Mergulhado na crise, Portugal é também um País ”asfixiado por mentiras”, onde alguns grupos económicos dominam a actividade política, que se transformou numa “megacentral de negócios”. Afinal, a culpa da crise não é dos gastos excessivos dos portugueses, mas da corrupção, como é fácil de entender, com apenas dois exemplos que nos dá, em entrevista, Paulo de Morais, a propósito do seu mais recente livro: o crédito à aquisição de bens de consumo representa apenas 15% da dívida privada. E cerca de um terço dos deputados no Parlamento é administrador, director, consultor ou advogado de grupos ou empresas que mantêm grandes negócios com o Estado
Portugal “vive hoje intoxicado por duas mentiras colossais”: a primeira é a ideia, repetida à exaustão, de que os portugueses são responsáveis pela crise, porque andaram a gastar acima das suas possibilidades. A segunda, é a de que não existe alternativa à austeridade. É nesta denúncia da corrupção face à crise que assenta o mais recente livro de Paulo de Morais, vice-presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade (representante da rede global contra a corrupção Transparency International), publicado em Maio pela Gradiva, e que vai já na sua 7ª edição. “Da Corrupção à Crise – Que Fazer?” é uma chamada de atenção para “uma sociedade asfixiada por mentiras”, que caiu em profunda crise económica essencialmente devido aos fenómenos de corrupção que grassam em Portugalnas últimas décadas. Sublinhando que “quem viveu e esbanjou muito acima das suas possibilidades foi a classe política e seus apaniguados”, e não os portugueses, o autor defende que a principal causa para a situação em que o País se encontra mergulhado é a corrupção: alguns grupos económicos, apoiados pelas grandes sociedades de advogados, dominam completamente a actividade política que se transformou, ela própria, numa megacentral de negócios. “Nas últimas décadas, assistimos a uma festança sem limite com os dinheiros públicos, que foram canalizados, com a cumplicidade de muitos, para os grupos económicos que dominam a vida política nacional”, acusa. E de central de negócios, a política “passou agora para uma central de propaganda que nos vende esta ideia de que o estado a que chegámos é inevitável e inalterável”. Precisamos de líderes sérios, não de lições de moral A maior chaga social de Portugal – o desemprego -, e a consequente depressão e medo que “se apoderaram dos portugueses” são também focadas na obra de Paulo de Morais, que tece em relação à Administração central e ao poder local, fortes críticas. No primeiro caso, denunciando os abusos dos contratos de parcerias público privadas (PPP), “os mais criminosos de todos os negócios públicos”; a criação de organismos-fantasma como as Fundações, o crescimento de certos monopólios e oligopólios, o processo de compra de submarinos pelo Ministério da Defesa a uma empresa alemã (no qual, diz, “a corrupção foi demonstrada de forma incontestável”, mas enquanto na Alemanha “há já responsáveis condenados e encarcerados”, em Portugal “a Justiça mostra-se incapaz de identificar e levar a julgamento os culpados”); o desbarato com que o Governo vem privatizando empresas detidas publicamente, por força do memorando de entendimento com a troika; e, a primeira dessas privatizações, o caso BPN, sobre o qual “a fraude é de uma simplicidade arrasadora”, aponta. No que concerne o poder local, Paulo de Morais conclui que “é democrático mas pouco”, comentando a perversão das autarquias face aos negócios do imobiliário; os “agarrados ao poder” que resolveram reinterpretar a lei de limitação de mandatos às câmaras municipais; as inúmeras promiscuidades (leia-se mesmo tráfico de influências) entre interesses privados e o bem público – infelizmente uma “regra vigente na política em Portugal”; ou a Justiça inoperante, que não actua perante a corrupção que mina o poder local. E são muitos os casos sobre os quais “pairam enormes cortinas de fumo, com informações viciadas e contraditórias, que têm por efeito confundir a opinião pública”, conclui. Expondo então, de forma realista, a actualidade de “um povo entre a espada e a parede”, graças à crise, ao desemprego e à falta de “dirigentes competentes e sérios”, que vive confinado num “país agrilhoado”, Paulo de Morais conclui que`a austeridade não é o único (ou necessariamente o melhor) caminho para sair da crise económica e social que vivemos. As alternativas passam por, antes de mais, combater “a causa maior da crise: a corrupção”. Portugal “tem condições de localização, históricas naturais, físicas e humanas para permitir um desenvolvimento sustentado e proporcionar qualidade de vida a toda a população”, e tal “apenas não acontece porque o país tem uma tradição de mau governo crónica, que é simultaneamente consequência e causa da corrupção”. Trabalhe-se, pois, sobre este combate, garantido transparência na vida pública, leis claras e simples e eficácia na justiça, aponta o autor. Procurando “uma solução justa para o défice, o fim do esbanjamento de recursos e, principalmente, “uma nova classe política”. Campeões da corrupção na Europa “Arrasadores”, os números deste fenómeno colocam Portugal, em finais de 2012, a ocupar “um modestíssimo 33.º lugar” do Ranking da Transparência que elenca os países em função da sua capacidade de se libertarem do fenómeno da corrupção. Em termos europeus, só a Itália e a Grécia, com uma administração pública desestruturada, e alguns países de leste, se classificam atrás de Portugal. Segundo o autor de “Da Corrupção à Crise – Que fazer?”, o maior problema nesta análise é a tendência: Portugal desceu, no ranking, do 23.º lugar em 2000, para o 32.º em 2010. O que revela “uma década negra em termos de diminuição de transparência da Administração e da política”, durante a qual “Portugal obteve o vergonhoso título de campeão do aumento da corrupção» É pois perante um país que empobrece à medida que a classe média se extingue e o desemprego alastra, que a corrupção aumenta continuamente, agravando-se os mecanismos que a impulsionam e a promiscuidade entre a política e os negócios que a fazem proliferar. E é assim que se torna tão fácil de perceber aquilo que “os portugueses precisam de saber: que a ideia, repetida à exaustão, de que são os responsáveis pela crise, porque andaram a gastar acima das suas possibilidades, comprando bens de consumo que não deviam e a que não tinham direito, mantendo este comportamento “reiteradamente e de forma descontrolada ao longo de anos e anos, é um logro. Antes, na classe política, “muitos foram e são os que se alimentaram da enorme manjedoura que é o orçamento do Estado”, com a administração central e local a enxamearem-se de milhares de boys, criando institutos inúteis, fundações fraudulentas e empresas municipais fantasma, e fazendo assim suceder ao longo das décadas os casos de corrupção.
Como conclui Paulo de Morais na sua obra, “todos estes negócios e privilégios, concedidos a um polvo que, com os seus tentáculos, se alimenta do dinheiro do povo, tem responsáveis conhecidos. Que a Justiça portuguesa jamais pune”. O autor alerta assim, num acto de cidadania, para a necessidade de enquanto povo, não termos remorsos pelo estado das contas públicas, “sentimento que nos querem infligir através de mentiras continuadas”. Ao contrário, devemos “exigir a eliminação dos privilégios que nos encaminham para a ruína”, e recusar a ideia de que não há alternativa à política de austeridade que nos fustiga: “a austeridade é-nos apresentada como um castigo justo, face a um alegado comportamento crónico de exagerados hábitos de consumo”. Ora, “nem os portugueses merecem castigo, nem a austeridade é inevitável”, defende. E “não é culpando um povo pelos erros da sua classe política que se resolve a crise. Resolve-se combatendo as suas origens (a dívida pública e a privada), o regabofe e a corrupção”, remata. Recorde-se que em 2009, quando a crise em Portugal sentia os seus primeiros efeitos, 70% da dívida privada era do sector imobiliário, e apenas 15% era devida ao crédito ao consumo e resultaria de gastos eventualmente excessivos dos cidadãos. Quanto à dívida pública, Paulo de Morais não tem dúvida de que “é a corrupção que constitui a principal causa de sucessivos negócios ruinosos na administração pública, verdadeiros roubos que conduziram ao descalabro das contas públicas: não é o Serviço Nacional de Saúde, as pensões aos reformados ou a Educação”. Em entrevista ao VER, o autor e actual vice-presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade, sublinha que quando “o conflito de interesses é constante, a promiscuidade é a regra”, e em alguns casos em Portugal “o interesse público está inteiramente capturado pelos interesses privados”. Situação perante a qual “a Justiça tem de se autonomizar completamente do poder político, sobretudo no plano orçamental”, conclui.
No seu mais recente livro, defende que a ideia reiterada de que os portugueses são os responsáveis pela actual crise económica, porque andaram a viver acima das suas possibilidades é falsa, “um embuste”. Quais são as verdadeiras razões para o défice e dívida pública e privada que colocaram o País no actual estado de ‘dependência’? Por outro lado, mesmo a dívida privada é maioritariamente dívida imobiliária. Em finais de 2008, esta representava 68% de toda a dívida privada nacional. E a dívida imobiliária resulta maioritariamente de fenómenos de especulação imobiliária originados nas autarquias pela via da corrupção nos pelouros do urbanismo. O crédito à aquisição de bens de consumo, eventualmente supérfluos e acima das possibilidades dos portugueses, como telemóveis, viagens ou automóveis, representa apenas quinze por cento da dívida privada. Portugal tem uma história de décadas de facilitismo na concessão de favores e privilégios e de proliferação de fraudes e negócios ilícitos, tanto na Administração Central como na Local. Como é que se explica a facilidade com que se transferem recursos públicos para grandes grupos económicos, violando as normas internacionais de transparência na gestão, e propagando assim a “epidemia fatal” que é a corrupção? Entre os inúmeros casos desta corrupção reiterada que “ao longo das últimas décadas nos empobreceu”, destaca os contratos de parcerias público privadas como os “mais criminosos de todos os negócios públicos”, nomeadamente ao nível das PPP rodoviárias, e o caso BPN, pela sua dimensão. O que é que estes casos mais flagrantes revelam da falta de ética na cultura organizacional das instituições, públicas e privadas? O caso do BPN tem também origem em ligações à política e a mecanismos de financiamento partidário. Os empresários da Sociedade Lusa de Negócios (detentora do BPN) compraram a sua imunidade financiando partidos políticos. Estes por sua vez dominam a Administração Pública que não incomoda jamais os detentores da SLN. Mais uma vez as interdependências e a promiscuidade permitem que um grupo privado se apodere de recursos públicos, neste caso através da nacionalização de um banco em situação de falência fraudulenta. A corrupção em Portugal é hoje “um polvo que, com os seus tentáculos, se alimenta do dinheiro do povo”, cujos responsáveis são conhecidos mas permanecem impunes. Que reviravolta precisa a Justiça portuguesa de dar, na sua relação com o sistema político, para que haja um combate eficaz à corrupção, capaz de inverter a tendência de crescimento do fenómeno verificada nos últimos anos?
Para além disso, a Justiça tem de conseguir recuperar os activos que foram roubados à comunidade através da corrupção. Como? Demolindo prédios ilegais, confiscando o capital das empresas detidas pelos actores da corrupção, congelando contas bancárias, recuperando capital depositado em contas secretas detidas no Luxemburgo ou na Suíça. Ou seja, seguir as boas práticas da Justiça alemã, francesa ou até italiana. Ao longo do seu percurso, foi dirigente associativo, docente e trabalhou no sector privado e no público (onde assumiu o cargo de vice-presidente da CM do Porto), fundando em 2010 a Associação Cívica Transparência e Integridade. A que se deve este seu combate de sempre pela denúncia dos mecanismos de corrupção em Portugal? Sem corrupção na Administração pública, com uma aplicação adequada dos recursos (que nem sequer são escassos), Portugal poderia ter níveis de vida equivalentes aos da Suíça ou da Dinamarca. Lutar pelo desenvolvimento é, em primeira instância, lutar contra a corrupção. Mas igualmente importante é lutar contra o medo. Se os portugueses, enquanto comunidade, deixarem de ter medo de combater a corrupção, Portugal tornar-se-á um país rico e desenvolvido em poucos anos.
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Jornalista