POR GABRIELA COSTA
Os valores económico, social e pessoal do voluntariado e as tendências e desafios que se adivinham para o seu futuro estiveram em análise na Fundação Calouste Gulbenkian, num encontro realizado a 25 de Novembro no âmbito da iniciativa Lisboa Capital Europeia do Voluntariado.“O Papel do Voluntariado no Século XXI” foi o mote para um dia de debate e partilha de experiências entre empresas e organizações sociais, e que reuniu, num primeiro painel dedicado a valores, dirigentes da Accenture, da McKinsey e da Mercer e, num segundo, centrado nas tendências e desafios, responsáveis de várias entidades do terceiro sector: Just a Change, Mais Valia, Associação Coração Amarelo e Fundação Manuel Violante.
Na conferência organizada pela Gulbenkian em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa foram partilhados testemunhos de projectos e experiências inovadoras de trabalho voluntário em Portugal, avaliando-se de que forma as novas gerações encaram esta área, quer a nível empresarial quer enquanto prática de cidadania.
As oportunidades e os desafios do voluntariado na Europa para o século XXI também estiveram em análise, num terceiro painel a cargo de Justin Davis Smith, da direcção do Centro Europeu de Voluntariado.
“Temos de ser cidadãos praticantes”
Para dar respostas ao complexo debate que o tema “o valor do voluntariado: pessoal, social e económico” levanta, foram chamados a participar representantes de três consultoras, o que desde logo suscita principalmente “grandes perguntas, que é o que estamos habituados a fazer”, antevê João Pedro Tavares.
Já de manhã uma reflexão durante a qual três grupos de trabalho, organizados pelos três tópicos em análise e constituídos por responsáveis de fundações e de organizações de voluntariado, empreendedorismo e intervenção social e comunitária, empresários e académicos, entre outros, analisaram os valores do voluntariado, suscitou muitas questões: até onde se pode ir e o que se pode fazer? O que tem sido a nossa procura e a nossa experiência? Pode-se perverter a bondade que está por detrás da economia social?
Numa dinâmica de trabalho “fantástica”, segundo o vice-presidente da Accenture, que integrou o grupo dedicado ao “valor social do voluntariado”, os participantes neste brainstorming ponderaram ideias, partilharam experiências e traçaram algumas estratégias para fazer do voluntariado uma causa nacional.
[pull_quote_left]O voluntariado faz-se à luz da nossa história, com sentido de missão – João Pedro Tavares[/pull_quote_left]
Para João Pedro Tavares, “vivemos num mundo em transformação, da economia convergente,”, cujo futuro assistirá à criação de uma “linguagem comum” de sustentabilidade “em toda a economia”, o que constitui “um grande desafio”.
Neste contexto, o voluntariado cria impacto social “nas pessoas nas empresas e na sociedade, em geral”, mas é preciso distinguir “o que é voluntariado e o que é cumprimento de responsabilidades em contexto familiar e social” (de proximidade).
Mais uma vez, o trabalho desenvolvido durante a manhã suscitou muitas considerações, para que se chegasse a um importante consenso: “o voluntariado é um exercício de partilha de valor”. Assim foi definido pelo grupo de trabalho reunido na Gulbenkian. E é assim que “mais contribui para a tal economia de valor partilhado”, defende o também presidente da Junior Achievement Portugal.
“Temos de ser cidadãos praticantes”, alguém disse nessa manhã. O voluntariado é “um exercício de cidadania”, que deve começar ao nível da educação básica e que “promove valor acrescentado e partilha de experiência. Queremos que promova também mais inovação”. E ainda “mais desinteresse” na acção, isto é, que não se alimente de “valores perversos”, como a tentação de enriquecer o currículo com colaborações voluntárias ou de “fazer caridadezinha”, exemplifica. “O valor social do voluntariado resulta do seu impacto”, pelo que nunca deve ser “um valor autoproclamado pelo voluntário”, conclui.
“Recebemos muito mais do que damos”
Diogo Alarcão, partner da Mercer Portugal, sintetiza assim o valor pessoal do voluntariado, enunciado pelo grupo de trabalho que integrou, e que permitiu avaliar as experiências de um conjunto de pessoas com vidas e carreiras distintas: “recebemos muito mais do que damos”.
Identificando um conjunto de questões com vista a traçar o perfil do voluntário (ou seja, o que valoriza e que expectativas tem quando se propõe ao exercício voluntário), o grupo encontrou uma palavra ‘condutora’: amor. Definição para o que motiva “espontaneamente” esse exercício com retorno na nossa vida pessoal.
[pull_quote_left]O que se adquire em competências com o voluntariado é sempre um factor diferenciador – Diogo Alarcão[/pull_quote_left]
Na metodologia seguida pela equipa, o voluntariado no sistema de ensino foi outro tópico em reflexão – desde se pode e deve ser incorporado nos currículos académicos (concluindo-se que faz sentido incluí-lo na educação formal mas é preciso definir formas de o fazer, em função dos diferentes níveis de ensino), até à questão se deve ser remunerado com créditos universitários, no âmbito do Tratado de Bolonha (o que causou grande polémica em torno dos projectos e horas que poderiam vir a ser convertidos em créditos, e assim substituir exames ou cadeiras). Certo é que vale a pena “introduzir o voluntariado” na educação “numa lógica de aprendizagem não formal”, que forma para o sentido “de serviço, de partilha”, como sublinha Diogo Alarcão.
Finalmente, e analisando o voluntariado como ferramenta para desenvolver competências pessoais, toda a experiência serve para aprender, e as voluntárias podem servir para melhorar aptidões “depois aproveitadas em contexto profissional”, explica o partner da Mercer.
“O que se adquire” em competências com o voluntariado – sentido de liderança, gestão do tempo, gestão de conflitos, exemplifica – “é sempre um factor diferenciador”. Pelo que as aprendizagens desta natureza são também diferenciadoras nos “processos de recrutamento, em fundações e organizações sociais”, sublinha Diogo Alarcão.
Acresce, de modo mais abrangente, que “algo fundacional do valor pessoal do voluntariado é o desenvolvimento de competências para a criação de uma cultura geracional de direitos humanos e desenvolvimento global”.
Com proximidade ou a pensar na educação para o desenvolvimento, através do voluntariado “podemos deixar a nossa pegada pessoal na criação de um mundo diferente”, conclui.
“O retorno do voluntariado é um múltiplo, não uma percentagem”
O voluntariado acrescenta valor no-brainer, isto é, um valor inquestionável que não suscita dúvidas, concluiu a equipa que trabalhou o seu valor económico, e que reuniu Raúl Galamba de Oliveira, director da McKinsey, com especialistas de organizações, académicos, empresários e responsáveis de sindicatos e do Instituto Nacional de Estatística. O grupo convergiu nesta ideia, bem como na certeza que “esse valor é melhor medido do que só imaginado”.
Medição que se for feita em termos do valor das horas dadas em trabalho voluntário equivale hoje, possivelmente, a cerca de 1% do PIB, explica Raúl Galamba, adiantando que os números também sugerem que esta contribuição poderia ser “muito maior”, já que em Portugal o nível de participação em acções de voluntariado ocupa apenas cerca de 11% da população activa, um valor muito mais baixo do que em vários outros países da Europa.
Ao valor económico do trabalho voluntário sobrepõem-se com evidência o pessoal e o social, como referido, e perante esta evidência “soa que estamos perante uma oportunidade perdida”. Primeiro, pelo “quanto o voluntariado acrescenta aos próprios, mais que aos demais”.
[pull_quote_left]O desemprego pode criar voluntariado, mas o voluntariado dificilmente cria desemprego – Raúl Galamba de Oliveira[/pull_quote_left]
Segundo, pelos impactos sociais da acção de “um voluntário que ajuda alguém de uma forma que o mercado de trabalho nunca vai ajudar”, mudando a vida de um estudante, de um idoso ou de um toxicómano com o seu apoio. O retorno dessa acção “não é o valor de uma margem comercial, é um múltiplo, e não uma percentagem”. Portanto, “1% é o valor directo, há um valor económico muito superior que não podemos esquecer”, concluiu o consultor.
Por último, o valor económico do voluntariado tem de ser perspectivado face ao trabalho remunerado. Deve o primeiro substituir o segundo? Que distorções podem daí decorrer, nomeadamente do ponto de vista dos direitos dos trabalhadores? O debate não causou a polémica que Raúl Galamba esperava: “na prática pode ser muito menos tema do que parece”. Porque “é muito difícil imaginar que mesmo numa entidade empregadora demasiado agressiva, que quer fazer tudo com voluntários”, isso funcione. É necessário que estas pessoas estejam enquadradas e sejam também “geridas para aportar as suas várias valências” com impacto na empresa, explica o responsável da McKinsey.
Ora, essas aportações são muitas vezes limitadas no tempo ou em intensidade, pelo que “não são em termos práticos, substitutivas de trabalho remunerado”. Portanto, o voluntariado é complementar à actividade profissional, como indicia a maioria das pessoas que fazem coexistir a sua participação cívica com o seu emprego, conclui o também membro do Conselho de Administração da Fundação Manuel Violante.
Uma agenda para o voluntariado em construção na Fundação Gulbenkian
Na era da economia de valor partilhado, a convergência destes três valores – pessoal, social, económico – inerentes ao trabalho voluntário é, inevitavelmente, o caminho para se avançar na agenda do voluntariado para o século XXI. Mas como se podem conjugar? Há conciliação possível entre eles sem que se valorize um em detrimento dos outros?
Para João Pedro Tavares o voluntariado faz-se “à luz da nossa história”. Daquela que nos faz afirmar “sou um cidadão com sentido de missão”. E, neste aspecto, “há uma nova ideia mais activa de participação” e mais empreendedorismo, fundamental para “dar um passo em frente”.
A partir daqui, importa valorizar como se pode e deve medir o impacto desta actividade, incluindo todos os aspectos dos três pilares em questão, porque o seu valor efectivo avalia-se pelo impacto que a mesma causa nos indivíduos, na sociedade e na economia.
No âmbito da promissora economia convergente, o impacto social do voluntariado (que se converte depois também em impacto económico) “deveria ser medido na forma de avaliação do capital social”, reforçando assim “redes sociais, a confiança na sociedade, a partilha de valor”, defende o vice-presidente da Accenture.
Confiança, Capacitação, Conhecimento e Convergência são os 4 C’s a que deve presidir, no actual mercado, a medição de valor do impacto social do voluntariado. Para as organizações, João Pedro Tavares recomenda 5 propósitos (5 P’s): que sejam Poucos, Práticos, Possíveis, Progressivos e, principalmente, Partilhados. Aos educadores impõem-se que “formem cidadãos responsáveis, empenhados”. Aos líderes, “que liderem pelo exemplo, servindo”.
A este último nível, na promoção das acções de voluntariado integradas nas suas políticas de RSC, as empresas podem nem sempre dar o melhor exemplo, uma vez que facilmente “têm a tentação de divulgar o seu interesse de servir [a comunidade], a partir do exemplo dos seus voluntários”, admite Diogo Alarcão. Ainda assim, “a grande maioria não faz sequer publicidade sobre a sua política de responsabilidade”, conclui. Já os colaboradores ingressam, muitas vezes, em experiências de voluntariado pessoal, “depois de terem sido iniciados no corporativo”, testemunha o partner da Mercer.
Céptico também em relação a qualquer “altruísmo puro” ligado ao exercício do voluntariado, outro consultor, da McKinsey, lembra que a grande finalidade das empresas a este nível “é a motivação dos seus recursos humanos”. E sempre a pensar na sua “competitividade”, pelo que é natural que divulguem “os valores que querem partilhar com os seus clientes”, e demais stakeholders.
Na sua perspectiva, as empresas – principalmente as de grande dimensão – precisam de programas de voluntariado que estruturem os seus projectos nesta área. Quanto à relação entre esta actividade e o trabalho remunerado, acredita firmemente que “o desemprego pode criar voluntariado, mas o voluntariado dificilmente cria desemprego”.
Sintetizando as inúmeras questões (debatidas nesta segunda “ronda” do debate) que se colocam à integração dos diferentes valores do voluntariado, num país onde a sua prática não está ainda enraizada, Raúl Galamba defendeu que para construir uma agenda “transformadora” a este nível é necessário fazer desta actividade “um desígnio nacional”, assente num conjunto de boas práticas, num mecanismo de accountability, e numa visão sistémica sobre algumas iniciativas que, através de parcerias conjuntas, “se tornem numa marca”.
Em jeito bem disposto mas provocatório, o director da McKinsey lançou então à própria Gulbenkian um desafio subscrito pelos três consultores presentes neste painel da conferência “O Papel do Voluntariado no Séc. XXI”, e pelos participantes nos Grupos de Trabalho que antecederam o debate: “ocorreu-nos que estamos no sítio certo para fazer desta causa um desígnio nacional”.
A resposta ao desafio não tardou em chegar. Em representação de Isabel Mota, administradora da Fundação Calouste Gulbenkian, Luísa Valle, directora do Programa de Desenvolvimento Humano garantiu que a Fundação “vai fazer de tudo” para dar resposta ao repto lançado “para a criação de uma agenda do voluntariado”.
Defendendo que “na era da não-identidade”, o voluntariado pode romper com a desumanização que caracteriza a sociedade contemporânea, devolvendo “alguma esperança no futuro”, Luísa Valle apelou a poder contar com a inspiração de todos os presentes, na construção dessa agenda. E prometeu que a Fundação dará notícias sobre o projecto sugerido, “tão brevemente quanto possível”. O VER, parceiro de comunicação deste Programa da Gulbenkian, cá estará, para acompanhar os próximos desenvolvimentos da iniciativa.
Voluntários: um pilar da democracia participativa
Trazendo ao debate uma perspectiva europeia sobre as oportunidades e os desafios que se colocam ao voluntariado no presente e no futuro, Justin Davis Smith, membro da direcção do Centro Europeu de Voluntariado (CEV), foi o orador convidado pela Gulbenkian para discursar no último painel da conferência, congratulando-se com a sua presença em Lisboa numa altura em que esta é a Capital Europeia do Voluntariado, e enaltecendo o “extraordinário” trabalho desenvolvido pela Fundação.
Numa visão humanitária, Justin Smith começou por apelar ao reforço “dos laços entre as comunidades” e à aproximação a minorias étnicas, considerando que “o voluntariado é fundamental para promover a confiança recíproca” ente os povos.
Entre outras vantagens, “está provado que as pessoas voluntárias são um pilar da democracia. Votam mais, são mais participativas”, defende o responsável do CEV. Na sua opinião, o trabalho voluntário “melhora a qualidade de vida e ajuda a construir confiança e valores” fundamentais na sociedade. A nível pessoal, também se “ganha muito com esta experiencia, em novas competências e oportunidades de emprego”, conclui.
Para o especialista, o papel que os voluntários “desempenham desde sempre na sociedade” tem de ser mais “valorizado”. De assinalar que anualmente existam cerca de 100 milhões de voluntários na Europa, de acordo com as mais recentes estimativas europeias.
De destacar também “a inovação que existe no seio do movimento voluntário”, um pouco por toda a Europa. Na linha da frente, os voluntários foram “os primeiros a ser mobilizados para dar resposta à crise dos refugiados na Europa, claro”, nota Justin Smith.
Certo é que, “nos dias de hoje, o voluntário está constantemente a reinventar-se”. Desde logo, graças às novas tecnologias, com as quais chegaram novas oportunidades, como a Wikipédia, “um grande exemplo de voluntariado”. Mas também novos desafios, expressos por exemplo na vulnerabilidade das plataformas desenvolvidas por e para voluntários”, alerta o especialista do CEV.
Neste contexto, “temos de definir os desafios actuais e resolvê-los em conjunto, com benefício para todos”, defende.
[pull_quote_left]É um erro pensar que numa conjuntura de crise se pode colmatar a falta de emprego com o trabalho voluntário – Justin Davis Smith[/pull_quote_left]
Um dos mitos a desfazer é a ideia de que o voluntariado é grátis. “Isso é um equívoco, é necessário um grande investimento estrutural, uma gestão do voluntariado”. A nível europeu, e junto dos governos, fundações e organizações sociais, deve prevalecer a estratégia que dita que “se queremos aproveitar ao máximo o valor dos voluntários, temos de investir neles, defende Justin Smith.
Outro erro, na sua perspectiva, é pensar que “numa conjuntura económica ainda de crise”, se pode colmatar a falta de emprego com o trabalho voluntário”. Porque este é exercido “com mais eficácia quando complementa o trabalho remunerado de outras pessoas”, explica. A evolução do movimento de voluntariado na Europa passa por ter estes dois mundos a trabalhar “lado a lado”, tirando maior partido para ambas as partes. Passa também por perceber as motivações que cada voluntário tem.
O Centro Europeu de Voluntariado tem dado prioridade a cinco aspectos que reconhece como “fundamentais”, uns mais basilares, outros relacionados com o contexto actual da Europa: a acreditação das aprendizagens formais e não formais adquiridas por entidades de voluntariado; o valor real do voluntário, em função do seu contributo para o serviço público, e na presunção de que ele aporta sempre valor à comunidade, mas é preciso aferir esse valor; a questão da regulamentação no seio da UE, (e a este respeito Justin Smith diz que “as instituições europeias devem perceber o impacto que o voluntariado pode ter nos desafios da Europa”); a necessidade de encontrar estratégias sobre como alocar os recursos para melhor agir; e, perante a crise de refugiados, a procura de reforços para o apoio voluntário essencial para “dar oportunidade” [a estas pessoas] para que possam integrar-se na Europa”.
Optimista, o dirigente do CEV conclui que “os feitos alcançados no passado” servem para continuar a trabalhar – envolvendo governos e organizações – no reforço do papel do voluntariado na realidade actual, nunca duvidando “da capacidade das grandes pessoas, empenhadas em mudar o mundo”.
Jornalista