POR MÁRIA POMBO
Num mundo perfeito, nenhuma criança viveria sujeita a maus tratos, nem seria obrigada a permanecer na pobreza, sem acesso a comida, água, saúde e educação. Num mundo perfeito, não seria necessário criar fundos de emergência para crianças, nem organizações de ajuda humanitária. Mas o mundo em que vivemos está, infelizmente, longe de atingir essa almejada perfeição, e são muitas crianças as mais vulneráveis vítimas de algumas das maiores injustiças a que a humanidade pode assistir.
É por vivermos num planeta demasiado imperfeito e injusto que, há 70 anos, surgiu a UNICEF (United Nations International Children’s Emergency Fund). Criada em 1946, esta organização de ajuda humanitária tinha, à data, como principal objectivo apoiar as crianças vítimas da segunda guerra mundial. E, ao fim de sete décadas, o seu trabalho continua, e pelos piores motivos, a ser mais do que essencial.
No seu mais recente relatório, denominado “For Every Child, Hope” e divulgado no âmbito do septuagésimo aniversário, é revelado em números o apoio que já foi dado às crianças de todo o mundo, o qual já permitiu, por exemplo, diminuir substancialmente a percentagem de mortes por causas evitáveis, promover a saúde em muitos locais onde a mesma era inexistente e levar a educação aos cantos mais recônditos do planeta, ajudando as crianças que ali cresceram a aprender a ler, escrever e desenvolver-se de forma saudável.
O mesmo relatório está também disponível sob a forma de uma cronologia interactiva e em português, através da qual o leitor acede facilmente às principais acções que foram desenvolvidas pela UNICEF, por exemplo, no ano em que nasceu. Para isso, basta inserir o ano que se pretende, e a informação surge automaticamente e em poucas linhas, e desde o ano da sua fundação.
Milhões de crianças têm, hoje, uma vida. Outras tantas têm uma vida melhor
Qualquer vida que já foi salva tem muito mais valor que todas as estatísticas que possam ser apresentadas. Contudo, a verdade é que os números impressionam… Em 2015 e a nível mundial, foram tratadas 2,9 milhões de crianças que viviam com subnutrição aguda grave; nesse mesmo ano, a UNICEF e os seus parceiros distribuíram 35 mil toneladas de alimentos a crianças afectadas por uma má nutrição.
O acesso a água e a saneamento básico é uma das mais importantes formas de prevenir doenças e melhorar a higiene da população em geral. Neste sentido, entre 1990 e 2015, foram investidos 2,1 milhões na melhoria de instalações sanitárias, e quase três milhões de pessoas passaram a usufruir de melhores fontes de água.
Em 1950, melhorar a saúde era, obviamente, uma prioridade, e nesse mesmo foram desenvolvidas as primeiras campanhas de combate a doenças como a tuberculose. Em 1998, começaram a ser feitas investigações com o objectivo de tratar e prevenir a malária. Adicionalmente, em 2015, foram distribuídos 22,3 milhões de redes mosquiteiras com insecticida para proteger famílias em 30 países, e foram administradas 2,8 mil milhões de doses de vacinas que puderam evitar que 45% das crianças com menos de cinco anos, a nível mundial, fossem vítimas de doenças mortais.
A educação das crianças começou a ganhar força na década de 60 e, no ano passado, a UNICEF conseguiu proporcionar educação formal e não formal a mais de sete milhões de crianças entre os três e os 18 anos, levando material escolar a quase 15 milhões de miúdos. Complementarmente, a adopção da Convenção sobre os Direitos das Crianças, em 1989, veio reforçar a salvaguarda dos seus direitos, obrigando ao registo das mesmas à nascença. Em 2015, a organização apoiou o registo de quase 10 milhões de nascimentos, em 54 países.
Os esforços que têm sido feitos ao longo dos últimos anos já permitiram que milhões de crianças saíssem da pobreza e que outros tantos milhões tenham, hoje, acesso a saúde e educação, e possam explorar e desenvolver as suas potencialidades, construindo um futuro melhor e vivendo a infância de uma forma mais tranquila. A parte má desta história é o facto de, actualmente, continuarem a existir milhões de crianças que vivem ainda em condições sub-humanas e sem acesso às condições mais elementares de sobrevivência (como comida e água potável).
De acordo com o relatório, cerca de seis milhões de crianças morrem, em pleno século XXI, vítimas de doenças preveníveis, sendo que 28 milhões foram recentemente obrigadas a abandonar as suas casas devido a conflitos armados. Complementarmente, mais de 260 milhões de crianças em idade escolar não têm acesso a ensino primário nem secundário, sendo incalculável o número de crianças que sofrem de violência, abusos e exploração, não tendo acesso a alimentação adequada nem a cuidados essenciais ao desenvolvimento saudável nos primeiros anos de vida.
Aprender com o passado e caminhar com olhos postos no futuro
O trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pela UNICEF merece todo o reconhecimento. Contudo, mais do que vangloriar-se pelos resultados já alcançados, a organização encara esta data também como um “lembrete” do muito que ainda há para fazer em prol dos direitos das crianças de todo o mundo. Evoluir e adequar os esforços às necessidades é um imperativo contínuo para a UNICEF. É por este motivo que o apoio prestado tem vindo a incindir, ao longo dos tempos, em temáticas e/ou necessidades diferentes: nos primeiros anos, por exemplo, colocar os direitos das crianças na agenda política internacional foi uma prioridade, mas na década de 80 a principal meta era apoiar as crianças desfavorecidas do continente africano, melhorando a sua saúde e a educação em todo o território; já no início do novo milénio, os ODM assumiram-se como prioritários e foi em torno destes que se desenrolou, significativamente, a acção da UNICEF.
Considerando-o como um imperativo moral e também como um requisito estratégico, a organização aposta, desde 2010, no princípio da equidade – que consiste na adaptação de uma regra a um caso concreto para que o mesmo seja tratado da forma mais justa possível ou, por outras palavras, na distribuição justa dos esforços entre todos aqueles que precisam de ajuda, favorecendo mais os que precisam de mais.
Por todos os motivos apresentados, a questão que se coloca é: quais serão os próximos passos e como serão dados?
A esta pergunta a UNICEF responde que tudo irá depender da sua capacidade de adaptação a um mundo em constante movimento. Isto significa que a equidade irá estar presente nos programas promovidos, os quais pretendem essencialmente chegar às crianças mais excluídas. Para isso, a UNICEF continua a estabelecer parcerias que permitem, a baixo custo, intervir com o maior impacto possível. Continuam a ser estabelecidos laços com diversas organizações humanitárias e a ser construídas pontes entre a grande eficácia que o sector público consegue ter e os altos níveis de inovação que o sector privado consegue atingir. Uma outra ferramenta está relacionada com as redes sociais e a tecnologia digital, fundamental em pleno século XXI.
Desde a sua criação e até aos dias de hoje, a UNICEF tem defendido, acima de tudo e como é sabido, os direitos das crianças, promovendo, quando necessário, a sua deslocação para um território mais seguro e livre de qualquer tipo de risco (como violência, discriminação, má nutrição ou doenças). Tendo nascido devido à devastação de uma guerra, a UNICEF nunca saiu da frente de batalha. Ou melhor, da frente de diversas batalhas, sejam ela provocadas por armas, por desastres naturais ou “simplesmente” pelo facto de a pobreza extrema ser uma realidade em muitos locais do nosso planeta.
Este ano, um dos seus principais objectivos tem sido apoiar as vítimas da guerra da Síria, através de mantimentos e alimentação, e prestando os primeiros socorros às crianças refugiadas. Complementarmente, a organização tem procurado encaminhar estas vítimas para lugares seguros e mais adequados ao seu normal desenvolvimento. Ao fim de sete décadas, é uma nova guerra que volta a exigir uma acção rápida, eficaz e capaz de proteger os mais novos que tentam, a todo o custo, escapar da morte.
A organização assume estar a lutar, hoje mais do que nunca, para proporcionar uma vida saudável ao maior número possível de crianças, a nível global. Olhar para o passado, celebrar as vitórias, aprender com as derrotas e continuar a aceitar os desafios é uma máxima seguida pela organização. E olhar para a frente, com esperança e determinação, procurando proporcionar um melhor futuro para as crianças é um dos principais objectivos daqueles que nela trabalham.
Adultos escrevem ao Pai Natal
Foi também com o futuro como pano de fundo que, por ocasião dos seus 70 anos de existência, a UNICEF convidou diversos escritores e compositores, a nível mundial, para escreverem pequenas histórias, ou melhor, ‘tiny stories’. Contar, em poucas linhas, quais são os seus desejos para as crianças do mundo inteiro foi o desafio lançado a mais de 200 autores e com resultados interessantes.
Adicionalmente, e também sob o mote ‘what I want for every child’ (que, em tradução livre, significa ‘o que eu quero para cada criança’) o desafio tem sido lançado a todas as pessoas, através das redes sociais. Para participar, basta que o leitor publique no Facebook ou no Twitter a sua ‘pequena história’, acrescentando a hashtag #foreverychild.
Christina Lamb é jornalista do Sunday Times e autora de uma das pequenas histórias. Real ou não, o seu conto é sobre uma princesa que, ao contrário do que é habitual, vive num campo de refugiados e não está sempre feliz.
Ela chega a mim com um sorriso hesitante e uma fita vermelho entre os dedos. Eu não faço uma Cama de Gato há mais de 30 anos. A menina está à espera. Ela e a sua família viajaram mais de 3 mil milhas desde sua aldeia afegã, onde os Taliban ameaçaram matá-la por aprender inglês, até este acampamento que está situado numa ilha grega, ensolarada e segura, mas de onde não podem sair. No acampamento, tratam-na por Princesa. Eu seguro a fita com as pontas dos dedos e manejo um simples vai-e-vem e ela leva o laço de volta, sorrindo, e com um movimento habilidoso modela uma borboleta. Mas, quando passa de novo e eu tento fazer uma Escada de Jacó, que eu não fazia há muitos anos, a corda emaranha-se e ela vai-se embora. Como uma princesa triste.
Também Chimamanda Ngozi Adichie, uma romancista nigeriana, quis partilhar os seus desejos para os mais novos. Que todas as crianças sejam apenas crianças é o principal.
Eu quero que cada criança vá dormir bem alimentada, e não se preocupe com a próxima refeição. Ou a seguinte. Eu quero que cada criança tenha cuidados primários de saúde. Quero que cada criança seja protegida por adultos e não duvide da bondade dos mais crescidos. E que nunca seja tratada como adulta.
O criador da Turma da Mónica, Maurício de Sousa, é um outro autor que aceitou o desafio da UNICEF, partilhando a sua história. Que cada criança tenha o direito de sonhar é o seu maior desejo.
Quero que, ao olhar para cada criança, possamos ver um exemplo de alegria e bem viver. Para provar aos adultos que este mundo tem jeito. Que dá para conviver com os diferentes, que podemos, sim, tentar ajudar quem precisa, que o sorriso pode vencer a cara carrancuda e que cuidar deste mundinho é só para quem não alimenta ódio e rancor no coração. Na verdade, sempre soubemos de tudo isso, porque um dia fomos crianças também. Mas achamos que era tudo sonho e agora, enquanto adultos, estamos dentro da realidade. Quero, então, para cada criança, o direito de sonhar quando um dia ficar adulta. E que, desse sonho, ela consiga fazer uma nova e linda realidade.
Por fim, e entre tantas outras que poderiam ser eleitas, escolhemos a história do jamaicano Ziggy Marley, um cantor, compositor, produtor e autor de variados livros infantis. Para si, partilhar amor é o segredo para se ser feliz.
Era uma vez, numa terra não tão distante, um mundo e uma criança. E o mundo estava triste e perguntou à criança: “podes ajudar-me?”
A criança olhou para o mundo e disse “SORRI” e o mundo sorriu e sentiu-se um pouco melhor. A criança olhou para o mundo novamente e disse “respira” e o mundo respirou profundamente e ficou em PAZ.
Finalmente, a criança disse “a coisa mais especial que podes fazer para não ficares mais triste é AMAR”. O mundo estava confuso e perguntou “como é que amas?”. Então a criança deu um grande abraço ao mundo e disse “é fácil”.
O mundo estava assustado no início mas, por fim, começou lentamente a abraçar a criança e sentiu-se bem interiormente, e os seus SORRISOS ficaram maiores à medida que eles se sentiam em PAZ por PARTILHAR o seu AMOR.
No fundo, o que desejávamos era que organizações como a UNICEF não precisassem de existir. Mas e se milhões de crianças em todo o mundo continuam a precisar de ajuda, cabe-nos apenas desejar que, um dia, “partilhar amor” deixe de ser um “segredo” acessível a poucos e passe a ser uma atitude comum a toda a humanidade.
Jornalista