Procurar oportunidades e resolver alguns dos principais problemas e desafios da Quarta Revolução Industrial, promovendo a eficiência e estimulando as práticas responsáveis do uso da tecnologia. De acordo com o Fórum Económico Mundial, este o principal papel das organizações da sociedade civil, na era digital. Num white paper apresentado recentemente, os seus autores demonstram o papel importante – e muitas vezes ingrato – das organizações sem fins lucrativos, sublinhando a importância do trabalho em conjunto e da partilha de conhecimentos
POR MÁRIA POMBO

À medida que a Quarta Revolução Industrial avança, todos aqueles que fazem parte da sociedade civil são chamados a resolver alguns problemas globais, sendo convidados a lutar pelos direitos humanos e a promover o diálogo com o intuito de criar um mundo mais justo e civilizado. E uma sociedade mais informada e com ideias inovadoras terá uma maior capacidade de lidar com esta revolução, utilizando a tecnologia de uma forma responsável e aproveitando as suas potencialidades para promover o bem, colocando assim a inovação ao serviço da sociedade.

De acordo com o Fórum Económico Mundial (FEM), “compreender as oportunidades e lidar com os desafios da Quarta Revolução Industrial exige uma sociedade civil comprometida com o desenvolvimento, com a utilização e com a gestão das tecnologias emergentes”. Num white paper, denominado “Civil Society in the Fourth Industrial Revolution: Preparation and Response” e publicado recentemente, os seus autores explicam que “é importante destacar e partilhar a forma como as organizações da sociedade civil (incluindo as que lutam por diversas causas, as que têm uma índole mais humanitária e os sindicatos de trabalhadores) estão a utilizar as tecnologias emergentes para aumentar a eficiência e o impacto das suas acções, e o modo como estas estão a lutar por práticas mais responsáveis nos diversos sectores e na própria sociedade”.

Porém, uma das principais conclusões do documento aponta para a ideia de que estas mesmas organizações têm tido dificuldades em responder a esta revolução e em promover a mudança tecnológica, já que lidam com pressões de natureza ambiental, política e económica, necessitando de estabelecer parcerias com organizações e grupos de todos os sectores, e de promover a disseminação de conhecimento, sendo certo que esta é a única forma de cumprirem os objectivos e promoverem uma sociedade melhor.

© DR

Compreender as comunidades e influenciar decisões

Organizado em três secções, o white paper pretende apoiar os membros das organizações da sociedade civil, os líderes empresariais, os filantropos e os dirigentes do sector público a compreender o modo como a sociedade começou a utilizar a tecnologia, a demonstrar os benefícios da utilização responsável de aparelhos tecnológicos, a lidar com as mudanças provocadas pela inovação, e finalmente (mas muito importante) a promover a união entre todos os agentes na procura de novos desafios e na resolução de problemas sociais urgentes.

Para contextualizar, os autores do documento apresentam as diversas tecnologias digitais emergentes que são relevantes no contexto do sector da sociedade civil. Em primeiro lugar encontram-se os dados da própria sociedade civil, os quais incluem o uso de dados internos, os dados gerados por cidadãos, e os dados abertos e de crowdsourcing, que são disponibilizados por bancos de dados do governo. Depois surgem os dados privados, os meta-dados e a Internet das Coisas (IoT), como os big data (que são definidos no documento como “traduções digitais de acções humanas, interacções e transacções alcançadas por dispositivos e serviços digitais), os dados dos cartões de crédito e débito, os endereços IP, os dados recolhidos nas redes sociais, a informação que chega via GPS, etc.

Ainda dentro das tecnologias emergentes encontra-se a inteligência artificial e a denominada “machine learning”, que reúnem os algoritmos (desde os tradicionais aos que são apreendidos através das máquinas e dos robots). O Blockchain, no qual se inclui a criptografia e as moedas digitais, não poderia deixar de fazer parte desta lista, tal como fazem os drones e os veículos autónomos. A impressão em 3D, bem como a realidade aumentada são outras tecnologias emergentes que fazem parte da sociedade civil e da Quarta Revolução Industrial. Por fim, os autores incluem neste grupo as biotecnologias, como a edição genética.

No primeiro capítulo do documento, os seus autores apresentam o modo como a sociedade civil utiliza as tecnologias emergentes, sendo certo que resolver diversos problemas na sociedade é o seu principal objectivo. Entre as diversas “funções” que desempenham, encontram-se coisas como compreender as comunidades e as suas necessidades, fornecer serviços, comunicar novas informações de forma uma mais eficaz, rastrear, compilar e verificar informações, e prever tendências e influenciar decisões. Porém, o documento alerta para a ideia de que cada organização deve escolher as suas “missões” e focar-se nelas, não devendo todas investir em todos os aspectos.

De acordo com Lauren Woodman, da Net Hope, “tornar-se uma organização digital exigirá a cada organização sem fins lucrativos um esforço concertado e uma inteligência partilhada”, não existindo dúvidas de que “trabalhar em conjunto permite a redução de custos” e a mais fácil resolução de problemas.

© DR

Organizações são “cães de guarda” e promotoras de solidariedade

A secção dois do documento debruça-se sobre as respostas da sociedade civil aos desafios colocados pela Quarta Revolução Industrial. Neste sentido, são apresentados alguns dos grandes escândalos tecnológicos provocados por empresas, governos e cidadãos comuns, que trouxeram à praça pública um conjunto de desafios com os quais é necessário lidar. O escândalo da Cambridge Analytica foi um dos mais graves, tendo recolhido, e como se sabe, dados de 50 milhões de perfis do Facebook com o objectivo de influenciar as eleições presidenciais norte-americanas.

Mas não foi o único. Desta lista faz igualmente parte o facto de o Facebook ter alegadamente tentado silenciar a comunidade Rohingya, no Myanmar, não permitindo a partilha de estudos e relatórios sobre a mesma nem a divulgação de informações sobre as perseguições que esta tem sofrido. A exposição de dados sobre bases militares globais é outro acontecimento apresentado, bem como o lançamento, por parte da Sky Net, da tecnologia Sharp Eyes nas comunidades rurais chinesas, através da qual – e com recurso a câmaras de vigilância – os cidadãos podem observar a vida dos seus familiares e amigos. Adicionalmente, o denominado Project Dragonfly, desenvolvido pela Google e aplicado na China, e que põe em risco os direitos humanos dos cidadãos daquele país também figura na lista dos mais graves escândalos tecnológicos levados a cabo pelas empresas.

E todos estes “incidentes” levam a que sejam diversas as organizações a lutar por um mundo mais responsável e justo, e onde a transparência e a confiança possam imperar na sociedade. Neste sentido, diversos são os grupos que têm criado acções contra as perseguições feitas aos Rohingya, procurando sensibilizar as comunidades para as injustiças de que são alvo. Por seu turno, diversos trabalhadores e cidadãos têm unido esforços para impedir o desenvolvimento do Project Dragonfly e de outros de igual natureza, chamando a atenção das organizações – e especialmente dos gigantes da tecnologia – que têm uma responsabilidade acrescida na promoção dos direitos humanos e na criação de bem-estar social.

Complementarmente, e para além de se focarem nas respostas a questões externas, as organizações da sociedade civil já começaram a debater o modo como devem gerir a tecnologia no terceiro sector, de modo a evitarem internamente os problemas que identificam nos outros sectores. A adopção de princípios éticos e de medidas de responsabilidade, a sensibilização para esta questão e o apelo ao envolvimento dos cidadãos que vivem nas comunidades onde estas se inserem, a criação de modelos alternativos de gestão e administração (como a partilha transparente de informação e conhecimento) são algumas das medidas que têm sido postas em prática. Complementarmente, estas organizações têm apostado na literacia digital dos seus stakeholders, através da promoção de formações e cursos online e presenciais, de modo a que estas competências sejam utilizadas para a criação de uma sociedade mais eficiente, transparente e justa.

Por fim, e em jeito de resumo, o terceiro capítulo do white paper do FEM apresenta algumas considerações transversais para a sociedade civil nesta era da revolução digital. Em primeiro lugar, fica claro que a sociedade civil está a lidar com uma grande pressão para desempenhar um conjunto de funções nesta Quarta Revolução Industrial, devendo para isso contar com o apoio de todos os seus stakeholders e criar sinergias que permitam que todos tenham um papel activo na resolução dos problemas que têm surgido.

Entre os diversos papéis que as organizações são convidadas a desempenhar encontram-se: os de activistas, que lutam por um mundo mais justo; os de “cães-de-guarda”, que estimulam a transparência e a confiança das instituições (nomeadamente através da criação de avaliações realizadas por entidades independentes); os de promotores de solidariedade, impulsionando os direitos fundamentais e demonstrando que a inovação deve ser posta ao serviço do bem-estar da população; e os de representantes de grupos marginalizados, dando-lhes voz.

E tudo isto faz com que as organizações da sociedade civil tenham o principal papel – que no fundo engloba todos os restantes – de resolver tensões sociais e promover o impacto positivo da tecnologia na sociedade. E é por este motivo que estas ocupam uma posição tão ingrata quanto privilegiada na Quarta Revolução Industrial.

Jornalista