincronizado”, como se escreve no relatório, os cinco últimos anos foram os mais quentes desde que há registos e espera-se que os ciberataques aumentem este ano. Em simultâneo, muitos são os cidadãos que protestam contra as condições políticas e económicas nos seus países, em particular face aos sistemas que exacerbam a desigualdade. E é de preocupar que, face a este contexto, desafios que precisavam de uma acção colectiva imediata encontrem, ao invés, fracturas cada vez mais alargadas no interior da comunidade global.
Se olharmos para trás e para a maior parte do período que se seguiu ao fim da Guerra Fria, quase todas as sociedades partilhavam a aspiração de um desenvolvimento estável, tendo em conta um contexto definido por regras formalmente acordadas e governadas por instituições multilaterais. Os desafios geopolíticos foram muitas vezes abordados através de instituições que cooperavam entre si. Todavia, novas dinâmicas – em certos casos, forças subjacentes que resultaram exactamente do progresso dos últimos 30 anos – estão a fazer com que sejam vários os estados que estão a reavaliar a sua abordagem à geopolítica. O relatório prevê ainda que as economias emergentes constituam seis das maiores economias até 2050, dá nota sobre a formação de novos centros de poder e influência e sublinha que as tecnologias digitais estão a redefinir igualmente o que significa exercer um poder global. À medida que estas tendências se vão desenrolando, assistimos a uma mudança ideológica por parte de alguns stakeholders, de multilateral para unilateral e da cooperação para a competição. Esta turbulência geopolítica gera uma enorme imprevisibilidade sobre quem está a liderar, quem são os aliados e quem irá terminar como vencedor ou perdedor.
Adicionalmente, e à medida que os estados respondem aos desafios e oportunidades oferecidos por esta mudança de poder, alguns deles consideram as instituições multilaterais como obstáculos e não como instrumentos para promover os seus interesses. O desafio que se coloca a estas instituições é encarado como uma enorme preocupação no que respeita a sistemas globalizados e a mecanismos de cooperação, ou aquilo que o FMI denomina como “recessão da confiança”. Recorde-se que de acordo com o Barómetro da Confiança da Edelman em 2019, apenas uma em cada cinco pessoas acreditava que o “sistema” estava a “trabalhar a seu favor”.
Economia global demonstra sinais de vulnerabilidade
Na altura em que este relatório estava a ser escrito, o FMI esperava um crescimento na ordem dos 3% para 2019 – o valor mais baixo desde a crise económica de 2008-2009. E numa altura em que a coordenação global sob a forma de um comércio mais eficiente poderia ajudar a aumentar o crescimento, este acabou por se transformar num instrumento de rivalidade.
A Organização Mundial do Comércio (OMC) projectou que o crescimento no comércio de mercadorias abrandasse para 1,2% em 2019 face a 3% em 2018. E se, em finais do ano passado, parecia que estávamos a testemunhar alguns progressos na chamada “Fase Um” do acordo comercial entre os Estados Unidos e a China, as tensões entre as duas potências aumentaram, acabando por prejudicar não só a economia de ambos os países, como também a economia global: as tensões poderão custar cerca de 700 mil milhões de dólares em perda de produção, um valor próximo da quantidade de PIB perdido por toda a União Europeia graças à crise financeira (757 mil milhões de dólares entre 2008 e 2009). A OCDE avisa: “a escalada nos conflitos comerciais está a ter um custo crescente na confiança e no investimento, a contribuir para a incerteza política, a agravar os riscos nos mercados financeiros e a fazer perigar as perspectivas de crescimento, já por si lentas, em todo o mundo”.
Os respondentes ao inquérito do FEM não esperam que as tensões económicas melhorem – com 78% a perspectivar, pelo contrário, crescentes “confrontos económicos” para o ano de 2020.
Edições recentes do Relatório de Riscos Globais alertavam para a pressão descendente da economia global resultante de fragilidades macroeconómicas e desigualdades financeiras. Estas pressões continuaram a intensificar-se em 2019, o que perspectiva o aumento do risco de estagnação económica. As baixas barreiras ao comércio, a prudência fiscal e o forte investimento global – outrora considerados como fundamentais para o crescimento económico – estão agora a sofrer um desgaste à medida que os líderes optam cada vez mais por políticas nacionalistas. As margens para o estímulo monetário e fiscal são agora mais estreitas do que antes da crise financeira de 2008-2009, criando uma enorme incerteza sobre quão bem as políticas contracíclicas irão funcionar.
No meio deste panorama económico pouco animador, o descontentamento dos cidadãos face a sistemas que falharam na promoção do desenvolvimento tem vindo a aumentar. A desaprovação relativamente à forma como os governos estão a abordar questões económicas e sociais profundas serviu de rastilho a protestos um pouco por todo o mundo, o que poderá enfraquecer a capacidade dos governos para tomar acções decisivas caso ocorra uma recessão. Sem estabilidade económica e social, os países poderão não ter os recursos financeiros, a margem fiscal ou o capital político ou social necessários para enfrentar riscos globais críticos.
Crise climática faz soar os alarmes mais fortes
Em finais de 2019, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, avisou para “um ponto sem retorno” nas alterações climáticas. E como já mencionado anteriormente, os respondentes ao inquérito do Fórum estão também a fazer soar o alarme e bem alto. Pela primeira vez na história deste relatório, as questões relacionadas com o clima dominaram os riscos globais em todo o top 5. Fenómenos climáticos extremos, o fracasso na acção climática (mitigação e adaptação), os desastres naturais, a perda de biodiversidade e os desastres ambientais causados pelos humanos são, por esta ordem, os cinco principais riscos globais perspectivados para os próximos 10 anos em termos de probabilidade, com os respondentes mais jovens a elencarem-nos também no curto prazo (para 2020), com destaque para o aumento do risco das ondas de calor extremo, a destruição dos ecossistemas, os problemas de saúde relacionados com a poluição e os fogos incontroláveis. A rede de multistakeholders do Fórum considerou ainda a “perda de biodiversidade” como o segundo risco com maior impacto e o terceiro com maiores probabilidades de ocorrer para os próximos 10 anos. A perda de biodiversidade tem implicações críticas para a humanidade, desde o colapso dos sistemas alimentares e de saúde até à disrupção de cadeias de fornecimento na sua totalidade.
Para os responsáveis pelo relatório, e apesar da urgência de coordenação imediata multilateral e multistakeholder para abordar crise climática, assistimos a uma fractura global cada vez mais acentuada, e de que é exemplo a mais recente cimeira que teve lugar em Madrid, a COP 25, sem resultados promissores e com um crescimento nas políticas nacionalistas no que respeita à sua prevenção e acção.
A título de exemplo, o relatório alerta para o facto de os estados estarem a adaptar-se a um dos mais dramáticos efeitos das alterações climáticas – o degelo no Árctico – não duplicando os esforços necessários para evitar uma crescente degradação ambiental, mas explorando, ao invés, a região para dela retirar vantagens geoestratégicas. O Concelho para o Árctico – que há mais de 20 anos tem servido como um importante mecanismo multilateral de colaboração entre os oitos Estados do Árctico – está sob ameaça. Uma nova “guerra fria” está a irromper entre vários países, incluindo a China, a Noruega, a Rússia e os Estados Unidos, sob a forma de uma aguerrida competição por peixe, gás e outros recursos naturais.
Como todos temos vindo a testemunhar, as alterações climáticas estão a afectar o planeta de uma forma muito mais forte e rápida do que se esperava. Os cinco últimos anos foram, de acordo com os registos existentes, os mais quentes de sempre, os desastres naturais são cada vez mais intensos e mais frequentes e o ano que passou foi alvo de fenómenos climáticos extremos sem precedentes. De forma alarmante, espera-se agora que as temperaturas possam subir pelo menos 3o C até ao final do século, o dobro do que os especialistas climáticos consideram como limite para se evitarem as mais severas consequências climáticas a nível social e económico.
A fragmentação digital
Mais de 50% da população mundial está agora online, aproximadamente um milhão de pessoas fica online pela primeira vez todos os dias e dois terços da população global possui um dispositivo móvel. Apesar de a tecnologia digital a representar enormes benefícios sociais e económicos, questões como o acesso desigual à Internet, a ausência de um modelo de governança tecnológica global e a ciber-insegurança assumem-se como riscos significativos. A incerteza geopolítica e geoeconómica – incluindo a possibilidade de um ciberespaço fragmentado – ameaça igualmente obstruir o potencial total das tecnologias da próxima geração.
Os respondentes ao inquérito do FEM consideraram a “deterioração da infra-estrutura de informação” como o sexto risco com maior impacto até 2030. E ambos os conjuntos de participantes identificaram “ciber-questões” – como os ciberataques, fraude e roubo de dados – no top 10 dos riscos a longo prazo. Adicionalmente, e enquanto o crescimento da digitalização oferece oportunidades que podem ser melhor capturadas através de abordagens coordenadas entre stakeholders, cria áreas que necessitam urgentemente de soluções igualmente coordenadas.
Uma dessas áreas é a Inteligência Artificial (IA). De acordo com a União Internacional das Telecomunicações das Nações Unidas, será necessária uma “colaboração interdisciplinar massiva” para desbloquear os avanços na IA. E porque esta pode igualmente dar origem a riscos significativos, a cooperação multilateral torna-se urgente para abordar desafios como a segurança, a verificação, os vídeos “deepfake”, a vigilância de massas e o armamento avançado.
Apesar da necessidade de um conjunto comum de protocolos globais, a IA transformou-se na nova fronteira para a concorrência geopolítica. Em 2017, o presidente russo Vladimir Putin afirmou que “quem conseguir ser o líder nesta esfera dominará o mundo”. A China tem vindo a encorajar fortemente as suas empresas a investirem em IA, tornando-a numa prioridade de segurança nacional. Nos Estados Unidos, o Centro de Inteligência Artificial pertencente ao Departamento da Defesa requereu, recentemente, que o seu orçamento fosse triplicado para um valor de 268 milhões de dólares, citando o rápido desenvolvimento das capacidades de IA na China e na Rússia como a razão para esta urgência.
Existem alguns progressos, contudo, com alguns stakeholders a trabalhar em conjunto no desenho de protocolos partilhados para a IA. O próprio Centro para a Quarta Revolução Industrial do Fórum Económico Global tem vindo a trabalhar com o Reino Unido na formulação de orientações mais éticas e eficientes para a IA. Estas orientações servirão como projectos-piloto em vários países da Europa, do Médio Oriente e da América Latina. E, em Maio de 2019, os 36 membros da OCDE adoptaram os Princípios da IA – o primeiro conjunto de princípios abraçados pelos respectivos governos – com o objectivo de se promover uma IA que seja “inovadora e confiável e que respeite os direitos humanos e os valores democráticos”. Todavia, e como em outras esferas, os desafios permanecem, com avisos de que a ressurgência das agendas nacionalistas poderá resultar no enfraquecimento da capacidade dos sistemas multilaterais para implementarem uma governança global da IA.
A 15ª edição do Relatório de Riscos Globais avalia o estado do mundo como “turbulento”e o ambiente geopolítico como “conturbado”, sublinhando que as velhas estruturas de aliança e as instituições globais estão a ser testadas. E faz um alerta: a não ser que se adoptem mecanismos multilaterais para este período incerto e destabilizado, os riscos que se avizinham podem chegar mais cedo do que esperamos.
Editora Executiva