O dia 2 de Julho de 2005 ficará para sempre marcado como a data do maior concerto gratuito de todos os tempos. A Bob Geldof e Midge Ure não faltou espírito nem capacidade de comunicação. À frente do palco ou dos ecrãs, em apoio de artistas que se afirmaram como porta-vozes de uma opinião pública sem fronteiras, todos se mobilizaram para passar a pobreza para o lado da história. Não há dúvidas de que todos os participantes, na ribalta ou na plateia, apelaram ao desaparecimento da pobreza, da SIDA e de todos os outros flagelos do mundo. É contudo difícil não duvidar das virtudes transformadoras de um espectáculo, mesmo «global». Seja como for, se este espectáculo não mudou quase nada, a grande arte não faltou. O mesmo não se pode dizer do anterior «concerto do século», o que o mesmo Bob Geldof organizou em 1985, em favor das vítimas da fome na Etiópia
POR PEDRO COTRIM

Live Aid, 13 de Julho de 1985. Mil milhões de espectadores, 100 milhões de dólares arrecadados. O sucesso deste concerto planetário teria sido absoluto se os indicadores de bilheteira fossem suficientes para o contabilizar. Mas enquanto o público e as estrelas cantavam e dançavam We Are The World, o regime etíope deportava centenas de milhares de pessoas, ampliando uma catástrofe que a sua política de colectivização das terras e de tributação insana dos camponeses tinha engendrado.

A fome no norte do país fora objecto de uma ampla cobertura mediática no Outono de 1984, trazendo rostos para as tragédias que a maior parte do mundo conhecia apenas de números que ouvia e que levou a uma operação de socorro a uma escala sem precedentes. Mas o que deveria ser uma operação de salvamento mudou muito rapidamente de natureza, quando os trabalhadores humanitários foram apanhados numa política de transferência forçada da população para a região sul da Etiópia. Destinado a lançar as bases da «primeira sociedade genuinamente comunista em África», este programa, inspirado pelos métodos de Estaline, foi apresentado pelo regime etíope à imprensa como uma medida de reforma agrária e de reequilíbrio demográfico. Foi uma tragédia inaudita.

Em África, os números da fome e da morte eram avassaladores em 1985. Em África, os números da fome e da morte eram avassaladores em 2005. Em África, os números da fome e da morte são avassaladores em 2023. No Verão de 2022, um em cada cinco africanos estava subnutrido. O continente é o único sítio no mundo onde o número de crianças com atrasos no crescimento aumentou desde o ano 2000. A crise alimentar em África é sistémica, alimentada pelo aumento dos preços das matérias-primas agrícolas, da energia e dos fertilizantes no mercado mundial.

A pandemia de Covid-19 expôs as falhas profundas dos sistemas alimentares africanos, atingindo uma escala que não se via há muitos anos. Há seca, inundações, epidemias de gafanhotos, conflitos e insegurança das populações. Os vários choques sucessivos, associados à inconsistência de certas políticas de Estado, corroeram ecossistemas vitais, tornando-os ainda mais vulneráveis a novos traumas. Muito recentemente, as cheias na Líbia e o número absurdo de mortos surpreenderam pela magnitude e pela quase ausência de acompanhamento da comunicação social portuguesa; o terramoto em Marrocos pôs-nos em alvoroço pela proximidade e pela nossa recordação muito própria. E, evidentemente, pelas vidas perdidas.

Os países do Sul apontam frequentemente a falta de vontade do «Norte» quando se trata de os ajudar. Os prazos são cada vez mais longos, as condições multiplicam-se, obrigando alguns Estados a fazer cortes melindrosos nos seus orçamentos. Quando surge uma emergência, a situação é comparável a um estado de guerra. As alterações climáticas, infelizmente, enquadram-se em tudo isto.

Os países do Norte são efectivamente responsáveis ​​pela maior parte das emissões de gases com efeito de estufa acumulados na atmosfera desde o começo do século XIX; os países do Sul sofrem as principais consequências. Algumas vozes do Sul continuam a defender uma reforma profunda do sistema financeiro global com um objectivo: libertar mais financiamento para os países do Sul para que possam descarbonizar a sua economia, adaptar-se às consequências do aquecimento futuro e reparar os danos causados ​​pelas perturbações que já são bem evidentes.

Alguns pequenos Estados insulares africanos, milagrosamente, não são pobres, com grandes receitas do turismo, mas são muito vulneráveis ​​devido à sua posição geográfica. Por outro lado, a África Subsariana combina tragicamente uma elevada vulnerabilidade climática com um baixo nível de desenvolvimento económico.

A ajuda de emergência vinda de fora do continente, por mais necessária que seja no futuro imediato, não tem benefícios a médio prazo. Para evitar uma cadeia mais grave de desequilíbrios e os efeitos do caos que daí resultaria, as estratégias de soberania alimentar estão novamente a emergir. Devem permitir antecipar e tratar os choques recorrentes como características duradouras, não como anomalias imprevistas. É a posição defendida por diversas organizações de agricultores e pela sociedade civil sobre a necessidade de garantir a cobertura das necessidades essenciais das populações através de políticas que visem a construção de sistemas sustentáveis ​​e resilientes face aos múltiplos desafios ambientais, de saúde, sociais e de segurança.

Diversas dinâmicas já iniciadas terão continuidade. A agricultura africana permanecerá por muito tempo baseada no campesinato e nas comunidades rurais. Talvez o aumento dos direitos das mulheres, inegavelmente em curso, venha a ser um grande vector de mudança.

Uma fracção crescente desta agricultura será orientada pela ascensão das cidades para se tornarem parte de áreas alimentares metropolitanas. Serão obtidos ganhos de produtividade se se adoptarem modelos diversificados que sejam robustos face às restrições climáticas e que mobilizem uma vasta gama de inovações. Finalmente, esta agricultura em mudança poderá contar mais com sistemas alimentares regionais, para além das fronteiras formais, desde que os obstáculos políticos e logísticos sejam removidos.

Serão a guerra na Ucrânia e a crise dos cereais uma oportunidade para iniciar uma ruptura histórica? Podem considerar-se alguns sinais, começando pela limitação do consumo de trigo. Há indicadores que vale a pena mencionar.

A raiz da mandioca, há muito confinada à fervura para servir de base à alimentação, encontra agora o seu lugar na farinha no fabrico de pães e bolos. Existe uma forma de conter o aumento dos preços, de criar um novo mercado para os produtores e uma nova indústria de produtos transformados. Na República Democrática do Congo, a lei recomenda agora a inclusão de 10% de mandioca na farinha de panificação. Na Nigéria e no Uganda, o limite é de 30%. Nos Camarões também se entrou neste caminho.

O cultivo de banana na Costa do Marfim também conduz à produção de farinha. O processo de transformação é relativamente simples: a banana ainda verde é escorrida e seca antes de ser esmagada. Pode ser incorporada até 30 ou 40% no trigo para fazer pão composto.

O desafio de superar a dependência extrema não reside exclusivamente nos cereais, mas em todos os outros produtos alimentares produzidos e consumidos pelos países africanos e que têm sido relativamente negligenciados: mandioca, inhame, soja, etc. Na perspectiva de uma multiplicação e agravamento dos riscos, a diversificação alimentar é um meio de melhorar a resiliência.

A crise irrompe, abala a sociedade, mas também revela mecanismos que promovem a solidariedade. Recorda a importância de a África libertar o seu potencial de crescimento endógeno e de construir as suas soberanias fundamentais – alimentos, medicamentos, água, energia e biodiversidade.

Verifica-se ainda que as taxas de imposto sobre empresas ou pessoas singulares são muito elevadas em África, mas a base tributária é muito baixa, em linha com a posição forte do sector informal. As empresas africanas que pagam impostos pagam efectivamente muito, mas são poucas. Na Europa, os debates sobre a fiscalidade afloram muitas vezes a progressividade dos sistemas, enquanto em África o desafio reside na extensão da área tributada e na integração no sistema fiscal das classes médias ou modestas.

Mas, particularmente em África, é difícil libertar margem de manobra financeira através da tributação. Os impostos representam apenas 16% do produto interno bruto (PIB) da zona, segundo a OCDE, em comparação com 19,4 % na Ásia-Pacífico, 22,3 % na América Latina e 34 % nos países da OCDE. E este rácio está a aumentar muito lentamente. Os especialistas afirmam que é difícil imaginar que um estado consiga financiar as suas missões essenciais com uma relação impostos/PIB inferior a 20 ou 25%.

As receitas fiscais africanas são constituídas principalmente por receitas aduaneiras, e, cada vez mais, por IVA. Em 2020, todos os impostos sobre bens e serviços representaram pouco mais de 50% do total das receitas fiscais em África (em comparação com 32% na OCDE), incluindo 28,3% apenas para o IVA. O imposto sobre o rendimento e os lucros das empresas representaram cerca de 40% das receitas (em comparação com 30% na OCDE).

Entretanto, para satisfazer as suas necessidades de financiamento, o continente recorre à dívida. Embora tenha sido reduzido para menos de 30% do PIB devido às anulações da dívida no início da década de 2000, o nível da dívida aumentou continuamente entre 2009 e 2019. É uma espécie de prova de que agindo sobre os sintomas, e não sobre as causas profundas, as dores ficam fadadas à repetição.

Como sair do círculo vicioso ligado à falta de receitas fiscais? A digitalização da arrecadação fiscal pode ser uma das alavancas, porque permite melhorar tanto a declaração dos contribuintes como a gestão da arrecadação por parte da administração tributária e a deteção de fraudes.

Para aumentar as suas receitas públicas, os estados africanos também dependem de receitas não fiscais, que representam em média 7% do seu PIB. Em 2020, onze países receberam a maior parte sob a forma de doações, e cinco outros sob a forma de rendimentos e royalties relacionados principalmente com a exploração petrolífera. O problema: estas receitas, dependentes dos preços mundiais do petróleo, são extremamente voláteis e não permitem compensar a fragilidade dos recursos fiscais dos estados.

Assim, mesmo que os recursos fiscais aí cobrados sejam cada vez mais importantes, o continente precisa de ajuda externa para enfrentar o desafio climático. Como encontrar os valores suficientes? Os bancos multilaterais de desenvolvimento, o maior dos quais é o Banco Mundial, estão sob escrutínio. Uma opção em estudo: modificar as regras financeiras que regem a utilização dos seus fundos próprios para lhes permitir emprestar mais sem exigir capital adicional dos seus accionistas, ou seja, dos países do Norte.

Os esforços para combater a fome em África terão de envolver uma combinação de ajuda humanitária, projectos de desenvolvimento, melhores práticas agrícolas e políticas destinadas a abordar as causas subjacentes à insegurança alimentar. As organizações internacionais, as ONG e os governos terão de trabalhar em conjunto para prestar ajuda de emergência e apoiar o desenvolvimento a longo prazo nas regiões afectadas. Abordar a segurança alimentar e prevenir futuras catástrofes humanitárias em África é um desafio complexo e contínuo que exige um esforço sustentado da comunidade global.