A Human Rights Watch publicou o seu Relatório Mundial de 2023, o qual analisa o estado dos direitos humanos em quase 100 países Como se pode ler na introdução do relatório (o qual tem mais de 600 páginas), a conclusão óbvia que se pode tirar das várias crises de direitos humanos em 2022 é que o poder autoritário sem controlo deixa para trás um mar de sofrimento humano. E a União Europeia, assente nos direitos e valores democráticos, não os está a cumprir integralmente
POR HELENA OLIVEIRA
Desde os ataques deliberados do Presidente russo Vladimir Putin a civis na Ucrânia, aos campos de prisioneiros do povo Uigure na China de Xi Jinping, sem esquecer os Talibãs, que colocam milhões de afegãos em risco de fome, a par da onda de violência no Irão, que reprimiu de forma violenta as várias manifestações devido à morte de Mahsa Amini por esta usar um hijab “impróprio” e a lista de violações dos direitos humanos poderia continuar.
As crises dos direitos humanos não surgem, obviamente, do nada. Os governos que não cumprem as suas obrigações legais de proteger os direitos humanos no interior das suas fronteiras lançam as sementes do descontentamento, da instabilidade e, em última análise, da crise. Deixadas sem controlo, as acções flagrantes de governos abusivos aumentam, cimentando a crença de que a corrupção, a censura, a impunidade e a violência são os instrumentos mais eficazes para alcançar os seus objectivos. Ignorar as violações dos direitos humanos acarreta um custo pesado, e os efeitos de este dominó não podem ser subestimados.
Todavia e num tom mais optimista, a HRW afirma igualmente que estamos a assistir a uma mudança no poder mundial. Qualquer Estado que reconheça o poder que advém de trabalhar em concertação com outros para melhorar o estado dos direitos humanos, pode proporcionar uma nova liderança. Há mais espaço, e não menos, para os governos se levantarem e adoptarem planos de acção que respeitem os direitos em causa. Mas será possível?
Mais uma vez e dada a extensão do relatório – com análises individuais feitas para a quase centena de países que o integram – optámos por espreitar os principais dados para a União Europeia, considerada como o baluarte dos direitos humanos. Só que não é bem assim. Dividido em vários temas, eis as informações mais importantes e que são – ou deviam ser – motivo de reflexão para todos nós.
Compromisso com os direitos humanos ou nem tanto assim?
De acordo com a HRW, a União Europeia (UE) e a maioria dos seus Estados-membros exercem o seu compromisso no que respeita aos direitos humanos e os valores democráticos e, em diversas ocasiões mais complexas, tal como a resposta aos refugiados vindos da Ucrânia, fez jus a esses mesmos valores ao longo de 2022. Contudo, com demasiada frequência, as políticas e acções da UE ficaram aquém das expectativas, deixando os mais marginalizados e vulneráveis expostos a abusos. Vejamos alguns exemplos.
- Migrantes, refugiados e requerentes de asilo
A resposta positiva da UE à deslocação em massa de ucranianos após a invasão russa da Ucrânia em Fevereiro do ano transacto contrastou fortemente com o tratamento abusivo de migrantes e requerentes de asilo de outras regiões do mundo.
Em Setembro último, mais de 4 milhões de refugiados da Ucrânia – cerca de 90% dos quais mulheres e crianças – estavam registados nos países da UE após a activação sem precedentes da Directiva de Protecção Temporária (DPT) de 2001, em resposta à guerra na Ucrânia.
Foram constatadas preocupações sobre o risco de tráfico, violência baseada no género e outras formas de exploração de pessoas provenientes da Ucrânia, especialmente mulheres e raparigas, decorrentes de medidas de protecção inadequadas em países como a Polónia.
Mas e por outro lado, um ano após a tomada do poder pelos Talibãs, os requerentes de asilo afegãos enfrentaram recuos nas fronteiras da UE e taxas decrescentes de “reconhecimento de refugiados” em toda a União Europeia. Ou seja, os seus Estados-membros deixaram em grande parte de evacuar o pessoal local e os afegãos que continuam em grande risco no seu país.
Em suma, a resposta positiva da UE no que respeita à deslocação em massa de ucranianos após a invasão russa da Ucrânia em Fevereiro contrastou fortemente com o tratamento abusivo de migrantes e requerentes de asilo de outras regiões do mundo. Os Estados-membros da UE, incluindo a Bulgária, a Croácia, o Chipre, a Grécia, a Polónia e a Espanha, continuaram a incorrer em práticas ilegais e violência nas suas fronteiras.
De acordo agência da ONU para os refugiados (ACNUR), mais de 100.700 pessoas chegaram irregularmente às fronteiras meridionais da UE em meados de Setembro, a maioria por via marítima, enquanto pelo menos 1.207 morreram ou desapareceram no Mar Mediterrâneo.
A Comissão Europeia confirmou que estava a considerar atribuir 80 milhões de euros ao Egipto em 2022 e 2023 para apoiar a “gestão de fronteiras” terrestres e marítimas, apesar do péssimo historial do país em matéria de direitos humanos. A UE e os seus Estados-membros também mantiveram ou aumentaram o financiamento, cooperação e apoio ao controlo da migração noutros países africanos, tais como Marrocos, Mauritânia, Senegal e Níger, apesar das repercussões negativas para os migrantes e requerentes de asilo na região – incluindo a redução da liberdade de circulação, detenções e prisões arbitrárias, abuso físico, extorsão, e expulsões arbitrárias.
Em suma, os progressos nas reformas da UE em matéria de asilo permaneceram presos às divisões políticas cada vez notórias, particularmente no que diz respeito à melhoria da partilha de responsabilidades entre os Estados-membros.
- Discriminação e racismo
Os não ucranianos que fugiram do conflito na Ucrânia enfrentaram discriminação e desigualdade de tratamento nas fronteiras da UE e no interior dos pise que a compõem. Numa resolução de Março, o Parlamento Europeu exortou os países da UE a admitirem cidadãos não ucranianos em fuga do conflito, independentemente das suas nacionalidades. Os refugiados de etnia cigana que fugiram da Ucrânia enfrentaram igualmente discriminação e preconceito em vários países da UE.
Em Março, o conselho da UE pronunciou-se contra o aumento de incidentes racistas e anti-semitas nos países que a integram e exortou os Estados-membros a desenvolver planos de acção e estratégias até ao final de 2022, a implementar eficazmente o plano de acção anti-racismo da UE 2020 e a estratégia, acordada em 2021, de combate ao anti-semitismo.
Em resposta ao crescente racismo e discriminação contra os muçulmanos em muitas partes da Europa, incluindo discursos e crimes de ódio, a Comissão Europeia através do ECRI [European Commission against Racism and Intolerance]) emitiu uma Recomendação de Política Geral em Março, apelando aos países europeus, incluindo naturalmente os Estados da UE, para que abordassem a questão.
O racismo em termos de policiamento, particularmente a caracterização étnica nos controlos de identidade, o uso de linguagem racista e o uso excessivo da força contra indivíduos, continua a ser um problema nos países europeus, de acordo com o relatório anual da ECRI publicado em Junho. O relatório observou também que as restrições relacionadas com a Covid impostas às escolas tiveram um impacto negativo sobre as crianças que já enfrentavam maiores dificuldades, tais como as crianças migrantes e as de etnia cigana. O relatório da ECRI não menciona Estados específicos.
As mulheres também entram nesta categoria. Um estudo realizado em Julho pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Género relatou que uma em cada duas mulheres na UE foi vítima de violência psicológica. Os números foram ainda mais elevados para mulheres que procuram asilo ou refúgio, mulheres de origem migrante, com deficiências ou condições de saúde precárias, com menos de 30 anos de idade, e para aquelas que não se identificam com o seu género. Na altura da redacção do presente relatório, seis Estados-membros e a própria UE ainda não tinham ratificado a Convenção do Conselho da Europa de Istambul sobre o combate e prevenção da violência contra as mulheres.
- Pobreza e Desigualdade
O rápido aumento da inflação durante o ano, particularmente em relação aos preços dos alimentos e da energia, a par das consequências económicas a longo prazo da pandemia de Covid-19, afectaram os direitos das pessoas que vivem com baixos rendimentos ou na pobreza, incluindo um nível de vida adequado, alimentação, saúde, habitação e acesso à segurança social.
Os dados da UE de Setembro de 2022 mostraram que 95,4 milhões de pessoas (21,7% da população) estavam em risco de pobreza ou exclusão social, com as mulheres em maior risco do que os homens, e os agregados familiares (particularmente os chefiados por um único progenitor) com filhos dependentes também em risco elevado. As taxas de pobreza na Roménia e na Bulgária excederam os 30%. Em Junho, os Estados-membros apresentaram à Comissão Europeia objectivos nacionais de redução da pobreza, comprometendo-se a reduzir em 15,6 milhões o número de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social até 2030.
Em Setembro, a Comissão Europeia emitiu orientações para os seus Estados-membros, encorajando-os a reformar os programas de rendimento mínimo existentes ou a estabelecer novos programas para assegurar que os seus sistemas de segurança social forneçam pagamentos em dinheiro às famílias que necessitam de apoio para viver com dignidade. Os grupos anti-pobreza congratularam-se com a proposta, e apelaram à comissão para adoptar uma abordagem vinculativa, baseada nos direitos, para além destas directrizes.
Dados oficiais de Janeiro mostraram que a inflação dos preços da energia em toda a UE foi de 27%, com taxas superiores a 40% em cinco países, uma tendência ascendente exacerbada pela guerra na Ucrânia e subsequentes sanções. A maioria dos governos da UE adoptou políticas para regular os preços da energia, incluindo, em muitos casos, apoios orientados para a cobertura dos custos de energia para as famílias de baixos rendimentos.
A invasão russa da Ucrânia em Fevereiro exacerbou os problemas de abastecimento alimentar, em particular os produtos básicos como o trigo e o óleo de girassol. Embora os países da UE não tenham enfrentado carências alimentares, a acessibilidade dos preços continuou a ser uma preocupação, particularmente para as famílias mais vulneráveis, com impacto no direito à alimentação. Em Setembro, os preços do pão tinham subido um quinto em toda a região, em comparação com o ano anterior.
- Política e Impactos das Alterações Climáticas
Os 27 Estados-membros da União Europeia estão entre os 10 maiores emissores de gases com efeito de estufa a nível mundial, contribuindo significativamente para a crise climática que está a ter um impacto crescente nos direitos humanos em todo o mundo.
Em Maio, a Comissão Europeia lançou o Plano REPower UE, destinado a reduzir a sua dependência dos combustíveis fósseis na sequência da invasão russa da Ucrânia. O plano aumenta a quota de energias renováveis, mas inclui também uma proposta de novos investimentos em infra-estruturas de gás natural liquefeito e gás fóssil, reduzindo assim os esforços de redução de emissões.
Em Julho, o Parlamento Europeu apoiou uma proposta da Comissão para classificar o gás fóssil e a energia nuclear como investimentos “sustentáveis”. Em Setembro, vários grupos ambientalistas lançaram um “desafio legal” à Comissão Europeia no que respeita a esta decisão, argumentando que a mesma mina os esforços de redução de emissões da UE e as suas obrigações do Acordo de Paris.
Em 21 países de toda a Europa, milhares de pessoas morreram, sofreram temperaturas invulgarmente elevadas no meio de uma onda de calor sem precedentes e prolongada, apesar de previsível, durante os meses de Verão. Os idosos e as pessoas com problemas variados de saúde, tais como doenças respiratórias e cardiovasculares, foram particularmente afectados. Dados de Espanha e Portugal mostram que a maioria das pessoas que morreu tinha mais de 65 anos de idade.
- Política Externa
A invasão russa da Ucrânia e os seus efeitos na segurança, economia e estabilidade europeias dominaram os esforços diplomáticos da UE em 2022. A UE e os seus Estados-membros puseram em prática esforços sem precedentes e coordenados para assegurar um apoio global condenando a agressão da Rússia e a apelando ao combate da impunidade por crimes internacionais graves cometidos no conflito.
Todavia e em Junho, os Estados-membros da UE aprovaram uma comunicação conjunta da Comissão sobre uma parceria estratégica com o Golfo, quase exclusivamente centrada na criação de oportunidades de investimento e cooperação, ignorando em grande parte os registos sombrios dos países desta região em matéria de direitos humanos. Do mesmo modo, a UE selou acordos energéticos com Israel, Egipto e Azerbaijão, e relançou as negociações para um acordo de comércio livre com a Índia, levantando preocupações de que está a ignorar os abusos perpetrados por estes governos e que os mesmos possam persistir.
Em Outubro, a UE retomou sua reunião do Conselho de Associação com Israel após um impasse de 10 anos. Grupos de direitos humanos e vários membros do Parlamento Europeu criticaram duramente a realização da reunião no meio da crescente repressão da sociedade civil palestina por parte das autoridades israelitas e ao crescente consenso internacional de que a severa repressão destas últimas aos palestinianos constitui apartheid.
As relações com a China permaneceram frias após as sanções impostas em 2020, com a “neutralidade pró-Rússia” de Pequim sobre o conflito na Ucrânia a pesar ainda mais neste contexto. Embora todos os Estados-membros da UE tenham apoiado unanimemente as declarações condenatórias sobre os abusos da China no Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, Chipre, Grécia, Hungria e Malta continuaram a abster-se de assinar declarações contra as violações dos direitos humanos na província de Xinjiang. De acordo com um relatório da ONU, são apontadas “graves violações” dos direitos humanos” cometidos contra a minoria Uigure e “outras comunidades predominantemente muçulmanas” nesta região autónoma na China.A publicação afirma ainda que os relatos de “padrões de tortura ou maus-tratos, incluindo tratamento médico forçado e condições adversas de detenção”, são credíveis O relatório destaca que a dimensão das detenções arbitrárias contra os Uigures e outras minorias, no contexto de “restrições e privações mais gerais de direitos fundamentais”, tanto a nível individual como colectivamente, podem ser considerados “crimes internacionais ou crimes particulares contra a humanidade”.
Apesar destas (e de várias outras) limitações, a UE tem desempenhado um papel de liderança nas resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre os direitos humanos na Coreia do Norte e em Mianmar, ao mesmo tempo que apoia os esforços da assembleia para pressionar a Síria e o Irão devido às suas violações dos mesmos. A UE também apoiou várias “condenações” da Assembleia Geral da ONU à Rússia por causa da invasão da Ucrânia e das atrocidades cometidas contra civis no país.
No Conselho de Direitos Humanos da ONU, a UE desempenhou um papel de liderança em importantes resoluções sobre o Burundi, Bielorrússia, Etiópia, Eritreia, Coreia do Norte, Mianmar e Afeganistão. No entanto, não apoiou nenhuma resolução sobre o racismo, discriminação racial e xenofobia.
Nota: Crédito da imagem: © Human Rights Watch
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