O Fórum Mundial Social, que se realizou em Dakar, na passada semana (e poucas depois de Davos), constituiu um espaço de diálogo plural pela construção de um mundo mais justo. Portugal fez-se representar pela FEC, membro da CIDSE, agência europeia de ONGD, que testemunhou o essencial: este que é o maior movimento social do mundo conseguiu, por uns dias, colocar na agenda internacional as preocupações de um povo fustigado pela crise. Mas, será possível, um dia, ultrapassar distâncias e preconceitos e organizar um Fórum Social e Económico Mundial?
POR GABRIELA COSTA

Conhecido como o principal evento do movimento antiglobalização, o Fórum Social Mundial assume-se como um espaço de discussão dinâmico e aberto a alternativas ao neoliberalismo, que reúne anualmente uma média de cem mil cidadãos, entre activistas, representantes de organizações e movimentos da sociedade civil, empresários, políticos, intelectuais e estudantes.

Sob o mote “Um outro mundo é possível!” a edição de 2011 voltou a acontecer em África, em Dakar, capital senegalesa, depois dos fóruns realizados em Bamaco (Mali), em 2006, e Nairóbi (Quénia), em 2007 (ver caixa).

Partindo da história de resistência e luta dos povos africanos, o FSM 2011 visou, segundo a Comissão Organizadora, encontrar o interface necessário com as lutas e as estratégias globais comuns à África, ao Sul e ao resto do mundo: “o retorno do FSM à África expressa solidariedade activa do movimento social internacional, apoio bem-vindo já que África corre o risco de pagar pela crise actual do capitalismo, já estando enfraquecida pelos programas de ajustes estruturais da década de 1980 e 1990”, sublinharam os organizadores do evento, para quem a experiência de dez anos do FSM reforça o papel da iniciativa enquanto “espaço dedicado a fortalecer a capacidade ofensiva contra o capitalismo neoliberal e seus instrumentos; a aprofundar as lutas e resistências contra o imperialismo e a opressão e a propor alternativas democráticas e populares”.

Ideologias à parte, entre 6 e 11 de Fevereiro estiveram em debate no campus da Universidade Cheikh Anta Diop (UCAD), em Dakar, temáticas como a pobreza, a fome e as alterações climáticas, em contexto de crise.

Por uma liderança mais democrática
A CIDSE (aliança católica internacional de agências para o desenvolvimento) e alguns parceiros avaliaram “as profundas mudanças necessárias para combater” estes fenómenos, tanto maiores quanto se agrava a instabilidade financeira global, com repercussões graves para o continente africano.

Para a rede católica, “o mundo precisa de uma nova direcção, mais do que de pequenos ajustes de percurso”. Foi com este mote, assente num “modelo de liderança mais democrático, onde as pessoas estão no coração das soluções para as mudanças globais”, que a CIDSE reuniu no Senegal várias organizações membro e parceiros oriundos de diversos países. Para o secretário-geral desta aliança de agências para o desenvolvimento, o aumento do preço dos alimentos, as falhas nas negociações em torno das alterações climáticas e os desequilíbrios económicos a nível global são “sintomas do falhanço” da acção global sobre os grandes desafios. Presente no FSM 2011, Bernd Nilles defendeu que os governos não conseguiram ainda implementar “políticas justas e adequadas para solucionar as múltiplas crises que o mundo enfrenta”.

Portugal fez-se representar no FSM pela Fundação Evangelização e Culturas, membro da CIDSE. Para a FEC, “enquanto ONG que trabalha no âmbito da cooperação para o desenvolvimento, é essencial participar neste movimento da sociedade global numa procura de novos modelos de desenvolvimento”. Em conjunto com a Caritas Guiné-Bissau e a CIDSE, a Fundação esteve em Dakar “para contribuir activamente no debate” sobre as alterações climáticas, a ajuda pública ao desenvolvimento, a segurança alimentar e a agenda política pós-ODM, afirmou a directora executiva, Susana Réfega: “acreditamos que à escala global é necessário outro tipo de liderança. O FSM ‘antecipa’ o rosto desses líderes”.

A CIDSE vem apelando há anos por um sistema de justiça global que implica a mudança de comportamentos por um planeta mais sustentável; o incremento do apoio às pessoas mais afectadas pelos impactos das alterações climáticas; um combate sério à fome mundial “num cenário em que as chuvas estão cada vez mais imprevisíveis e as culturas continuam a falhar”; a exigência de cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, mesmo pós-2015; ou a manutenção dos orçamentos previstos por cada país para a Ajuda Pública ao Desenvolvimento.

Alinhada com estas causas, a FEC reconhece que o FSM representa uma alternativa ao Fórum Económico Mundial, oferecendo “um poderoso antídoto para um sistema que coloca o dinheiro em vez das pessoas em primeiro lugar”. Representada no evento mundial pelo coordenador do Programa FEC na Guiné-Bissau, Simão Leitão, esta ONGD juntou-se aos milhares de participantes em Dakar para traçar estratégias que permitam definir políticas de ajuda às populações mais pobres e vulneráveis.

“Onde o Social e o Económico (não) convergem”
‘Um outro Mundo é possível’. Esta afirmação, “já feita de tantas formas ao longo das diferentes histórias das comunidades humanas, transporta-nos hoje inevitavelmente para uma reflexão sobre os equilíbrios económicos e políticos resultantes da chamada globalização”. Na opinião de Simão Leitão, ao contrário do que muitos apregoam, o FSM não se opõe ao processo de globalização: pelo contrário, é também uma consequência dele e alimenta-se dos seus múltiplos contornos. O representante da FEC na Guiné-Bissau defende mesmo que este “também não é um evento unívoco de gentes de esquerda que desejam destruir de forma radical, sem soluções alternativas, o modo como as sociedades se organizam hoje. Assuntos como o tráfico humano, as alterações climáticas, a segurança alimentar, a redução da pobreza, enfim, o desenvolvimento humano sustentável e o respeito pelos direitos humanos, são preocupações transversais que preocupam a grande maioria da população, independentemente da ideologia política ou crença religiosa”, conclui.

© FSM 2011

Num balanço da edição de 2011 do FSM, o responsável da FEC sublinhou ao VER que “sem perder o seu enfoque – constituir um espaço de partilha de ideias e experiências sobre o mundo em que vivemos –, [o evento] foi uma vez mais marcado pela pluralidade de perspectivas e encontro de visões”. Ficou assim garantida “a maior riqueza” de um dos principais encontros sociais do globo: “colocar na agenda pública mundial as preocupações da imensa sociedade civil que ali se encontra representada”.

Como recorda Simão Leitão, sobre a importância deste lobbying político pela positiva, é de sublinhar que já na última edição do FSM um dos principais temas foi a regulação dos mercados financeiros internacionais. “Com algum atraso – e, pode-se dizer, a reboque dos acontecimentos – o Fórum Económico Mundial reagiu em Dezembro de 2010 e apresentou na sua agenda também este tema para reflexão”, comenta.

A propósito de outro tema que esteve em destaque em Davos – a necessidade de integrar os objectivos e valores sociais na matriz económica – o responsável questiona: “com sintonias como estas será que um dia vai ser possível ultrapassar as distâncias de tempo e as barreiras do preconceito e organizar um Fórum Social e Económico Mundial? Infelizmente, diz, o presidente eleito do Senegal “não deu sinais positivos no sentido de uma convergência”, ao manifestar “a sua oposição pessoal ao FSM, afirmando ser capitalista”. Também a universidade pública de Dakar, “ao não cumprir com o seu compromisso de disponibilizar salas para a realização dos seminários, não facilitou o decorrer dos trabalhos”.

Mais justiça social na Agenda Internacional
O Fórum Social Mundial assume-se, como referido, como uma alternativa ao Fórum Económico Mundial de Davos (que se realiza anualmente na Suíça), constituindo um espaço de diálogo que aberto a todos os movimentos sociais e cidadãos do mundo. Esta oportunidade de partilha de ideias e estratégias para promover uma sociedade mais justa e com um maior nível de desenvolvimento humano “opõe-se”, segundo os organizadores do FSM, “aos valores do neoliberalismo defendidos pelas instituições internacionais, as empresas multinacionais e até mesmo alguns governos que viram as costas às suas populações, em benefício de alguns poucos privilegiados que usam e abusam das riquezas do mundo”. O evento representa, pois,  “uma alternativa real para os sistemas desiguais que esmagam o Homem em vez de colocá-lo no centro do desenvolvimento mundial”, já que se sustenta no respeito pelos direitos humanos universais, pela soberania dos povos, pela igualdade entre os homens e pelo meio ambiente – fundamentos de um mundo de justiça, equidade e democracia participativa.

A edição de 2011 transformou Dakar por uns dias na capital mundial do movimento social, numa altura particularmente difícil em que a revolta no Egipto agravou um contexto onde crises multifacetadas “reflectem a falência do sistema liberal”, cujos excessos afectam (sobretudo e como sempre) os países mais pobres, muitos deles situados no continente africano: crise financeira, crise alimentar, crise energética, alterações climáticas, violações de direitos civis, socioeconómicos e culturais, desemprego juvenil ou questões de imigração são apenas uma parte dos profundos problemas que muitas populações enfrentam diariamente em África. Para os activistas defensores de um modelo social mais democrático que dinamizam este Fórum, as políticas promovidas por instituições internacionais como o Banco Mundial e o FMI “têm dificultado o acesso ao bem-estar social através do desenvolvimento de um sistema voltado para a satisfação das necessidades das pessoas. África ilustra um dos maiores fracassos de três décadas de intervenção política neoliberal”, concluem. Em resposta, os movimentos sociais e os cidadãos de todo o mundo têm o direito e o dever de se unirem aos povos africanos, “que se recusam a pagar o preço da crise actual, sobre a qual eles não têm nenhuma responsabilidade”.

Afinal, e quer se trate de uma crise sistémica do capitalismo liberal ou de uma crise civilizacional que a todos afecta, certo é que a humanidade enfrenta hoje profundas mudanças, devolvendo a cada povo e a cada nação a responsabilidade da gestão dos seus recursos, mas também exigindo que as grandes potências ocidentais não continuem a impor a sua agenda em detrimento das prioridades dos restantes países.

FSM, um evento sustentável
Com vista a dar maior visibilidade à cultura alimentar local e valorizar a participação activa dos camponeses e pequenos agricultores da África Ocidental, foram vendidos no espaço do FSM, em Dakar, produtos locais ou de pequenos produtores. Paralelamente ao evento, decorreu a 12ª Foire Internationale de l’Agriculture et des Ressources Animales (FIARA), que esteve aberta aos participantes do FSM 2011.A Comissão Organizadora deste Fórum Social Mundial apostou ainda em medidas de poupança de água e do seu fornecimento através de fontes com mecanismos de filtragem que evitam o uso de garrafas plásticas, com a preocupação “de não contribuir para a inflação do seu preço. Relativamente aos resíduos produzidos durante a iniciativa, foi realizada uma campanha de consciencialização em prol da recolha e selecção dos mesmos, tendo sido instalados recuperadores de lixo no local do evento.

 

De Porto Alegre a Dakar
O Fórum Social Mundial teve a sua primeira edição em Porto Alegre, no Brasil, em 2001, aí se repetindo nos dois anos seguintes. Em 2004 foi a vez da Índia acolher, em Bombaim, este que é o maior movimento social do mundo, seguindo-se novamente Porto Alegre e, já em 2006, uma edição conjunta em Bamaco, no Mali, em Caracas, na Venezuela e em Carachi, no Paquistão. Em 2007 o evento retornou a África, desta feita em Nairóbi, no Quénia, disseminando-se no ano seguinte em diversas acções e mobilizações globais para, em 2009, marcar mais uma vez presença por terras brasileiras, desta feita em Belém. Já em 2010, assinalando uma década de existência, o Fórum Social Mundial desdobrou-se em múltiplos fóruns, realizados em diversos países.Paralelamente ao encontro anual do FSM, decorrem um pouco por todo o mundo os chamados fóruns regionais e temáticos sociais, como é o caso do Fórum Social Africano que, desde 2001, já teve edições no Mali, na Etiópia, na Zâmbia, na Guiné, e na Nigéria.

Jornalista