Podemos estar a educar mal as nossas crianças. Esta não é uma citação mas é uma das principais ideias de um estudo de Harvard, no qual se conclui que existe um desfasamento entre os valores que os adultos consideram importantes e aqueles que transmitem aos seus filhos e/ou alunos. A importância que é dada à realização pessoal, enquanto caminho para o tão almejado “sucesso”, parece abafar valores fundamentais como a bondade, a compaixão e a justiça. Para inverter esta tendência, os investigadores da conceituada universidade elaboraram também um guia que pretende ajudar pais e professores a promoverem, junto dos mais novos, estas virtudes
POR
MÁRIA POMBO

Em Setembro de 2013, e após o fim-de-semana em que se comemorou o Labor Day, os Estados Unidos acordaram com uma notícia: a casa do ex-jogador da National Football League Brian Holloway fora invadida por cerca de 300 adolescentes, os quais conseguiram sujar tapetes, graffitar paredes e roubar objectos pessoais, enquanto partilhavam, nas redes sociais, diversas imagens do que iam fazendo, como se aquela acção fosse um motivo de orgulho.

Descontente, Holloway não compactuou com este comportamento e convidou os autores deste acto de vandalismo a pedir desculpa e a emendar todos os estragos que tinham feito na sua casa. Dos 300 jovens, apenas quatro se mostraram arrependidos e aceitaram o desafio de limpar tudo, mas o mais surpreendente foi que muitos pais defenderam estes “pequenos selvagens”, incentivando-os assim, consciente ou inconscientemente, a repetir acções similares.

Na sequência deste acontecimento, e do seu impacto mediático, estalou o inevitável debate relacionado com os motivos que teriam levado estes 300 jovens a ter este comportamento destrutivo, a não sentirem remorsos com o mal que causaram na vida de outra pessoa, tendo também sido interrogada a conduta dos pais por defenderem os actos cruéis dos filhos ao invés de promoverem, junto destes, um atitude adequada e correcta.

Com base nesta história, e enquadrando-se no seu projecto Making Caring Common (MCC) – que pretende ajudar pais, educadores e a própria comunidade a promover, junto dos mais novos, o sentido de compaixão, de justiça, de compromisso e de responsabilidade perante os outros e a comunidade onde vivem –, a Harvard Graduate School of Education realizou o estudo The Children We Mean to Raise, no qual tentou “dissecar” a importância que tem a bondade para as crianças e jovens e de que modo é que esta lhes é transmitida pelos adultos.

Esta análise contou com a participação de 10 mil jovens do terceiro ciclo e secundário de 33 escolas norte-americanas. Embora o estudo já não seja propriamente recente, a iniciativa MCC continua a funcionar, disponibilizando inquéritos que podem ser feitos aos alunos de qualquer escola, a nível mundial; no interior do mesmo projecto, o movimento Caring Schools pretende levar a inclusão às escolas, tornando-as mais éticas e justas, e desincentivando o bullying e a discriminação entre os jovens.

[pull_quote_left]Um estudo de Harvard conclui que 80% dos jovens colocaram a realização pessoal e a felicidade em primeiro lugar, e apenas 20% escolheram os cuidados para com os outros[/pull_quote_left]

Dos 10 mil jovens que responderam ao inquérito, 80% colocaram a realização pessoal e a felicidade em primeiro lugar, e apenas 20% escolheram os cuidados para com os outros. Seguindo esta tendência, também a justiça/honestidade obteve uma percentagem bastante mais reduzida que outros valores, o que permitiu aos autores do estudo concluir que tudo o que esteja relacionado com o interesse pessoal – incluindo, por exemplo, o esforço – é invariavelmente mais importante. Aliás, uma das grandes conclusões do estudo é que a felicidade, o trabalho árduo e a realização pessoal são claramente considerados como valores muito importantes por parte da maioria dos jovens, mas nem sempre tendo em vista as melhores motivações.

Importa assim esclarecer que, para muitos adolescentes, ser esforçado e trabalhador é uma forma de ajudar os pais, compensando-os pelo sacrifício que fazem para os educar, e pode ser visto como um gesto altruísta; mas, para outros, esta é uma mera forma de satisfazer alguns caprichos e objectivos pessoais, sendo encarado como uma atitude egoísta e egocêntrica.

Os investigadores de Harvard explicam também que esta onda de preocupação intensa com a felicidade e auto-estima é relativamente nova e que nunca antes o amor-próprio mereceu tanta reflexão, como agora, por parte de adultos e crianças. Já a importância do sucesso, nomeadamente a nível escolar, embora não seja uma novidade, tem vindo a adquirir perspectivas diferentes ao longo dos tempos, tendo em conta que, por exemplo, na década de 40, apenas 1/4 dos adultos com mais de 25 anos tinha completado o ensino secundário, enquanto, em 2009, essa percentagem era de quase 90%.

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Eu ou os outros? É no equilíbrio que está a virtude

Ainda de acordo com o mesmo estudo, não existe nada de errado com o facto de os adultos criarem as condições necessárias para que as crianças cultivem a sua auto-estima e sejam felizes. Preocupante é quando, para se dar prioridade ao sucesso pessoal, são deixados para trás valores tão importantes como a honestidade e o cuidado com os outros, já que são estes que impedem diversos comportamentos negativos (como a crueldade, a zanga, o desrespeito e a desonestidade).

Entre as diversas formas de desonestidade e os variados comportamentos negativos estão actos tão simples e comuns como copiar nos testes, tratar mal os colegas e faltar ao respeito a professores. O grave de tudo isto é que uma sociedade saudável precisa de jovens comprometidos com as suas comunidades e capazes de colocar o bem comum acima dos seus próprios interesses, sendo notório que os jovens inquiridos parecem não estar preparados nem sensibilizados para tal.

Uma questão que merece reflexão e que pode estar na origem deste problema é o facto de existir uma diferença acentuada entre aquilo que os adultos consideram importante e a mensagem que transmitem aos seus filhos e educandos, no dia-a-dia. Ou seja, se por um lado, são muitos os pais que afirmam que o cuidado e a atenção para com os outros é mais importante que o sucesso pessoal dos filhos, por outro, 80% dos jovens inquiridos afirmam que os seus pais estão mais preocupados com as suas conquistas e felicidade do que com o facto de tratarem bem ou mal os seus pares. Frases como “os meus pais ficam mais orgulhosos de mim se eu tiver boas notas do que se eu me preocupar com o bem-estar dos meus colegas de turma” foram bastante comuns na análise e reforçam esta mesma ideia. Semelhante é também a percepção dos jovens relativamente ao que os professores consideram ser mais importante, colocando “ter boas notas” em primeiro lugar.

[pull_quote_left]A maioria dos estudantes considerou que o empenho é o mais importante mas que os seus colegas dão mais importância a valores relacionados com a “fama” e a aparência[/pull_quote_left]

Podendo ter um efeito benéfico na aproximação entre pais e filhos, a verdade é que as tecnologias também ajudam os adultos a “entupir” diariamente os telemóveis dos jovens com mensagens sobre felicidade e com a importância de serem bons alunos – o “sucesso” tem sempre primazia – remetendo para o “esquecimento” o facto de viverem numa comunidade e que aprender a fazer o bem é essencial ao crescimento de qualquer ser humano. A ironia está no facto de que esta enorme preocupação dos pais com o contentamento e sucesso dos filhos não aumenta necessariamente a verdadeira felicidade que estes podem sentir nem os faz ser melhores alunos.

Não existem dúvidas de que ser feliz, realizado, esforçado e ter uma boa auto-estima é fundamental ao desenvolvimento saudável de qualquer criança, mas estes valores devem ser igualmente acompanhados de outros, como ser generoso, justo, preocupado e atencioso. Complementarmente, a preocupação excessiva com a felicidade das crianças pode, ainda, originar a diminuição da empatia e da atenção ao mundo que as rodeia. O ideal será, então, promover um equilíbrio entre as preocupações individuais e o cuidado com os outros. Dando um exemplo de como esta conjugação pode ser simples, os autores do documento explicam que muitas pessoas conseguem sentir-se imensamente felizes por ajudar outras pessoas, através de voluntariado ou de acções espontâneas no dia-a-dia.

A boa notícia é que, apesar de não serem a primeira opção, muitos comportamentos positivos são – pelo menos em teoria – considerados relevantes para os jovens e também para os pais e professores. Cerca de dois terços dos adolescentes inquiridos afirmam que a bondade é um dos três principais valores a ter em conta, e 63% colocam a honestidade neste mesmo pódio.

A maioria dos jovens assume também que, para os seus pais, a bondade é uma qualidade relevante. O problema reside, então, no facto de muitos adultos serem adeptos da máxima de “faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço”, levando os adolescentes a seguir os seus exemplos, e não os seus conselhos.

Curioso é também o facto de existir, entre os jovens, uma diferença entre “ser bom” e “cuidar dos outros”, já que muitos jovens consideram que a bondade é um valor relevante, mas que cuidar dos outros não é um gesto muito importante, nem para si próprios nem para os colegas. Assim, 60% dos inquiridos consideram que a realização pessoal é o mais importante, entendendo que os seus pares pensam da mesma forma. E a percentagem de estudantes que considera que os seus colegas concordam com a frase “sinto-me mais orgulhoso por ter boas notas do que por me preocupar com os meus colegas de turma” é três vezes superior à percentagem de jovens que acredita que os seus pares discordam da mesma.

No mesmo documento, foram também comparados os valores “principais” – justiça, bondade, empenho, perseverança – com outros mais “ligeiros”, como a “atractividade” e popularidade que têm junto dos demais pares. Aos estudantes foi pedido, por um lado, que escolhessem qual destes é, para si, o mais importante e, por outro, qual consideram que os seus colegas acham mais relevante.

No que respeita à opinião pessoal, a maioria dos estudantes considerou que o empenho é o mais importante, sendo esta percentagem muito superior à de alunos que escolheram a justiça ou a bondade como os principais valores. Por outro lado, muitos jovens consideram que, para os colegas, a popularidade é o valor primordial, seguindo-se o empenho e também a atractividade, o que permite concluir que muitos adolescentes consideram que os seus colegas dão mais importância a valores relacionados com os níveis de “fama” e com a aparência.

Seja pelo facto de vivermos numa sociedade altamente competitiva ou porque a tendência “natural” dos pais é tentarem dar aos filhos aquilo que lhes faltou na infância, a verdade é que o desfasamento entre aquilo que os adultos consideram importante e a mensagem que passam aos seus filhos permite concluir que, de facto, estes podem não estar a transmitir o que melhor poderá contribuir para um crescimento “saudável”, responsável e solidário. Também merece alguma reflexão o facto de existirem diferenças entre a opinião dos jovens e a percepção que estes têm acerca dos valores que os seus colegas consideram essenciais.

Provavelmente é necessário substituir, algumas vezes, o “sê feliz” e o “tem boas notas” pelo “sê mais generoso e atencioso”, e talvez seja importante reforçar (e demonstrar) junto das crianças que estas devem fazer o bem, mesmo que, nesse momento, não se sintam tão felizes quanto desejariam.

Bondade: a capacidade de fazer zoom in e zoom out

05012017_Trabalhar2Com o objectivo de inverter esta tendência de egoísmo e egocentrismo tão presente actualmente, os investigadores de Harvard apresentaram, no mesmo documento acima referido, um pequeno guia que ajuda os pais, professores e outros educadores de qualquer parte do mundo a promover, junto das crianças e jovens, a bondade, a generosidade, a justiça, a compaixão e a atenção em relação aos outros.

O primeiro ponto refere-se ao facto de as crianças e jovens necessitarem, permanentemente, de “praticar” a compaixão e serem estimuladas a ajudar, muitas vezes com o apoio dos adultos. Neste aspecto, os autores do documento reforçam que “nenhuma criança nasce boa ou má” e que “nunca devemos desistir de nenhuma delas”. Praticar o “cuidado ou a atenção” para com o outro é como “aprender a tocar um instrumento musical”, ou seja, é um acto necessita de repetição para que possa ser aperfeiçoado. Ajudar um amigo a fazer os trabalhos de casa, colaborar nas tarefas domésticas ou fazer parte de um projecto de apoio a pessoas sem-abrigo são algumas das estratégias que podem ser postas em prática. Este gesto permite ensinar às crianças quando devem intervir em situações nas quais eles próprios ou os outros estão em perigo ou a precisar de ajuda, aprendendo a defender/auxiliar alguém, de forma eficaz.

O segundo aspecto está relacionado com o facto de as crianças precisarem de aprender, tanto a estar atentas e a ajudar o seu círculo mais próximo (ou seja, a fazer zoom in), como a ter consciência do plano geral e a compreender que podem existir diversas perspectivas sobre a mesma realidade (ou seja, a fazer zoom out). E fazer zoom out nem sempre é uma tarefa fácil, pois implica aprender a observar perspectivas que, à primeira vista, podem parecer invisíveis (como o colega recém-chegado à turma, ou o menino imigrante que fala outra língua). A atenção e o sentido de justiça são dois dos valores que este exercício permite desenvolver.

[pull_quote_left]É necessário substituir, algumas vezes, o “sê feliz” e o “tem boas notas” pelo “sê mais generoso e atencioso”[/pull_quote_left]

Em terceiro lugar (e colmatando algumas das falhas encontradas no estudo) não subsistem dúvidas que as crianças necessitam que os adultos se assumam como verdadeiros modelos a seguir. E ser um modelo ou uma referência não significa ser sempre perfeito, ter sempre razão e saber todas as respostas. Pelo contrário, o documento indica que ser um exemplo significa saber lidar com e aceitar as falhas, reconhecer os próprios erros, ouvir os mais novos e aprender a explicar-lhes que o mundo “é maior” do que eles (e vai além do seu próprio umbigo), em conjunto com a transmissão de valores numa linguagem simples e adequada à sua idade. Assumir este papel implica também fazer, constantemente, zoom in e zoom out, cuidar e praticar a compreensão, a bondade e a justiça. Ou seja, este é um exercício que obriga os adultos a promover o “faz o que eu digo e o que eu faço”, ao invés do “faz o que eu digo e não o que eu faço”.

Por fim, e claramente não menos importante, os investigadores de Harvard consideram que as crianças devem aprender a gerir os sentimentos destrutivos, resolvendo os seus problemas com base na ética e nos valores positivos. Muitas vezes, as crianças sobrepõem a zanga, a vergonha, a raiva e outros sentimentos negativos ao cuidado que devem ter com os seus pares. E os adultos devem demonstrar-lhes que esses sentimentos existem, sim, mas que também existem formas de lidar com eles. Neste ponto, é fundamental dialogar com as crianças, lançando-lhes questões relacionadas com a resolução de conflitos. Estes exercícios permitem desenvolver o sentido de justiça e ética dos mais novos, demonstrando-lhes que eles têm responsabilidade perante si próprios mas que as suas decisões também podem influenciar a vida de quem os rodeia.

No fundo, o que os autores deste documento pretendem transmitir é que estamos perante a necessidade de dar menos importância ao sucesso e mais ao bem que fazemos a quem nos rodeia, de modo a inverter a tendência de competitividade e egoísmo que existe actualmente. Não se trata de deixar de dar às crianças toda a atenção e conforto possível, mas sim de lhes mostrar que nem sempre têm de ser as melhores, as mais bonitas e as mais inteligentes, e que a bondade, o cuidado e a atenção (e outros valores igualmente importantes) cabem no mesmo patamar ocupado pela felicidade, pela auto-estima e pela realização pessoal.

Jornalista