POR HELENA OLIVEIRA
“A maioria das pessoas concorda que a vida é melhor que a morte. A saúde melhor que a doença. A subsistência melhor que a fome. A riqueza melhor que a pobreza. A paz melhor que a guerra. A segurança melhor que o perigo. A liberdade melhor que a tirania. Os direitos igualitários melhores que a intolerância e a discriminação. A literacia melhor que a iliteracia. O conhecimento melhor que a ignorância. A inteligência melhor que o entorpecimento. A felicidade melhor que a miséria. As oportunidades para gozar a família, os amigos, a cultura e a natureza melhores que a fadiga e a monotonia”.
Nesta que é uma definição possível – e quantificável – de progresso humano, poucos, muito poucos são os clamores que a proferem e que afirmam com convicção que vivemos num mundo bom, próspero e com vincadas razões para acreditarmos que o mesmo só tem tendência para ser cada vez melhor. Mas há uma voz que, teimosa e optimisticamente continua, com argumentos inabaláveis, a assegurar que assim é. Na senda do livro que lhe iria granjear ainda mais notoriedade do que a que já tinha – The Better Angels of our Nature – , o especialista e reconhecido professor de Psicologia da Universidade de Harvard, Steven Pinker publica agora uma espécie de follow-up do trabalho desenvolvido em 2011: Enlightment Now: The Case for Reason, Science, Humanism, and Progress.
Recordando os principais argumentos da sua anterior e literalmente pesada obra com 800 páginas, onde faz uma viagem multidisciplinar, desde a pré-história até aos nossos dias, e assegura, como tese central, que a guerra está em declínio, a humanidade menos violenta, menos racista e menos sexista e que o progresso moral tem vindo a registar um significativo aceleramento nas últimas décadas. Pinker afiançava, em 2011, que nós, humanos, estávamos muito menos bárbaros e muito mais “simpáticos”. Nesta nova obra, e actualizando muitos dos dados já apresentados com novas estatísticas e pesquisas – área onde é absolutamente imbatível – Pinker soma aos seus argumentos dois elementos extra: em primeiro lugar, a ascensão recente e aguerrida do populismo autoritário – personificado em grande parte, mas não só, por Donald Trump – e cujos desenvolvimentos variados têm conduzido a níveis elevados de desespero; em segundo lugar, e como tão bem aponta o The New York Times (Pinker é colaborador, entre outros meios, deste jornal secular), a defesa acérrima das quatro grandes ideias enunciadas no subtítulo do livro – progresso, razão, ciência e humanismo -, este último particularmente definido como o “objectivo de maximizar o florescimento humano”, ou seja, a vida, a saúde, a felicidade, a liberdade, o conhecimento, o amor e a riqueza das experiências, no qual Pinker continua a acreditar mas que, nos dias e no mundo que corre à nossa volta, parece quase inatingível. E é exactamente por isso mesmo que o optimista de Harvard pretende que voltemos a olhar para o que nos rodeia e que sejamos capazes de ter uma outra e mais optimista perspectiva. E por vários e honrosos motivos.
Afirmando que o catastrofismo é um risco em si mesmo – ou seja, a tendência para nos fixarmos nos piores resultados possíveis e imaginários e, por conseguinte, entrarmos em pânico -, o especialista de Harvard recorda também que, no geral, as pessoas ganham uma maior disponibilidade para trabalhar em conjunto de forma construtiva se acreditarem que os problemas têm solução ou de que o progresso até agora atingido – e porque é acompanhado pela razão, ciência e humanismo – é sempre passível de se prorrogar. Mas aí reside um dos principais problemas: como convencer as pessoas que o mundo está e pode ser melhor se vivemos rodeados de actos terroristas, se vemos crianças morrer nas ruas esburacadas da Síria, se assistimos ao êxodo desesperado de refugiados com escassos finais felizes, se os eventos climáticos extremos abrem os telejornais, se há Trumps, Putins, Kim Jong Uns, se as mulheres continuam a ser maltratadas, se o racismo persiste, se há guerras e conflitos intermináveis, se a fome e as doenças continuam a matar milhões de pessoas, entre tudo o que nos entra, olhos dentro, todos os dias, a toda a hora, de tal forma que já relativizamos, mudamos de canal ou de página, porque apenas queremos esquecer?
Em defesa do velho – e do novo – Iluminismo
Em The Better Angels of our Nature (sobre o qual o VER já escreveu), Pinker elegia o Iluminismo como a época em que a espécie humana começou a aprender a restringir os seus piores instintos. Tanto na vida pública como na privada, escrevia o autor que “de forma lenta, dolorosa mas, em última análise, com sucesso, a tortura foi banida, a escravatura abolida, a democracia estabelecida e as pessoas descobriram que poderiam confiar no Estado para as proteger”. E, no seu mais recente livro, é numa aposta no renascimento de um novo Iluminismo que Pinker volta a insistir.
Como já é seu hábito, o autor reúne de forma extensa dados provenientes de estudos detalhados que demonstram, sem dúvidas (e apresentados em gráficos simples e eficazes ao longo dos seus 15 capítulos) os progressos inspiradores que a espécie humana atingiu desde o século XVIII e a forma como este fenómeno contagiou positivamente todas as regiões do mundo, mas também alerta para o facto de “estes ideais do Iluminismo estarem ser tratados pelos intelectuais da actualidade com indiferença, cepticismo e, em vários casos, com desprezo”, indo ainda mais além, afirmando que estamos também a enfrentar “uma ameaça ao progresso humano” sob a forma de “um movimento político que tenta corroer os fundamentos deste mesmo Iluminismo”.
Numa crítica sagaz ao livro publicada na Harvard Business Review e assinada por Ada Palmer, a autora premiada e professora doutorada de História Europeia na Universidade de Chicago escreve que, face às problemáticas variadas com as quais os mundo se confronta há demasiado tempo – seja em termos de saúde, pobreza, igualdade, ecologia, justiça, entre outras tantas – as mesmas não são, naturalmente, novas, mas apenas problemas que se tornaram mais visíveis através “da torrente incessante e acelerante de más notícias e apelos contínuos à acção veiculados pelos media digitais e que levam muita gente à exaustão emocional”.
Ada Palmer sublinha igualmente que, em particular nos últimos dois anos, têm sido numerosos os seus alunos que comentam na sala de aula que “o sexismo, o racismo, a desigualdade ‘estão pior hoje do que jamais estiveram’” e que nem a resposta “normal” de uma historiadora – “Não, acreditem que já foi tudo muito pior, deixem-me falar-vos do que era a vida antes dos anos de 1950…” – serve de alento, “especialmente quando a raiva e a dor dos estudantes são justificadas e verdadeiras”. Mas é exactamente nestas situações que consultar o manancial dos dados metódicos de Pinker poderá funcionar como uma “contra-informação” e como uma ferramenta que permite restaurar um pouco da confiança perdida.
Sendo tantos e tão diversos os dados apresentados pelo psicólogo de Harvard para nos convencer que a vida está muito melhor em virtualmente todos os seus domínios, não é fácil elencar os mais importantes. Mas e em termos de tendências globais, é verdade que a esperança de vida está aumentar sem qualquer precedente, que a mortalidade infantil e materna está em declínio vigoroso, que existe um aumento global no consumo de calorias, que as fomes têm uma expressão cada vez mais reduzida, que o rendimento per capita aumentou em todo o mundo e que a pobreza extrema continua a diminuir, que mesmo que as notícias digam o contrário os níveis de poluição e a desflorestação apresentam níveis mais reduzidos e que a marcha da democracia e dos direitos humanos continua em frente. Adicionalmente, o trabalho infantil está em declínio e a literacia global atingiu valores jamais vistos, as pessoas trabalham menos horas e despendem mais tempo em actividades de lazer, gozando melhor os seus períodos de reforma.
A juntar às grandes tendências – e por curiosidade – deixamos ao leitor alguns outros dados mais “estranhos” e escolhidos por Bill Gates no seu website pessoal, no qual confessa que, actualmente, o livro de Pinker é o seu “favorito de todos os tempos”, algo que já afirmava sobre o The Better Angels from Our Nature:
- Existem 37 menos vezes de probabilidades de se ser morto por um relâmpago do que no virar do século e tal não se deve ao facto de existirem menos trovadas na actualidade, mas sim porque existem maiores capacidades de previsão meteorológicas, mais educação para a segurança e porque há muito mais pessoas a viver nas cidades;
- O tempo despendido a lavar roupa caiu de 11,5 horas por semana em 1920 para uma hora e meia em 2014. O que parece um facto trivial assume-se, ao contrário, como um enorme progresso, pois a existência das máquinas de lavar roupa melhoraram consideravelmente a qualidade de vida, ao libertarem tempo – em particular para as mulheres – para a perseguição de outras tarefas. Este “tempo extra” representa quase meio dia semanal que pode ser utilizado para nos sentarmos no sofá e ver vários episódios da nossa série televisiva favorita, para ler um livro ou para dar início a um negócio;
- É muito menos provável que se morra de um acidente de trabalho. Todos os anos e em média, são cerca de cinco mil as pessoas que perdem a vida em acidentes de trabalho nos Estados Unidos. Mas em 1929 – quando a população nos EUA era menos que dois quintos da sua dimensão actual – 20 mil pessoas encontravam o seu fim em acidentes no local onde trabalhavam;
- O QI médio global está a crescer três pontos por década. Os cérebros das crianças estão a ter um desenvolvimento muito mais acentuado, graças a um melhor regime nutricional e a um ambiente mais limpo. Pinker confere também um maior crédito ao pensamento analítico em expansão dentro e fora das salas de aulas, bastando pensar nos inúmeros símbolos que nos habituámos a interpretar no nosso quotidiano, seja cada vez que verificamos o ecrã dos nossos telemóveis ou olhamos para um mapa do metro. O mundo da actualidade, de acordo com Pinker, encoraja o pensamento abstracto desde a mais tenra idade, o que tem resultados positivos na nossa inteligência;
- A guerra é ilegal e o que parece uma premissa óbvia não tem assim tanto tempo de vida. Apesar de os conflitos continuarem, é verdade que antes de 1945 e da criação das Nações Unidas (cada vez mais votadas ao descrédito, também há que dizê-lo), não existia nenhuma instituição com poder para evitar que os países entrassem em guerra uns com os outros. A ameaça das sanções internacionais e a intervenção em caso de prevaricação têm funcionado como um eficaz dissuasor da guerra entre nações.
Em entrevista ao The Guardian, Pinker lista outro tipo de avanços sem preço alcançados pelas sociedades modernas: “Recém-nascidos que viverão agora mais de oito décadas, mercados transbordantes de alimentos, água limpa que aparece com um toque de um dedo e lixo que desaparece com o toque de um outro, comprimidos que apagam uma infecção dolorosa, filhos que não são enviados para a guerra, filhas que podem passear nas ruas em segurança, críticos do poder que não vão para a prisão ou são fuzilados, o conhecimento e a cultura disponíveis num pequeno bolso”.
Ou seja, para o investigador de Harvard, que também afirma que o Iluminismo não é uma era distante apenas do interesse de historiadores e filósofos, mas e ao invés, representa os fundamentos de todos os muitos benefícios e vantagens que não nos merecem uns meros segundos de apreço em pleno século XXI, não nos podemos esquecer que todos estes avanços não são “desenvolvimentos inevitáveis”, mas sim “os frutos dos métodos e valores que foram inicialmente popularizados no século XVIII”. E é por isso que defende este regresso da ideia e da importância do Iluminismo para nos fazer acreditar que o mundo não está tão mau como as evidências parecem demonstrar e exorta que devemos lutar contra as forças que ameaçam os valores que o caracterizam e fazem perigar.
Como explica na entrevista citada:”Entre outras coisas, estes [os valores] estão sob ameaça devido ao populismo autoritário, ao fundamentalismo religioso e ao radicalismo da esquerda e da direita”. E acrescenta ainda que “os grandes sucessos de que o mundo beneficiou ao longo das últimas décadas e séculos são tidos como garantidos, pois muitas das ideias responsáveis pelos mesmos passaram a fazer parte do estabelecido e ninguém tem vontade de as defender”. Por este motivo, sublinha Steven Pinker, qualquer que seja a coisa que dê certo ou que corra bem não é associada a nenhum movimento, a nenhum valor, “o que deixa o vácuo perfeito para ser ocupado pelas forças do extremismo”. Daí a sua vontade de resgatar este Iluminismo como a bússola orientadora que poderá guiar a humanidade através da razão, da ciência, do humanismo e do progresso.
A humanidade sempre foi capaz de ultrapassar os seus desafios. Por que não agora?
Pinker não seria ingénuo o suficiente se não abordasse os inúmeros – e significativos – desafios com que se confronta a espécie humana. E até mesmo algumas das suas ameaças existenciais, com as alterações climáticas a ganharem o estatuto de maior perigo.
Como escreve, muitos desafios como a revolução da robótica, a inteligência artificial, o ciberterrorismo, as superbactérias, entre vários outros, estão à espreita. Mas mesmo nestes casos, há que colocar tudo em perspectiva. Sim, é verdade que um ataque terrorista bem-sucedido poderá matar milhares de pessoas, ou um surto de um vírus mortal poderá eclodir e matar dezenas de milhares. Mas, ressalva, este tipo de ocorrência não ameaça a existência da nossa espécie. Uma guerra nuclear, pelo contrário, poderia, sim, resultar na destruição da nossa espécie. Mas, até neste campo, as estatísticas ajudam: em 1986, existiam cerca de 65 mil ogivas nucleares; hoje, não existem mais de 10 mil, o que para Pinker significa progresso. Ou seja, o que pretende afirmar é que o perigo não reside num problema específico e supostamente irresolúvel problema e que a história demonstra que o humanos têm sido capazes de abordar grandes desafios, mesmo que gradualmente.
O grande perigo reside, na sua opinião, em voltarmos as costas aos meios através dos quais os problemas podem ser resolvidos – a razão, a ciência e o humanismo -, os mesmos valores do Iluminismo que Pinker acredita estarem sob o assalto dos extremismos da Esquerda e da Direita e que são devidamente apoiados na actual era da pós-verdade, onde os media têm igualmente uma – má – palavra a dizer. É que vivemos também na era do pessimismo irracional, o qual é estimulado por um interesse mórbido relativamente a tudo o que pode dar errado, sendo que existem sempre mais eventos que podem dar errado do que certo.
Não é que as pessoas sejam naturalmente sombrias. Pelo contrário, têm até a tendência para olharem para as suas vidas com lentes cor-de-rosa: como enumera a revista Time num artigo sobre a dificuldade das pessoas sentirem optimismo face ao mundo que as rodeia, a tendência é afirmarem que são felizes, que as escolas frequentadas pelos seus filhos são boas, que o bairro onde vivem é seguro e que têm menos probabilidades do que a média de sofrerem de um acidente, de contraírem uma doença grave, de serem despedidas ou serem vítimas de um crime. Todavia, se lhes perguntam como vai o estado do país em que vivem, ou do mundo em geral, a tendência é para considerar que “está tudo uma miséria” e que o vivemos cada vez mais perto do inferno.
Esta desconexão entre o cor-de-rosa e o cinzento cada vez mais escuro tem origem na natureza das notícias. “As notícias são sobre o que acontece e não sobre o que não acontece, daí centrarem-se em eventos súbitos e dramáticos, como incêndios, fábricas que fecham, tiroteios ou ataques de tubarões”, pode ler-se, e “os desenvolvimentos mais positivos não são amigos das câmaras, nem ‘são construídos num dia’”. E basta pensarmos que não se vêem notícias sobre um país que não está em guerra, ou sobre uma cidade que não foi atacada por terroristas – e muito menos sobre o facto de “desde ontem, 180 mil pessoas terem escapado da pobreza extrema”.
Ou e em suma, as nossas percepções sobre o risco são conduzidas não pelas estatísticas, mas sim pelas imagens e pelas histórias às mesmas subjacentes. As pessoas consideram os tornados (que matam dúzias de americanos por ano) como mais perigosos do que a asma (que mata milhares de pessoas), presumivelmente porque os tornados “dão” imagens muito melhores para as televisões.
No mesmo artigo da Time, é igualmente explicada a nostalgia que as pessoas sentem relativamente ao passado – que é sempre melhor que o presente – e o facto desse prazer mórbido de se considerar que tudo é pior do que já foi contribuir, em muito, para considerarmos o mundo – e o futuro – como crescentemente maus.
No final de Enlightment Now, Pinker argumenta que “nunca teremos um mundo perfeito” e que seria perigoso procurarmos essa perfeição. Mas também garante que “não existem limites para as melhorias que poderemos atingir desde que continuemos a aplicar o conhecimento para aumentar o florescimento humano”.
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